Texto: Rafhael Barbosa*. Revisão: Aline Silva. Imagens: Cobertura da 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro *O repórter viajou a convite do festival
Demorou, mas finalmente a animação marcou presença no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. “Torre”, de Nádia Mangolini – representante de São Paulo na sexta noite da mostra competitiva – abriu uma sessão desenhada para discutir a violência por meio de óticas distintas e provocadoras. No caso desse delicado curta-metragem, o tema surge a partir do relato de três filhos que cresceram com a ausência de pais assassinados pelo regime militar no Brasil.
Com um misto de animação e documentário, o filme desenvolve os depoimentos dos entrevistados enquanto apresenta uma representação visual subjetiva do que está sendo dito. As histórias possuem muitos elementos em comum: todas remetem a dúvida e a incompreensão da infância diante do súbito desaparecimento dos familiares. A esperança de que o pai irá retornar a qualquer momento, o sentimento de abandono, a busca por respostas, o silêncio de uma mãe sobre a prisão e a tortura são algumas das feridas que acompanharão aquelas pessoas pelo resto de suas vidas.
O traço dos diretores de arte Pedro Franz e Rafael Coutinho e as animações de Mauricio Nunes, Alois De Leo e João Maurício criam um sofisticado mergulho por entre essas memórias tão doloridas. “Torre” prova que, mesmo bastante explorado pelo cinema brasileiro em diversos filmes de ficção e documentários, o período histórico mais traumático da vida nacional ainda pode alimentar experimentações cinematográficas potentes. Animação “Torre”: Delicadeza para falar de traumas de uma vida. Crédito: Estúdio Teremim
BAUNILHA
Numa virada de sagacidade da curadoria, o tema da violência foi parar num lugar no mínimo inesperado com o documentário pernambucano “Baunilha”, de Leo Tabosa. Não estamos falando da fruta, mas do termo usado pelos praticantes do chamado BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), espécie de filosofia sadomasoquista, para designar o sexo convencional,. O curta é o segundo capítulo de uma trilogia criada por Tabosa para falar sobre desejos. Anteriormente ele filmou “Tubarão”, em que mostra um estrangeiro filmando “pegações” gay pela cidade do Recife.
O protagonista de “Baunilha” é o mestre do maior estúdio de BDSM da América Latina, uma referência nacional no assunto. O homem, que nunca se identifica durante o registro, fala sobre a sua relação com o afeto e o sexo, seja ele “baunilha” ou BDSM, enquanto tenta desmistificar uma prática vista de modo tão exótico pela maioria das pessoas. Tenta esclarecer, por exemplo, que o ato só é praticado pelos adeptos de seu estúdio de forma consensual e respeitando diversos limites.
O mestre, que possui uma vida “civil” comum trabalhando como advogado, conta que viveu uma grande perda e isso acabou por influenciar em sua imersão definitiva no mundo BDSM. Após a morte do namorado, ele diz não ter mais encontrado prazer o sexo convencional.
Repleto de imagens de fetichismo e nu masculino, o filme teve sua capacidade provocadora potencializada pela sessão seguinte.
Curta tenta desmistificar uma prática vista de modo tão exótico pela maioria das pessoas. (crédito: Paulo Maia)
POR TRÁS DA LINHA DE ESCUDOS
O pernambucano Marcelo Pedroso vem construindo uma cinematografia bastante particular. Diretor de longas como “Brasil S/A”, “Pacific” e “KFZ-1348”, ele já se destaca como um dos documentaristas mais celebrados de sua geração. O novo “Por Trás da Linha de Escudos” é mais uma prova de sua coragem como realizador. O filme entra num tipo de terreno eticamente fronteiriço, do qual dificilmente se costuma sair impune.
Um dos muitos artistas que militaram no #OcupeEstelita, movimento que lutou contra a construção de um complexo de torres que descaracterizariam um região do Recife, Pedroso testemunhou o embate do grupo com o Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco durante a operação para desocupar o terreno. As imagens de repressão foram captadas por sua câmera e pela de muitos outros colegas presentes e foi o ponto de partida de seu novo longa-metragem.
A partir de então, o diretor conseguiu negociar com o comando do Choque para acompanhar o cotidiano da corporação em treinamentos, operações e aulas. Marcelo entrevista o comandante e os oficiais de diversas patentes, ouvindo seus pontos de vista sobre questões éticas e políticas. No primeiro ato do filme esses depoimentos são intercalados com as imagens da repressão no Estelita, criando uma dinâmica interessante de montagem.
Pedroso se insere no documentário como narrador, no melhor estilo Michael Moore pernambucano. É perceptível seu esforço para humanizar os oficiais do Choque, ainda que não faltem perguntas provocadoras em diversos momentos. Situações por vezes engraçadas contribuem para a fluidez da narrativa. O documentário perde seu impacto quando adere a artifícios alegóricos nem sempre bem sucedidos, como é o caso de um batalhão fictício que utiliza bandeiras do Brasil como escudo.
Em determinado momento, um dos militantes que sofreu com a repressão no Estelita vai até o quartel do Choque ensinar Yoga aos oficiais, numa estratégia que soa um tanto forçada. O filme tem recebido críticas de movimentos sociais a uma suposta visão acrítica e idealizada de um grupo que é acusado de extrema violência contra as camadas sociais menos favorecidas. Foi recebido com muita polêmica no festival Cachoeira Doc e não tem sido diferente aqui em Brasília.
Leave a Reply