Crítica: Furna dos Negros (dir. Wladymir Lima)

Texto: Wibsson Ribeiro. Revisão: Chico Torres.

Ficções e outras maneiras de dizer a verdade

Furna dos Negros é um documentário que lida com o poder das ficções, das histórias que contamos para nós mesmos e para o mundo de forma a estruturar a realidade. Mais do que isso, lida com o hibridismo cultural, com o entrelaçamento de vozes e discursos, com a formação da cultura, que está muito longe de ser a mera afirmação da identidade e do mesmo, como querem alguns debates em voga (penso aqui no uso disseminado do conceito de apropriação cultural, por exemplo), mas uma junção por vezes conflituosa de valores, símbolos, crenças e conceitos.

O filme começa com a imagem de dois quilombolas caminhando pela Serra da Barriga. O senhor, um camponês de grande força corporal e intelectiva, começa a desfiar causos e histórias puxadas da memória, seduzindo o espectador com uma fala marcada, empolgada, de alguém que nos tem muito a dizer. Junto com ele, as imagens vão se compondo diante de nós com  a exibição de um equilíbrio entre seres naturais, bichos e plantas, e momentos onde está evidente a intervenção humana, convivendo em uma coreografia harmoniosa.

Em dado momento, Gerson, o senhor que acompanhamos na maior parte do filme, chega  à gruta que dá título ao documentário. Após elogiar a perfeição de sua estrutura, que ele diz ter sido obra divina, ele afirma que a tranquilidade ali é tamanha que é possível até mesmo “tirar um cochilo”, e fecha os olhos, deitando-se por sobre seu chapéu e pausando sua narrativa por alguns segundos. Após alguns momentos em que a câmera focaliza seu rosto ele se levanta, e em um sobressalto diz que “deu até para cochilar”. A cena tem o encanto de mais uma vez nos exibir uma imagem em que tanto Gerson pode estar atuando para as câmeras quanto de fato estar falando a verdade, ao menos para ele, tendo de fato dormido durante alguns poucos segundos.

Mais tarde o documentário passeia pelo Quilombo de Tabacaria, o primeiro de Alagoas a receber o título da terra. Nele vemos a cultura do reisado sendo vivida por aqueles que se dizem descendentes de Zumbi, em um pulsar de imagens que exibem a força criativa de um povo que não se limita apenas a uma ou outra cosmologia. Em um momento combinado a este, vemos na casa de uma das moradoras do Quilombo um estranho altar no qual estão acesas diversas velas ao lado de bonecas de plástico, compondo um quadro entre o exótico e o sinistro. Após as orações no altar, a câmera mostra a mulher benzendo uma senhora.

Em outra cena sugestiva uma criança corre alegre vestindo a farda escolar, como se o filme nos dissesse mais uma vez sobre do que ele se trata: sobre pedagogia, sobre como o processo educacional é muito mais amplo do que os aspectos ensinados em instituições formais, e como nossas vivências e tradições nos moldam, ao passo que nós também inventamos o que definimos como nossas vivências e costumes todo o tempo. Sobre a arte de estruturar a realidade por meio de linguagem, sobre narrar.

Todo documentário é também ficção, montagem, articulação feita de cortes e escolhas. Neste Furna dos Negros o que se dá a ver são estratos do tempo, sedimentações que remontam a tempos míticos, a cosmogonias religiosas, a construção de heróis que estruturam identidades, como Zumbi, mas também exibem o contemporâneo, nas casas de alvenaria ou nas bonecas de plástico. Quando um documentário nos parece tão colado ao real como é o caso de Furna dos negros, é sinal de que a manipulação do realizador e da equipe funcionaram com maestria. É o caso deste filme, ele próprio uma prova da possibilidade de construir a história, de contar algo que está além de uma dicotomia entre verdade e mentira.

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*