Crítica: Tupi or not Tupi (dir. Coletiva)

Texto: Felipe Sales. Revisão: Chico Torres.
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”
(Trecho do manifesto antropofágico)

Pode parecer deslocado do tempo, estranho, ou até mesmo uma obviedade repetitiva a abordagem de um fato tão conhecido da história do Brasil: a morte do Bispo Sardinha pelos índios caetés da costa alagoana. Poderia, inclusive, dizer-se: “mas todo mundo sabe disso, qual a novidade deste olhar?”. E é ai que residiria o perigoso engano. Perigoso porque em tempos de censura à arte, perseguição à professores e demonização do diferente, perder a memória pode ser mais uma vez se deixar colonizar.

Tupi or not tupi, filme de direção coletiva produzido em Coruripe e exibido na VIII Mostra Sururu de Cinema Alagoano, resgata esse fato tão conhecido da história do Brasil para nos ajudar a refletir e questionar sobre como o “inocente” ato de contar uma história pode servir à naturalização de uma determinada versão do fazer historiográfico. Ainda é muito comum, por exemplo, a reivindicação da conceituação metodológica de que a história deve ser uma ciência “neutra”, “imparcial” e, por isso mesmo, positivista. Só assim é que se pode transformar uma visão de mundo, portanto, ideológica, em “natural”, “neutra”. Não por acaso acreditamos durante muitos anos e, de certo modo, continuamos acreditando ainda hoje, que os índios (ou brasileiros) seriam naturalmente “selvagens” e os portugueses (ou estrangeiros), não.

Nesse sentido, é muito interessante como a produção de Tupi Or Not Tupi inverte a polarização do que seria a representação entre “selvagens” e humanos. No curta, os portugueses são representados como uma sardinha, e uma sardinha enlatada. O que, a meu ver, poderia ser a representação visual, para além da indumentária do bispo-peixe, da cultura exterior, já mesclada e de um certo modo compactada. Poderia ser, também, a representação do metal das armaduras e armas que acabariam por devorar não só a etnia dos Caetés como toda a extensão dos povos originários.

A noção de superioridade civilizatória e o combate ao “primitivo” e “selvagem” foi um preço muito caro à humanidade, pois incompreensíveis riquezas materiais e de sociabilidade humana podem ter sido sumariamente eliminadas. Por isso, considero importante a revisão histórica proposta em Tupi Or Not Tupi, primeiro por não deixar se perder o processo de extermínio de nossos povos; segundo, por se estabelecer um ponto de contato, mas sem colocar um sinal de igual, entre as ações dos Caetés com os portugueses e dos portugueses com os Caetés, evidenciando, se assim podemos dizer, um tipo de “selvageria” comum aos dois.

Essa equiparação pode ser percebida pela transição que liga a mise-en-scène do rito antropofágico dos caetés aos dos portugueses. Sim! Dos portugueses! A sobreposição de imagens entre a fogueira e o castiçal evidencia uma diferença de desenvolvimento material das duas civilizações, mas a equipara em suas ações. O rito dos caetés é marcado pelo bater dos tambores e o canto dos indígenas ao redor da fogueira. O dos portugueses, pelo badalar dos sinos, pela cera da vela, pelas porcelanas, pelos livros e cristais. Podemos dizer até que, embora o peixe-português esteja sozinho na sala, a presença material dos objetos acaba servindo para inserir, simbolicamente, os demais membros de sua sociedade.

A imagem do peixe-eclesiástico se alimentando dos povos brasileiros tanto pode ser entendida como um ato de pura vingança à morte do bispo sardinha, como também, e principalmente, pela incorporação dos elementos da cultura e costumes dos povos originários. A cena que se segue logo após ao close do prato, que intercala o prato vazio e o prato sendo servido, são de quadros de Tarsila do Amaral, que remetem às múltiplas influências que contribuíram, bem ou mal, à formação de uma identidade brasileira.  Seria uma espécie de síntese da assimilação deglutida e digeridas das diversas culturas.

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