Enquadrando o enquadrador

Texto: Fabio Rodrigues Filho. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: Frame do trailer de "Cadê Edson?".

Após algumas das cenas de forte confronto do filme Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, DF, 2020), nos é dado a ver numa noite de desocupação um policial que está acompanhado não só de outros agentes como ele, também de um arsenal de armas de fogo de grande porte, mas curiosamente ele porta na mão direita uma câmera e na esquerda uma lanterna. Com a câmera, o policial se põe a filmar aqueles que o filmam, com a lanterna ele tenta cegar a imagem do filme. 

O duplo gesto do policial se quer aniquilamento de qualquer contra-campo da ação violenta que a própria polícia protagoniza e regozija. Ataca-se tanto o ante-campo do filme, como também o campo do visível – a um só tempo se ataca o plano e o enquadramento, o direito e a política. 

O que também parece estar em jogo na luta em curso documentada pelo filme, nas estratégias do movimento por moradia e na tática do Estado é uma disputa pela imagem e pelo visível; além, claro, da disputa por teto e por justiça social. A guerra instaurada é, enfim, também uma guerra de e por imagens. A pergunta “Cadê Edson?” que intitula e funda o filme, ressoa também porque programaticamente e violentamente o enquadramento policial é um controle do visível e do regime de visibilidade. A polícia busca Edson para eliminá-lo ou o captura através de seus enquadramentos para decepá-lo. Eis uma modalidade do confronto ao que, pelo corte da montagem, o filme dirigido por Dácia Ibiapina resistirá, avançando ao cerco de controle, ao gesto totalitário da polícia, não se deixando cegar pela ameaça da lanterna empunhada e pelo suborno da câmera apontada. 

Entre o Edson criado pela grande imprensa, sobredeterminado como um líder horrendo e virulento que precisa ser contido, e o Edson que a polícia procura, pintado como cabeça do movimento e que, por isso, precisa ser também contido para conter o movimento (como se chegando à “cabeça” controlaria a consciência da luta), o filme encontra e nos faz encontrar um Edson complexo, sensível e engajado na luta coletiva pelo direito à moradia. O Edson que o filme nos faz encontrar rompe o pacto de contenção selado entre mídia e estado. Sua presença é construída no filme por diferentes registros, regimes de imagem, momentos de sua luta, compreendendo um arco temporal de sete anos de gravação e uma heterogênea reunião de procedência das imagens. A pergunta que dá nome ao filme reforça-se no encontro com essa prova-viva que é o Edson, personagem que é insistentemente presentificado pelo filme quando se põe a escutá-lo e quando escuta os relatos de companheiras/os que, em certa medida, constroem em conjunto a história dele.

Ao longo do documentário, vemos uma polícia tão equipada de armas quanto de câmeras de filmagem: das câmeras “mais comuns” até as de “alto desempenho”. Vê se, por exemplo, acoplada na farda de um dos policiais uma câmera GoPro, além das câmeras de celulares empunhadas por eles ou também câmeras de alta definição operadas por aqueles que nem corpo tem – visíveis na incidência do seu controle e poder, mas descorporificados na cena. O enquadramento policial, enfim, sustenta-se também no enquadramento imagético, formado por diferentes regimes de imagem objetivando produzir prova, justificativa e consumação. Logo se apresenta ao longo do filme uma sofisticação na produção da imagem do poder (essa imagem de captura policialesca, uma imagem-emboscada) dando conta não só de sustentar o gesto da polícia, mas de ostentar sua tática e seu poderio, de produzir enfim, pela dupla violência que ela opera, um consenso – ao produzir uma imagem que só comprova a versão que lhe serve e que mais do que matar, expõe o poder de matar e mira no espectador como quem faz uma chantagem de morte pela imagem.

Frente ao avanço dessa máquina (imagética) de guerra, o filme parece encarar a disputa pela imagem como algo também central. A cena da perseguição dos helicópteros aos ocupantes que protestam no alto do prédio é emblemática porque a disputa pela imagem impregna a forma do filme, tal como a disputa pelo espaço se torna mais incisiva para o movimento. Trata-se aqui de um cena em que se acirra o conflito entre a polícia militar e o  MRP (Movimento de Resistência Popular), que ocupava a oito meses um prédio no centro de Brasília, o Hotel Torre Palace. Após uma manifestação popular nas imediações do prédio, as várias famílias do movimento são brutalmente retiradas do espaço. Sem nos darmos conta de imediato, a imagem da desocupação que vemos foi gravada pela própria polícia. Mas, ainda que desconheçamos sua procedência, é impossível vê-la de modo inocente…

Além da própria  cena, a imagem da cena é decisiva porque ela seria, em primeiro momento, necessária à polícia para criminalizar o movimento e avançar com uma acusação surreal ao Edson de tentativa de derrubar as aeronaves que os cercam. Emblemática também porque é uma cena longa, monumental, acessa de modo e ângulo privilegiado o desenrolar de um conflito denso. 

Se a retomada e apropriação dessa imagem pelo filme desmonta a imagem do poder, isso se dá a um só tempo pelo berimbau, inserção precisa da música de Naná Vasconcelos ao longo de toda a cena, cortando com uma linha de força a imagem, somando aquela luta a uma luta histórica pela terra, pelo teto e por direitos; Desmonta-se ainda porque só em seguida descobriremos o gesto de retomada que anima a imagem vista, quando o filme nos oferece a outra sequência desta peça publicitária policial – como se a montagem do filme evidenciasse a necessidade da desmontagem da imagem. Não menos importante, a retomada pelo filme desmonta a imagem do poder por devolver a ela a política: o que seria a priori um arquivo que depõe contra os três militantes que resistem no alto do prédio se torna um documento aliado e em favor da luta do MRP: a imagem dobra-se em defesa dos lutadores. Ou seja, a grandiloquência da imagem passa mais a documentar a barbárie e o plano da polícia, do que qualquer possibilidade de crime pelos militantes. Enfim, retira-se da polícia e devolve à política. A singular retomada das imagens aéreas restitui ao cinema a disputa pelo visível, disputa pau a pau ao se justapor em altura, câmera e aeronave. O mesmo enquadramento, enfim, não sugere mais o mesmo plano mas evidencia a desigual disputa de forças da cena política.

Numa luta em que muitos dos seus momentos não são dados a ver, seja porque faz parte da estratégia da polícia não só expor de determinado modo, mostrar-se de modo tático, mas também esconder(-se), infiltrar-se e, como veremos ainda na cena da violenta desocupação do prédio, levar os militantes para lugares fechados, trancafiá-los, retirá-los da cena pública, o filme Cadê Edson? parece fortemente engajar-se na guerra das imagens, não só assumindo lado mas sustentando uma estratégia singular que se alia com a estratégia do movimento popular em questão. 

Enfrentando uma polícia que se exibe e age pelo seu duplo enquadramento, técnico (imagético) e social, o filme de Dácia Ibiapina parece assumir uma estratégia (dentre tantas outras) consistente e corajosa: expõe a mise-en-scène grotesca dos agentes do poder, desvia as próprias imagens do poder operando-as como contraprova, e assume a guerra das imagens como também decisiva para aquela luta em curso, para a esfera pública e, não menos importante, para o próprio cinema. Nisso pois que não se trata só de filmar e estar junto daquele movimento (o que já parece bastante relevante), mas de assumir o filme não como a luta, mas como aliada ativa e possibilidade, pela modalidade de seu engajamento e pela articulação fílmica, construir uma arquitetura sensível da luta e da disputa, seja quando remonta ou quando o filme reúne (pessoas, provas, histórias, etc.).  

*

Por fim, gostaria de encerrar este texto citando outra cena que me chama bastante atenção: passado um tempo do episódio de desocupação, o filme reencontra um dos militantes filmados em um trailer de uma das avenidas de Brasília. A diretora cumprimenta e conversa brevemente com o rapaz seguindo para saudar a dona do bar. Ao avistar a câmera, a tal senhora recua no intuito de se arrumar para aparecer na imagem, mas a diretora logo avisa que se trata apenas de uma rápida apresentação entre as duas. Entendido o protocolo, elas se cumprimentam e, uma vez apresentada à equipe do filme, a senhora responde: “Oi, pessoal do cinema”. 

Há uma reconhecida e talvez óbvia diferença entre o “pessoal do cinema” e o “pessoal do movimento social”, mas, sobretudo a diferença se apresenta aqui como potência de aliança. Ora, o “pessoal do cinema” (este que por delegação fazemos parte) é saudado por esta senhora tanto em sua (nossa) distância quanto na proximidade. Proximidade porque suficientemente junto para ser aliado da mesma luta; distância por que é reconhecida por ela, a senhora do bar,  a potencial alteridade do cinema. 

A partir dessa cena, a equipe busca e reencontra aqueles que até seus documentos foram obrigatoriamente perdidos na ação de desocupação que a polícia comandou. Revemos os personagens, escutamos seus relatos sobre este mesmo episódio que há pouco tempo atrás víamos através das imagens da polícia. Gesto fílmico de reunião daqueles que foram brutalmente dispersados, reunindo a um só tempo as pessoas e a história da luta. Decisivo é lembrar como o filme, dentre tantas outras coisas, evidencia, naquela que seria uma espécie de primeira parte, uma aposta nas crianças e na alegria. Aposta que faz jus a uma realidade cotidiana de ocupações e que no tratamento do filme produz uma semente de revolução e de reunião. Não menos importante: semente de remontagem. Seja na canção “Para nossa alegria”, cantada por uma senhora do MTST ou na declaração de amor em “La belle de jour” cantada por um dos militantes para sua companheira, canções de luta e resistência ainda ecoam mesmo quando abruptamente o filme acaba. 

Se a tática das câmeras policiais, ou poderíamos dizer das câmeras de segurança (falando a um só tempo dos enquadramentos da grande imprensa e da instituição policial) nos querem, enquanto espectadores, como sobreviventes de guerra, sustentando-se num discurso de paz que quando muito é uma guerra sem fim, o filme, no entanto, parece não só reconhecer a guerra enquanto guerra (inclusive uma guerra de imagens), mas também uma disputa em relação ao espectador. Não somos aqui em Cadê Edson? sobreviventes da guerra, não habitamos a paz idílica da polícia e o desmontar da imagem heroica dos policiais não inscreve Edson no papel do herói – resta, ao contrário, um potencial buraco na narrativa oficial. Parece ao filme necessário nos colocar como potenciais aliados, isso sim. Ora, não é difícil para nós, ao ver o filme, responder a pergunta “Cadê Edson?”, tanto porque nos encontramos com ele ao ter acesso a sua história e vê-lo em ação, mas também por nos dar a entender a disputa que o envolve e que continua mesmo quando o filme acaba. Nesse sentido, dentre os tantos conflitos que envolvem o movimento social em questão e este militante em particular, retornamos por um momento a cena mais agônica do filme (os planos aéreos do prédio que comentamos acima), entendendo essa cena como pivô do processo que ameaça não vermos mais o Edson, porque é uma imagem que se quer prova judicial contra ele pela polícia. No entanto, ao enquadrar o enquadrador, o filme expõe o crime da polícia. Diria por fim que em seu duplo gesto de desmontar e reunir estrategicamente imagem (fílmica) e movimento (social),  Cadê Edson? derruba a grande imagem necessária à narrativa policial.

* O título desse texto é um livre citação a uma frase da cineasta Tinh-Minh-Ha (“enquadrar o enquadramento/enquadrador”), citada por Judith Butler na introdução do seu livro Quadros de Guerra (2015).
** Agradecimentos especiais a Ingá pela leitura atenta ao texto.

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