Os filmes que não são feitos pra mim

Texto: Ronald Silva. Revisão: Larissa Lisboa. Foto: Larissa Lisboa.

Ser espectador de um filme no cinema é uma experiência, no mínimo, especial. Poder acompanhar uma obra audiovisual em um local pensado exclusivamente para isso, às vezes com uma pipoquinha (ou mais quitutes) nas mãos, é uma verdadeira ruptura do cotidiano e um convite à imersão. Na verdade, é um privilégio. A atividade cinematográfica acontece e se alimenta daqueles que a compuseram, inicialmente, como parte de seu público. Grandes cineastas se tornaram o que são, antes de tudo, por serem pessoas espectadoras de filmes exibidos em salas de cinemas. Essas ações custam algo. Sendo assim, é importante entender o cinema como algo composto não apenas por quem realiza um filme, mas também pela sua exibição e o seu público.

Em 22 de novembro de 2019, último dia da 1ª Mostra Quilombo de Cinema Negro, no Cine Arte Pajuçara, houve o lançamento em Maceió/AL do curta-metragem Ilhas de Calor, dirigido por Ulisses Arthur, obra ficcional gravada na cidade de Viçosa/AL cujos personagens principais são estudantes de uma escola pública, que são interpretados por um grupo de estudantes reais da cidade.

No Arte Pajuçara houve a presença do diretor, sua equipe e elenco, para uma roda de conversa após a exibição com o público. Quando este momento do evento chegou, uma pessoa da plateia perguntou ao diretor por que ele havia “atenuado os problemas que as personagens enfrentaram no filme”, pois afirmava que, em sua própria experiência, sabia que a vida de estudantes de escola pública, em especial LGBTQIA+, era muito mais difícil e violenta do que aquilo que foi retratado no curta.

Essa pessoa era um homem, branco, cisgênero e heterossexual. A protagonista do filme é a atriz Vyctoria Tenóryo, interpretando o personagem Fabrício: sendo ela uma mulher, negra e transgênero, e sua personagem um adolescente, homossexual e afeminado. O diretor respondeu que não acredita que o filme diminuiu ou negou as violências que a realidade ocasiona para as figuras retratadas em sua obra, apenas não se limitava a isso, oferecendo outras formas de expressão, pois havia muito mais sobre elos, e esses mereciam ser apreciados e celebrados.

Este mesmo filme seria exibido em dezembro de 2019 na 10ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano, sendo premiado com os troféus de melhor atuação – para Vyctoria Tenório – e melhor filme; além de, em 2020, ser escolhido para exibição na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

É curioso ressaltar que tanto no dia de exibição na Mostra Sururu, quanto na cerimônia de premiação, a plateia, lotada, era formada em sua maioria por pessoas que não possuíam características e vivências como as do elenco de Ilhas de Calor e de sua premiada atriz. Eu me incluo nessa maioria. Ao testemunhar esses acontecimentos, refleti muito sobre como é fazer um filme sobre algo que seria apreciado por pessoas que vivem uma realidade distante da qual, e de quem, a obra fala.

Pensei em quantas obras se tornaram clássicas e receberam a alcunha de “obras-primas” por atenderem várias características técnicas e de conteúdo, determinadas pelos trabalhos e estudos de pessoas privilegiadas, onde a maioria de seu público é formada por seus semelhantes. Ou quando o que era retratado tentava fugir das vivências de pessoas com privilégios, era contado por quem já dominava as narrativas, e pensada para ser vista pela plateia de seus semelhantes.

Em fazer cinema para um grupo que não é diverso, sobre pessoas que ainda não estão realmente bem inclusas no cinema, tanto na tela, quanto por trás das câmeras, e também nas plateias.

Quando o diretor Ulisses recebeu o prêmio de melhor filme, ele contou como o grupo de estudantes que atuou no curta, ao final das gravações em uma confraternização da equipe, pediram desculpas pelos pais que dificultaram a participação dos mesmos por, inicialmente, não entenderem a proposta e importância daquele trabalho. Ele afirmou que, naquele momento, pensou como “o pobre é bruto”, e que devíamos acolher o que vem dessas pessoas e seus territórios, buscando-os de verdade, para revelar o valor e riqueza que essas pessoas são.

Acredito que a Arte sempre alcançou o seu ápice quando se teve a compreensão de que ela é, acima de tudo, o ato de encontrar. O cinema não foge disso. Ele cresce quando percebe que precisa seguir encontrando, ampliando seu olhar, visando o essencial, reinterpretando e ressignificando o mundo e tudo o que o compõe. Nós avançamos quando pessoas que possuem privilégios, qualquer que seja (como eu, uma pessoa branca), não se sentem menores quando não são o foco daquilo que é dito ou feito; quando se percebe que o lugar de escuta é uma das maiores contribuições que podemos dar, e que não há como fazer parte da solução sem a disposição de estar nesse lugar. Que reconhecer privilégios e preconceitos não é uma tarefa confortável, mas é o que podemos oferecer depois de adotar essa postura de escuta e autorreflexão, nos tornar efetivamente pessoas aliadas pela mudança e equidade.

E o mais importante de tudo: quando existe uma real diversidade de acesso, para realizar e apreciar. O cinema que eu quero não é feito para mim. É pensando para ser diferente de mim. Eu posso me conectar com muitas propostas do que pode ser um filme, mas quero aplaudir mais aquilo que está muito além de quem eu sou. Então podem realizar filmes sem me levar em consideração: ainda estarei lá. Pois é nessa inclusão de quem merece fazer parte de tudo que o cinema será, de fato, pra todes. Sem privilégios, sem exceções. E especial, em tudo.

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