Crítica: Os Desejos de Miriam (dir. Nuno Balducci)

Os desejos de Miriam de Nuno Balducci
Texto: Felipe Sales. Revisão: Chico Torres.

Sexualidade feminina: a libertação de Mirian ou seus desejos contidos em um sonho?  

O Corpo da mulher, sua sexualidade, desde o “inicio” dos tempos foi exterior às suas próprias vontades. Matéria de pertencimento da opinião e domínio público, a mulher, “ser incompleto ou que teria sua completude a partir dos homens”, viveu e ainda vive alguma espécie de clausura, seja do próprio corpo e/ou da alma. Os mitos e tabus disseminados sobre sua sexualidade, que impediram as descobertas do prazer do próprio corpo, tiveram e têm uma função social histórica determinada: o controle social.

Romper essa barreira e enfrentar o julgamento de seu corpo, dos seus desejos, de suas vontades, é um fenômeno essencialmente novo, moderno, e exige da mulher uma força subjetiva que nem todas têm a coragem de enfrentar. Tornando-se “mais fácil”, muitas vezes, compactar seus desejos em áreas do pensamento intimamente individual, acessado apenas pela própria mulher em seus sonhos.

Mas é possível compactar completamente nossos desejos? Até que ponto a racionalização de nossas vontades pode inibir nossos impulsos? A materialização de nossos desejos pode ser por vezes a manifestação de um ato de coragem, mas por vezes, também, a manifestação de uma “fraqueza”.  Seria este o caso em Os Desejos de Miriam? Ou mais, uma manifestação inconsciente dos desejos não realizados?

Digo isso porque em Os Desejos de Miriam, novo filme de Nuno Balducci, a chave interpretativa para o final do curta é essencialmente subjetiva e, portanto, particular. A depender de quem assiste, os acontecimentos finais de Miriam podem ser tão reais quanto imaginários. O mais interessante, todavia, é perceber como Nuno constrói sua história. A maior riqueza e o principal elemento de sua narrativa encontra-se no não verbal das constituições dos planos, das composições dos quadros e dos silêncios dos personagens.

Logo de cara, na primeira cena, há uma inversão simbólica-cultural. Não são os homens (provavelmente marido e filho da personagem), histórico e culturalmente retratados e representados com papel de centralidade, que estão no centro da mesa. É Miriam. A simbologia é forte porque inverte ou, de certo modo, questiona a ideologia patriarcal e estabelece a mulher, ou melhor, Miriam, como papel de centralidade. Tudo vai girar em torno dela. E ela estará sempre no centro do quadro. Os homens nem se quer teriam direito à fala. Sendo “reduzidos” a “meros” coadjuvantes.

Essa inversão simbólica-cultural tem uma força por si só, mas, para além dela, ainda teria os desejos de Miriam. Em um mundo em que as mulheres são vista como objetos sexuais, e, ao mesmo tempo, cobradas por uma postura moral de ser “bela, recatada e do lar”, mostrar os atos e desejos sexuais de uma mulher que bebe, assiste filme pornô, está conectada às redes sociais, dança e se resolve consigo mesma, e sente atração não só por homens mas também por outras mulheres é de uma importância política fundamental. Reposiciona a mulher enquanto sujeito social com características e necessidades próprias, tanto políticas quanto individuais.

A atmosfera, o clima e a estética em Os Desejos de Miram são tocantes. Todos os elementos enquadrados na tela por Nuno são muito bem pensados e posicionados, estabelecendo uma harmonia e dando uma forma particular ao seu filme. A fotografia, dirigida por Nivaldo Vasconcelos, por exemplo, evoca os tons quentes do vermelho e do amarelo para reforçar e dar mais pulsão às vontades da personagem, principalmente na primeira metade do curta. Na segunda metade há uma mudança na paleta de cores em que os tons mais frios começam a predominar. O predomínio do roxo, nesse sentido, pode remeter a uma certa frieza que a noite traz, mas também pode representar e ser uma indicação da construção fantasiosa da imaginação, típica de um sonho. Afinal, há algo de misteriosamente mágico ou fantasioso em uma passagem por um viaduto em que as tonalidades de suas luzes são predominantemente roxas.

É interessante notar, também, a escolha da janela – proporção da tela – de 4:3 na primeira metade do curta, que tanto pode representar a pressão social para que a mulher se enclausure no lar, presa às tarefas domésticas, como também pode ser a representação da sensação de aperto e compressão da vida em um apartamento. Já a mudança para uma janela em 16:9 na segunda metade, quando Miriam sai do apartamento, tanto pode representar a libertação e materialização de seus desejos, como pode ser também a indicação de que Miriam estaria na verdade sonhando. Isso porque não sabemos ao certo se Miriam, depois de acordar no sofá e debruçar-se na varanda, estaria vendo a si própria ao ver uma outra mulher chegar da balada.

Talvez o ponto fraco em Os Desejos de Miriam esteja no exagero da construção da cena em que os personagens estão mediados, distanciados e silenciados entre si pelo uso das tecnologias, e pela formalidade do diálogo de Miriam ao atender o telefone. Eventualmente, se algo um pouco mais sutil, que não soasse tão forçado, que não transparecesse o texto no diálogo, tornasse a cena uma pouco mais orgânica.

De todo modo, a experiência de assistir Os Desejos de Miriam não deixa de ser impactante em sua direção e composição dos quadros. Sendo assim, não poderíamos deixar de falar nesta crítica da cena, talvez uma das mais bonitas da VIII Mostra Sururu de Cinema Alagoano, em que Miriam, ao retocar seu batom no banheiro e no limite do abrir da porta, nos olha ao olhar pelo espelho para a mulher que acabara de entrar. Que experiência prazerosa!

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