Encontro e reencontro, uma entrevista com Carol Rodrigues

Perguntas: Pedro Krull e Larissa Lisboa. Respostas: Carol Rodrigues. Transcrição e revisão: Larissa Lisboa. Foto: Julia Zakia

Em meio a cobertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Pedro Krull entrou em contato com Carol Rodrigues para conversar sobre o seu curta A felicidade delas que fez parte da Mostra “A imaginação como potência” em Tiradentes em janeiro. Larissa Lisboa transcreveu a entrevista e propos retomar o contato com Carol para compartilhar um pouco mais sobre o trabalho e trajetória dela.

1ª parte – Janeiro 2020

Pedro Krull: Em “A Felicidade Delas” assim como em “A boneca e o silêncio”, é possível observar uma exploração pelas vísceras da cidade, nos escombros, nas ruínas, como funciona para você inserir os locais de abandono na construção das narrativas desses dois filmes?

Carol Rodrigues: Pra mim de forma geral, eu acho que quando a gente tá falando de nós oprimidos de forma geral (mulheres, negros, LGBTs), a gente tá falando de nos colocar sempre a escanteio a margem, nos lugares do sistema de forma geral, e o processo naquilo que eu acredito é justamente a gente ir nesses lugares, ocupar esse lugares, até o ponto de encontrar essas brechas, essas falhas, essas vulnerabilidades, onde a gente pode reconstruir nossa própria existência, nossas referências e implodir tudo isso e repensar o nosso próprio local, reconstruir esse mundo assim. Um amigo meu fala que todos os filmes meus basicamente são personagens vivendo sobre uma grande pressão e que de repente explodem de alguma forma, de várias formas específicas. O meu longa que eu to fazendo agora acontece a mesma coisa são duas personagens buscando uma forma de existir até chegarem no ponto que explodem, em que destroem. Eu acredito na violência como uma forma de atuação no mundo, a violência de várias formas, não só do ato agressivo em si, mas a violência sutil. Por acreditar nisso, que esses personagens estão sempre vasculhando a cidade,tentando encontrar uma forma de tomar ela pra si. E especificamente em “A felicidade delas”, gosto da ideia de ter um mecanismo que vai revelando o lugar aos poucos, delas terem esse pequeno aparelho na mão em que elas vão aos poucos iluminando isso, elas também tão tateando a própria relação entre elas. Que afinal de contas na vida mesmo, a gente tateia, a gente pode ter todas as certezas do mundo, mas ainda assim, nós estamos andando, tateando no meio do escuro.

PK: Como é que você vê esse enquadramento de corpos, principalmente corpos negros, corpos de mulheres em outras produções? E como é que você vê o seu processo de enquadramento desses corpos?

CR: Quando comecei a desenvolver esse projeto, comecei com essa ideia de que iríamos fazer um filme no escuro com duas mulheres negras retintas fugindo e eu queria que elas tivessem maravilhosas, tão bonitas quanto Paraiah de Dee Rees ou Moonlight de Barry Jenkins, e por que que isso é importante dizer, porque a fotografia é racista, a gente fala muito sobre as câmeras como algo neutro, mas na verdade eles não são. Ao longo da história do cinema, o paradigma da imagem sempre foi a pele branca. E o meu desejo era trazer isso ainda mais no escuro, porque afinal de contas, existe um lugar comum, racista, que vem sendo construído de que não podemos fazer filmes com pele negra no escuro. Com algumas referências de outros filmes que eu tinha visto, vi que isso era uma grande bobagem. E o desejo de construir esses corpos buscando formas de existência veio deste lugar, buscando traduzir isso em fotografia. Se são corpos tateando no mundo, a procura de encontrar o seu lugar de existir e pertencer, nada melhor do que tentar traduzir isso nesse enquadramento. Então a todo momento não só na estrutura narrativa como no enquadramento elas vão sendo confinadas até o momento que elas explodem e nada mais pode conter.

PK: Observamos filmes na 23ª Mostra de Cinema Tiradentes que estão carregados de uma abordagem paralela com “A felicidade delas” de buscar novos olhares, de ressignificar alguns signos e trazer a tona novos, como você observa a inserção do seu filme nesta edição da Mostra de Tiradentes?

CR: Nossa, essa é uma pergunta difícil. De forma geral, fiquei feliz, embora não tenha conseguido ver toda a mostra, até porque eu tive que voltar antes. Ao ver a programação percebi que muitos filmes que estão na mostra, eu já vi em outros contextos. Pensar a curadoria e costura dos filmes pelo menos entre os curtas, não vou comentar sobre os longas, vejo uma cisão entre as duas coisas, não vejo uma harmonia, acho os curtas muito mais pensados e de fato propositivos. O Bonde (dir. Asaph Luccas), Perifericu (dir.  Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira), Sem Asas (dir. Renata Martins), Inabitáveis (dir. Anderson Bardot) são todos proposições, em chaves completamente diferentes, mas ainda assim proposições estéticas em busca de procurar a legitimação da sua existência através da imagem. Nesse sentido, acho interessante a sessão em que meu filme participou, por propor uma experiência da movimentação dos corpos nesse espaço. Senti nos curtas uma ambição, vontade, desejo dos realizadores que conversa com o meu próprio desejo. E fiquei muito feliz, feliz e triste ao mesmo tempo, porque fiquei muito extasiada com essas possibilidades, mas não consegui viver isso, nem fazer a troca que eu gostaria de ter feito.

PK: Ficamos maravilhados com o seu empenho em criar e manter o site “Mulheres negras no audiovisual brasileiro” e queríamos saber como anda esse projeto. 

CR: O site Mulheres negras no audiovisual brasileiro está temporariamente fora do ar, estou correndo atrás para refazê-lo porque ele estava numa plataforma que fechou e é preciso ir pra outro lugar. E de qualquer maneira o site havia encontrado um limite porque tivemos muitas inscrições, e era uma plataforma de acessibilidade, de troca entre as usuárias. Preciso de uma parceria, estou nesse momento de buscar pessoas para me ajudarem a programar e um outro lugar para hospedar o site.

2ª parte – abril 2020

Larissa Lisboa: Como teve início o seu envolvimento com o cinema?

Carol Rodrigues: Quando eu tinha uns 15 pra 16 anos, eu me apaixonei por cinema. Essa ideia louca de se tornar Deus de um pequeno universo e criar personagens pelos quais as pessoas podiam empatizar e os acompanhar por uma jornada emocional. Havia uma pequena locadora perto de casa onde eu aluguei um filme chamado Laranja Mecânica, do Stanley Kubrick. Eu fiquei assustada e obsessiva em tentar entender como aquele cara havia conseguido me fazer me importar com um estuprador sociopata. Olha que o livro do Anthony Burgess ainda traz um protagonista que tem ódio de classe, que age para não repetir a vida levada pelos seus pais, trabalhadores de fábrica… mas o filme, não. Há uma violência sem sentido, mais assustadora e mais reacionária. Ficava pensando na potência dessa ferramenta, sabe. Dessa máquina de criar empatia. Dessa máquina que poderia forçar as barreiras da percepção das pessoas para elas se importarem com tantas vidas que parecem não ter significado nenhum… Eu botei na cabeça que queria fazer cinema. Fui conversar com o Noel dos Santos Carvalho, que na época, alavancava o Dogma feijoada em São Paulo. Apesar de eu ter estudado numa escola privada com bolsa, eu tinha certeza que não conseguiria passar no curso de cinema. Ele me indicou fazer ciências sociais, que foi o curso que ele fez. Ele me disse que eu poderia encontrar pessoas e possibilidades de produção. Mas eu não encontrei. Enquanto fazia sociais, me envolvi com o movimento estudantil. Isso foi um divisor de águas na minha formação, na minha visão de mundo e na minha própria identidade. Foi quando eu me tornei quem eu sou. Bem, tava terminando a faculdade quando consegui um trabalho em São Paulo e voltei pra cá. Fui morar com minha namorada, casamos. Mas a vontade de fazer cinema ainda ecoava. Foi quando resolvi entrar pro cursinho noturno e tentar novamente a faculdade de cinema. Em 2010, eu estava com 26 anos, e entrei na faculdade de audiovisual.

LL: Em qual momento você se reconheceu como roteirista? E diretora? 

CR: Eu me reconheci diretora quando meu primeiro filme, A boneca e o silêncio, estreou no Festival de Tiradentes. Foi uma coisa louca, falar na frente daquele mar de gente na tenda, convidar pra sessão. Minha mão suava, minha voz tremia. Quando a exibição terminou, eu pensei: É, acho que sou uma diretora. Agora, roteirista eu ainda não me sentia não. Até porque, confesso, mudei bastante coisa de meu próprio roteiro. O processo de me tornar roteirista foi mais longo, precisou de maiores provações. Além dos curtas e do longa que eu começava a desenvolver, precisei estar na minha segunda sala de roteiro de uma série para me reconhecer como uma efetiva roteirista.

A boneca e o silêncio (Carol Rodrigues, 2015, 19′) from Meus Russos on Vimeo.

LL: O seu primeiro curta “A boneca e o silêncio” teve incentivo do Curta-Metragem – Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual, de que forma essa iniciativa da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/MinC) impactou na realização do filme e na sua trajetória como roteirista e diretora?

CR: Impactou de diferentes formas. O edital chegou a ser paralisado por um longo período, enquanto ele sofria ações judiciais que o acusavam de ferir o princípio da isonomia do Estado brasileiro, acredita? Essa cobrança de uma suposta neutralidade esconde o profundo abismo de acesso entre realizadores brancos e os pretos e pardos do nosso país. Mas esse processo aproximou os realizadores ganhadores do edital, que organizaram algumas ações conjuntas para tentar liberar o dinheiro. Demoramos quase um ano para conseguir, mas conseguimos. Aconteceu um processo parecido no edital de curtas da SPcine aqui em São Paulo. É irônico, agridoce e perverso pensar na dificuldade que é conseguir a liberação de verbas de editais, principalmente de editais de políticas afirmativas. É trabalhoso conseguir que seu direito seja respeitado. É algo que vale pra nossa vida. São corridas de longa distância cheias de obstáculos.

Mas acho que é fundamental ressaltar a importância de políticas públicas afirmativas no audiovisual. Ainda mais nesse momento, de cortes e sucateamento, a tendência é que o pouco dinheiro que sobrar ficará nas mãos dos realizadores do cinema de herdeiro, como diz a cineasta Renata Martins. Ainda temos um cenário no qual as obras brasileiras que atingem o grande público são essencialmente brancas e masculinas e precisamos de incentivo de políticas reparatórias que permitam que realizadores negros possam produzir, criando imagens outras além do nosso imaginário racista e machista. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas os últimos anos tem mostrado que são esses realizadores que tem trazido um respiro às nossas telas, que têm desafiado nossas percepções e gestado aquilo que pode ser o futuro do cinema no Brasil. O cinema ainda pode ser uma confraria de homens brancos, mas estamos chegando com força e temos fome de transformação. E o futuro pertence a nós.

LL: Como foi o processo de para composição do elenco de “A felicidade delas”?

CR: Não houve exatamente um processo. Um amigo me apresentou para a Tamirys Ohanna que trouxe a Ivy Souza para o projeto. Elas são bastante talentosas e com uma presença marcante, que desde nossa primeira conversa eu não tive qualquer dúvida sobre elas serem as atrizes ideais para contar essa história.

LL: O que você sentiu ao ver “A felicidade delas” receber os prêmios de Júri da Crítica e de Melhor Fotografia no Festival For Rainbow (Fortaleza, 2019), e o prêmio de Melhor Filme Nacional pelo Júri Oficial no 7o Recifest (Recife, 2019?

Nossa, pra falar a verdade me senti dividida entre a felicidade transbordante e a honra do reconhecimento nessa magnitude em um momento no qual tantas produções potentes têm sido feitas. Um reconhecimento que ganha um sabor especial por virem de festivais centrados em produções LGBTQIA+. É um reconhecimento entre seus pares, difícil traduzir o maravilhamento.

LL: O projeto do seu primeiro longa, “Criadas” foi contemplado com os Prêmios de Desenvolvimento Vitrine Filmes, Prêmio Aquisição FiGa Filmes e Prêmio Cinéma en Développement no BrLab 2017, como tem sido a vivência de desenvolvê-lo?

Tem sido um processo intenso. Após algumas consultorias, estou caminhando muito mais confiante para o quarto tratamento do roteiro. Criadas traz essas duas primas, Sandra e Mariana, que voltam a morar juntas na mesma casa onde cresceram. Sandra é negra de pele retinta, enquanto Mariana é negra de pele clara. Quando elas eram crianças, apesar de parentes, a mãe de Sandra trabalhou como empregada doméstica residente para os pais de Mariana. É inspirada em uma história de minha família, mas nos últimos tratamentos a narrativa tem se distanciado dos fatos originais e assumido mais os contornos do realismo mágico. Criadas traz muitos desafios de dramaturgia e encenação, pois todas as cenas se passam dentro de uma casa que também é um personagem na história. O filme é sobre a forma como racismo e o colorismo se infiltra em nossas relações mais íntimas, é uma história sobre violência mas também sobre amor. Sobre nosso desespero de tentar nos manter juntos, mesmo quando toda a estrutura parece querer nos separar.

LL: Em estudo realizado pela Ancine, foi apontado que nenhuma mulher negra dirigiu um longa lançado comercialmente em 2016, o que você acredita que precisa mudar socialmente e politicamente para combater o racismo e apagamento das pessoas negras no mercado audiovisual brasileiro?

De forma objetiva, volto a dizer na importância de mais políticas públicas afirmativas voltadas aos realizadores negros, com valores de mercado atualizados e que não se restrinjam somente para o fomento de curtas-metragens, mas também dos longas e das séries. Nesse sentido, vale ressaltar a importância de haver cotas para empresas vocacionadas para conteúdos identitários, ou seja, cotas para produtoras que sempre tiveram comprometidas com a diversidade racial e que não estejam assumindo essa bandeira por um oportunismo no mercado. Essa é uma bandeira que a APAN, a Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro, tem levantado em diferentes frentes.

Acredito que nossas produções, diversas do ponto de vista étnico-racial e de gênero, contribuem para o combate ao racismo, ao machismo e a LGBTfobia. Afinal, há uma dimensão pedagógica no audiovisual, que ensina às pessoas como agir, como elas se veem e como elas se portam diante do outro. Temos a imensa responsabilidade de produzir filmes para disputar o imaginário racista e machista do presente. Filmes que nos ajudem a nos constituir como novos tipos de sujeitos e, assim, nos permitir descobrir quem somos, como apontou Bell Hooks.

 

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Formada em Ciências Sociais pela Unicamp e em Audiovisual pela Usp, Carol Rodrigues é diretora e roteirista. Participou da equipe de roteiro da 1a e 2a temporadas de Escola de Gênios (Gloob/Globoplay), da 3a e 4a temporadas de 3% (Netflix), dentre outros projetos. Em 2019, realizou o curta-metragem A felicidade delas no qual duas meninas fogem juntas da polícia e, apesar da violência, buscam uma forma de viver o seu desejo. O filme estreou ano passado no 16 VIS Vienna Shorts (Austria) além de ter sido exibido em Zagreb (Croácia), L’viv (Ucrânia), Quito (Equador), Uppsala (Suécia) e em diversas cidades brasileiras. Recebeu prêmios nos festivais For Rainbow, 7 Recifest e Entretodos 12. Também em 2019, co-escreveu e co-dirigiu o curta Mãe não chora com Vaneza Oliveira que foi premiado no Festival Kinoforum 30, na 4 Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso e no Curta Cinema. O filme traz a história de uma mãe solo que precisa levar seu filho ao trabalho porque não consegue deixá-lo com o pai. Em 2015, realizou o curta-metragem A boneca e o silêncio, sobre a solidão de uma menina que ao realizar um aborto clandestino. O filme participou de diversos festivais nacionais e internacionais, sendo vencedor de prêmios em São Paulo, Belo Horizonte, Polônia, Índia e Portugal. Além do seu trabalho em salas de roteiro e com os curtas, Carol também se dedica ao seu primeiro projeto de longa-metragem de ficção, Criadas, sobre os efeitos do colorismo e do racismo no interior de uma família negra. O projeto foi vencedor de três prêmios do Brlab 2017, participou do Cinélatino 2018 em Toulouse (França) e foi o primeiro projeto contemplado pela linha de produção de longas metragens da Sessão Vitrine em 2019.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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