O devir-negro no cinema alagoano: uma reflexão sobre “Mwany” (2013)

Texto: Janderson Felipe. Revisão: Larissa Lisboa.

Este artigo nasce de inquietações seja com o cinema alagoano, com o cinema negro, ou com a necessidade de tensionar as relações acadêmicas com as produções alagoanas, coisa que me parecia tão distante. A produção de conteúdo sobre o cinema daqui é tão escassa, e nós tão necessitados de referências para a compreensão da história do nosso cinema e para além da academia. E mesmo dentro desses poucos referenciais, quase nada se vê sobre nossos filmes, então para mim era importante estar fazendo um artigo sobre cinema alagoano e especificamente sobre esse filme, que provoca outras tensões dentro da produção alagoana. Mwany é entrar num outro tipo de território nessa cinematografia que é bonita, estranha e complexa, mas que existe e acontece.

O texto a seguir está numa linguagem mais acadêmica e discorre sobre situações de produção e imagética do filme, e pode ser lido antes ou depois de assisti-lo.

Introdução

“Tudo que está no meu coração segredo a você minha querida árvore. Sou Sónia, da família Nhamahango que cresci na família Nhacongue”. (Sónia André, em “Mwany” (2013)).

O cinema tem o poder de descolonizar nossos olhares,“Mwany” (2013) de Nivaldo Vasconcelos, é um exemplo disso, filme de Alagoas produzido em 2013, sem financiamento, protagonizado por Sónia André, uma mulher negra moçambicana, que vive seu dia a dia com a filha, Thandy, e que recria o seu país natal na capital alagoana. De forma direta dá para dizer que o filme assume de forma híbrida a ficção e o documentário, em que ao mesmo tempo que dialoga com um naturalismo existe uma quebra da compreensão de uma narrativa clássica.

O presente trabalho busca analisar “Mwany” (2013) numa perspectiva a partir do conceito de devir elaborado por Deleuze[1] que foi retrabalhado por Achille Mbembe[2], o denominado devir-negro proposto neste filme pode falar bastante coisas sobre a produção de cinema neste estado e no Brasil.

Primeiro tem que se pensar que o conceito de devir aparece em várias obras de Deleuze e não existe uma obra única onde ele destrincha o conceito, levando em conta que o autor inicia o conceito a partir da literatura e depois o carrega para as outras artes, então para se ter uma noção mais completa se deve tomar diversas obras do autor, e mesmo que buscando ser o mais claro possível com o conceito, a proposta deste trabalho não é mostrar todos os desdobramentos do mesmo, mas sim o que interessa para a análise fílmica neste artigo. Talvez a principal definição dada por Deleuze sobre devir seja essa:

Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta “o que você devém?” é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 24).

Diante disso se percebe que o devir ele se dá através do encontro, principalmente do contato com o outro, a alteridade, quando se diz que devires não são fenômenos de imitação e nem de assimilação é porque o processo de devir vai contra o de generalização, por isso os primeiros devires que Deleuze vai citar é o devir-animal, o devir-mulher e o devir-negro mesmo que não os desenvolva, porque o devir é justamente esse limiar, que nos arranca das identificações e provoca uma desterritorialização[3] destas condições. Como ao “encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal, de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos” (Deleuze, 1997, p. 11).

Sendo a proposta do devir a de justamente uma fuga do padrão, este padrão que como ele inicia o estudo na literatura que é do homem-branco-cis-hetero-cristão, que é tido como universal e em que só existem estas outras singularidades[4] porque elas não se encaixam nesse padrão.

[…] a ideia de “devir” está ligada à possibilidade ou não de um processo se singularizar. Singularidades femininas, poéticas, homossexuais ou negras podem entrar em ruptura com as estratificações dominantes […], mas não podem existir em si e sim num movimento processual […]. (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p.86).

Esse movimento processual é posto porque o que interessa nesse conceito é justamente este trânsito constante, fugindo dessa territorialização[5] principalmente a deste padrão “homem-branco…”. Segundo Deleuze (1992, p. 211) “o devir não é a história: a história designa somente o conjunto das condições, por mais recentes que sejam, das quais desvia-se a fim de ‘devir’, ou seja, de criar algo novo”. O devir é uma potência criadora. Além disso, ao se refletir sobre as mulheres negras, é esclarecedor o que o filósofo denomina devir minoritário, pois “uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo” (Deleuze, 1992, p. 214).

O devir-negro

São diversos os devires que podem nascer desses “desvios”, apesar de Deleuze pontuar esses devires anteriores citados, muitos não foram desenvolvidos em suas obras, o devir-negro será tomado e conceituado na obra “Crítica da Razão Negra” do pensador camaronês, Achille Mbembe, reconhecendo que outros autores já pavimentaram um caminho pra que se entenda o devir-negro, o principal deles sendo Frantz Fanon[6] em “Pele Negra, Máscaras Brancas”.

Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria – a cripta viva do capital. Mas – e esta é a sua manifesta dualidade -, numa reviravolta espectacular, tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no acto de criação e até de viver em vários tempos e várias histórias ao mesmo tempo. (MBEMBE, 2014, p. 19).

De acordo com Mbembe a palavra “negro” é fruto do capitalismo, com o intuito de representar a exclusão, o embrutecimento e a degradação, sendo fruto de um ideal colonialista uma invenção que não foi feita para se dissociar da categoria de escravo, e sendo a raça algo que existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético, acaba por ser a redução do corpo do indivíduo, num tom de pele, num tipo de cabelo ou aparência essencialmente determinada, sendo fundamental para um processo que transforma a pessoa humana em coisa, objeto ou mercadoria. Mbembe (2014) afirma que o conceito de raça tem a proposta de apaziguar odiando, mantendo o terror, o que acaba criando o alterocídio sendo a necessidade de “constituir o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se ou destruir (quando não se pode controlar)”. (MBEMBE, 2014, p. 26).

Essa condição de “ser outro” é passada para o continente africano também, onde se torna um “não-lugar”, símbolo de atraso, ausente de população e com nenhuma contribuição a humanidade. A obra de Mbembe se debruça em torno disso para trazer um contraponto, e com isso, dissertando que a identidade negra é algo imposto.

Por isso é significante recuperar o que Fanon (2008, p. 122) descreve “minha consciência negra não se assume como a falta de algo. Ela é. Ela é aderente a si própria.”. Num movimento de reafirmar sua singularidade, que não está presa ao que o conceito de raça e a perspectiva colonialista empregam. E por isso continua “[…]. Não é o mundo negro que dita minha conduta. Minha pele negra não é depositária de valores específicos […]” (FANON, 2008, p. 188). Essa necessidade de se colocar contra a imposição do racismo colonialista, junto do conceito elaborado por Mbembe são fundamentais para se combater o que seria uma ideia hegemônica do que é ser negro. E para isso Fanon propõe uma autonomia:

[…] o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a ‘manter as distâncias’; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torna-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais.” (FANON, 2008, p. 96).

Nesse sentido o “ser negro” encontra uma libertação onde pode ser capaz de moldar o seu mundo e encontrar a sua própria maneira de viver, ter suas próprias sensações e vivenciar sua negritude, e que para isto terá que se afastar daquilo que o normatiza, por isso pode-se dizer que essa libertação está no devir-negro, por não se propor a ser resgate da origem de ser negro ou até de revisitar um arcaísmo africano, porque o devir não é fazer uma imitação ou resgate de memória, mas sim o deslocamento dessas singularidades aos valores hegemônicos. O que significa que o devir-negro é não ser nem negro e nem branco de acordo com os valores hegemônicos, é emitir as pistas da negritude que o pensamento hegemônico tenta alinhar por imposição (um exemplo seria utilizar o cabelo crespo, onde o valor hegemônico diz que não pode ser utilizado, ou que deve ser escondido). (COELHO, 2016).

Colocando a vida negra para se libertar dos aprisionamentos impostos, o devir-negro acontece nos momentos de afirmação de formas singulares de existência negra, e até repensando a negritude quanto resposta a vida branca, o devir é a quebra desses aprisionamentos onde o negro é anunciado a partir do branco, é se alimentar das diferenças não só dos brancos, mas dos próprios negros, como Mbembe afirma “há uma singularidade em devir que se alimenta simultaneamente de diferenças entre os Negros, tanto do ponto de vista étnico, geográfico, como linguístico, e de tradições herdeiras do encontro com Todo o Mundo.” (MBEMBE, 2014, p. 167).

Para Coelho (2016) é se abrir a subjetividades negras, que podem ser desde se voltar a uma estética de culturas negras, como ousar um corte diferente de cabelo crespo, podendo também ser entendido como devir-negro uma forma diferente de se usar cabelos crespos, justamente essa abertura a uma produção de diferença em relação ao outro que é usado como referencial, é escapar de uma modelização dominante.

“Sim, como se vê, fazendo-se apelo à humanidade, ao sentimento de dignidade, ao amor, à caridade, seria fácil provar ou forçar a admissão de que o negro é igual ao branco. Mas nosso objetivo é outro. O que nós queremos é ajudar o negro a se libertar do arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial.” (FANON, 2008, P.44).

No fim das contas o devir-negro é questionar um estilo de vida homem-branco, é entrar nas zonas de afirmação das pistas das mais diversas vivências negras. Porque a proposta é falar sobre o processo do ser e não de determinações fixas ou universais, o devir-negro é a libertação, porque o racismo busca justamente enquadrar os corpos negros nessas possibilidades, onde o negro é inferior ao branco. É não mais estar enclausurado.

O devir no cinema

Partindo da elaboração desses dois conceitos, se deve pensar como o devir se aplica dentro do cinema e como pode ser uma maneira de análise cinematográfica. Se entendemos que o devir é esse encontro que se dá, cheio de transmissões mútuas que criam espaços de inseparabilidade, através das alteridades, onde se tornam outros, outras formas de viver e sentir, e que essa relação é assimétrica devido a fuga de uma hegemonia. Podemos pensar que a construção de um filme, que aposta justamente na potência desses encontros pode ser um disparador de outros devires e que esses devires vão poder reproduzir outras estéticas, narrativas e histórias para o cinema. De acordo com Rezende (2013, p. 19):

[…] sugerimos que um filme, em seu processo de produção, não é meramente um possível, mas um conjunto de virtualidades que precisam se transformar, de acordo com as questões e condições a que é submetido. No documentário, é sempre uma diferença que “acontece”, como criação de algo novo (ainda que não necessariamente “inovador”), como heterogênese[7] das questões ou condições inicialmente dadas. (Rezende, 2013, p. 19).

O cinema sempre buscará contar o que os movimentos e os tempos da imagem lhe fazem contar. Por isso se o movimento recebe e estabelece a regra através de um esquema sensório-motor, isto é, apresenta um personagem que reage a uma situação, então existirá uma história. Se, ao contrário, o esquema sensório-motor se quebra, em favor de movimentos sem orientação, desconexos, serão outras formas, devires mais que histórias. (DELEUZE, 1992, p. 77).

Podemos afirmar que esses outros devires estarão presentes, principalmente, no documentário na forma como o personagem é apresentado, por exemplo se é um filme que tem o diretor nesta posição de personagem, pode-se dizer que existe um devir-personagem do diretor. Mas o mais importante dessa afirmação é que o devir no cinema também está para ir de encontro a narrativa dita clássica, onde se espera uma história com começo, meio e fim, o devir também é fugir dessas narrativas e nos trazer outras. Outra coisa que dá para refletir é que esse cinema vai se contrapor ao hegemônico que deve seguir as ordens de um modelo de produção comercial, que justamente bebe dessa narrativa clássica, por isso está em devir os filmes que nos quebram essas narrativas e histórias, o que se poderá dizer de “Mwany” (2013).

Análise do filme: “Mwany” (2013), de Nivaldo Vasconcelos

O cinema alagoano passa por uma fase crescente, tanto de produção quanto no acesso e reconhecimento nacional, com uma circulação considerável de filmes alagoanos em festivais do Brasil e do Mundo nos últimos anos. E mesmo que existam editais de financiamento público em anos recentes, “Mwany” (2013) não se diferencia da maioria da produção alagoana, ao ser uma produção que não recebeu nenhum tipo de financiamento para sua execução. Não há nada mais contra-hegemônico no contexto do cinema brasileiro e do cinema comercial mundial, do que ver um filme alagoano protagonizado por uma mulher moçambicana negra que reinventa seu lugar no mundo.

O entendimento de que “Mwany” (2013), é um filme que traz outros devires cinematográficos e que ele afirma um devir-negro, está a começar por ser um filme que está num jogo entre o que é ficção ou documentário, este hibridismo está justamente para reafirmar um novo lugar através de sua narrativa, onde vemos o dia a dia de Sónia André, imigrante moçambicana que está no Brasil a estudo, com sua filha Thandy, e nos diversos momentos em que o filme foge da abordagem naturalista, ao vermos as duas performarem para a câmera.

Esse jogo constante do filme onde temos dois espaços: o apartamento e o mundo, ou melhor dizendo, a cidade de Maceió. Visto que a câmera dentro do apartamento assume uma postura observacional em que o encontro nasce de uma ausência do cineasta-câmera (objetiva direta), o que faz as performances de Sónia e sua filha Thandy naturalizadas. E em alguns momentos nos perdemos na noção, uma vez que fica impossível de identificar se o que vemos é dia a dia das duas em casa ou a captação da reação delas diante da presença da câmera. Rompendo com o que se espera de uma narrativa clássica que pediria um jogo entre câmera objetiva[8] (visão do cineasta) e subjetiva (visão das personagens) em diversos momentos. Acaba por ser uma quebra na estrutura narrativa que nossos olhos estão acostumados a receber e fazendo com que as imagens que se atualizam com nosso encontro com elas estejam em devir. “Então o cinema pode se chamar cinema-verdade, tanto mais que terá destruído qualquer modelo de verdade para se tornar criador, produtor de verdade: não será um cinema da verdade, mas a verdade do cinema.” (DELEUZE. 1990, p. 183).

A cena inicial de Mwany é chave para se encontrar diversos devires, vemos Sónia vestida de capulanas, trajes moçambicanos, caminhando em direção a uma árvore, onde parece contar um segredo. É possível afirmar que ali está presente um devir-negro, por justamente reinventar um lugar, uma “Moçambique-Alagoas”, com uma situação que para ela poderia ser bastante comum em Moçambique, onde é costume contar um segredo ao baobá (árvore simbólica do conhecimento na cultura africana), mas nessa cena, Sónia não está em Moçambique, ela está em Maceió e nem a árvore é um baobá, acaba por ser a reinvenção de Moçambique em Alagoas. Mbembe teria a dizer que isso é:

[…] por mais longe que seja, há sempre uma estreita relação entre o migrante e o seu lugar de partida. Há algo da ordem da imagem que, a cada vez, o prende e traz de volta. A singularidade parece construir-se no cruzamento entre este ritual de enraizamento e o ritmo de afastamento, na constante passagem do espacial ao temporal e do imaginário ao órfico. (MBEMBE, 2014. P. 173).

E isso é perceptível constantemente nas imagens construídas sobre Sónia, uma necessidade de retorno a terra-natal que a faz recriar essa “Moçambique-Alagoas”, como em outra cena em que está sentada com diversas capulanas, de diferentes cores e texturas ao seu redor, em frente a uma pista  onde transitam carros, é o sentimento de desterritorialização que acomete Sónia pela necessidade de fincar os pés em sua terra, mas não possui controle sobre o mundo que corre a sua volta. E que por mais que busque viver uma Moçambique alagoana ela tem que entrar em contato com as alteridades, brasileiras, nordestinas e alagoanas, com o fato da filha escutar músicas em língua inglesa, e em seguida ter que ensinar as palavras do dialeto de sua comunidade para Thandy, sendo uma terra em que é mais fácil a filha ter contato com um dialeto estrangeiro do que o de sua comunidade natal.

Por isso é constante ver a forma singular de ser moçambicana de Sónia, o que acaba por ser um movimento que também a diferencia dos próprios alagoanos, como no reforço de usar o “mucilo”, um tipo de pasta, que cria uma máscara branca usada para cuidados de pele das mulheres moçambicanas. Sónia anda pelas ruas, vive o seu dia a dia com a máscara branca, e é assim que acontece a construção de sua negritude, um devir-negro que se dá através dessa mulher que constrói a singularidade através dos seus rastros negros, imigratórios e moçambicanos.

Sónia revela que “Mwany” (2013) significa “toda a bagagem cultural que carrega”, ora se isso não pode ser entendido como seu próprio devir no mundo, devir esse que extrapola as telas, durante a Mostra Sururu de Cinema Alagoano[9] de 2013, quando um dos prêmios[10] recebidos pelo filme foi o de melhor atriz, e apesar dos questionamentos sobre o filme em que para alguns era um documentário e que Sónia não estaria “atuando”, a justificativa do júri é bem clara:

“Por ser retratada num instante de rompimento entre os limites imprecisos da ficção e do real, da verdade e do atuado, onde ocorre a fusão entres modelos de linguagens (formatos), o prêmio de melhor atriz vai para Sónia André, por Mwany”. (DA REDAÇÃO, 2013).

Esta justificativa apesar de não declarar, possibilita questionar se eles não poderiam estar falando do devir feito por Sónia no filme e no próprio devir fílmico. Provavelmente a resposta para a polêmica criada sobre a premiação recebida por Sónia possa ser respondida nessa afirmação de Deleuze que afirma:

“”se a alternativa real-fictício é tão completamente ultrapassada é porque a câmera, em vez de talhar um presente, fictício ou real, liga constantemente a personagem ao antes e ao depois”, que irão compor uma imagem direta do tempo. “É preciso que a personagem seja primeiro real, para afirmar a ficção como potência e não como modelo: é preciso que ela comece a fabular para se afinar ainda mais como real, como fictícia”” (DELEUZE, 2007a, p. 185).

Considerações finais

Sónia é Moçambique em Alagoas, mas também é Alagoas em Moçambique em “Mwany” (2013), a bagagem cultural de Sónia mais do que nunca agora está atravessada pelas subjetividades alagoanas, nordestinas e brasileiras. “Mwany” (2013) pode-se dizer que é um caso muito único no cinema alagoano, primeiro por ser um dos poucos filmes reconhecidos como cinema negro, a ser um dos primeiros a ser reconhecido como tal, um dos primeiros a abrir a plataforma Afroflix, responsável por ser um streaming de obras do audiovisual negro brasileiro.

Segundo Oliveira (2016, p. 1) o cinema negro “tem na busca por autonomia da representação das culturas negras no campo das imagens sua principal missão, tendo para isto que lidar com obstáculos em todas as esferas da produção audiovisual”. Com Mwany não foi diferente, ao ter passado por um processo de produção completamente independente e a desconfiança com a premiação.

E apresentar o devir desta mulher imigrante mãe-solo em terras alagoanas, que se mudou com sua filha ainda bebê a estudos há 8 anos e que reafirma o Moçambique dentro de si, mesmo quando não pode mais alcançar a sua terra, ela busca reinventá-la. Nesse encontro de Nivaldo Vasconcelos e Sónia André, pode-se dizer que Nivaldo devém-moçambicano para a feitura desse filme e que essa parceria deu em outras desterritorializações para o cinema alagoano e para Moçambique, onde no filme seguinte da dupla, À Espera (2016), com os dois assumindo a direção, o caminho é em sentido a Moçambique, onde Sónia retorna a sua terra natal para contar a história de crianças e jovens mulheres que são condicionadas ao casamento e a gravidez precoce, e questiona a condição dessas crianças e adolescentes moçambicanas.

“Mwany” (2013) acaba por ser um filme singular no cinema alagoano, devido a toda essas contribuições ao cinema que só o devir pode proporcionar. Em um momento do filme Sónia diz “eu acho que me tornei mais moçambicana quando deixei Moçambique, você sente que pertence a algum povo, e que esse povo faz parte de suas entranhas. E eu digo: não tenho medo de ser moçambicana, não. E eu defendo Moçambique de garra e unha. Defendo meu povo e sobretudo as mulheres moçambicanas […]”. E essa singularidade se deve ao fato da grande personagem que Sónia é, e como o cinema alagoano pode se apresentar potente para a representação de pessoas negras e assim se propondo a compor um imaginário antirracista.

Bastidores de “Mwany”. Foto: Matheus Nobre.

 

Notas:

[1]Devir é o conteúdo próprio do desejo (máquinas desejantes ou agenciamentos): desejar é passar por devires. Deleuze e Guattari enunciam isso no Ante Édipo, mas só fazem disso um conceito específico a partir do Kafka. (ZOURABICHVILI, 2004, p.24)

[2]Professor de História e Ciências Políticas, é um dos pensadores mais relevantes contemporaneamente, tendo uma obra extensa sobre história e política africanas, na qual explora temas do poder e da violência.

[3] “A função de desterritorialização: é o movimento pelo qual ‘se’ deixa o território.” (DELEUZE; GUATTARI, p. 634)

[4] Com efeito, embora à primeira vista pareça a última realidade tanto para a linguagem como para a representação em geral, o indivíduo supõe a convergência de certo número de singularidades, determinando uma condição de fechamento sob a qual se define uma identidade: o fato de que certos predicados sejam escolhidos implica que outros sejam excluídos. (ZOURABICHVILI, 2004, p.54)

[5] “O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, e a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras; elas supõem, antes de tudo, uma expressividade que faz território. É de fato nesse sentido que o território, e as funções que aí se exercem, são produtos da territorialização. A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou componentes de meios tornados qualitativos.” (DELEUZE; GUATTARI, p. 388)

[6] Psiquiatra, ensaísta e revolucionário martinicano, um dos primeiros e principais pensadores anticoloniais e antirracistas.

[7] “Gênese” é também entendida em relação ao novo conceito de “devir”, e é certamente o que mais afasta Deleuze da fenomenologia e de seus herdeiros mesmo ingratos. A fenomenologia “fracassa” ao pensar a heterogeneidade fundamentalmente em jogo no devir (em termos deleuzianos estritos: este não é seu problema, ela coloca um outro problema). (ZOURABICHVILI, 2004, p.8)

[8] “Se resolver numa identidade do tipo EU = EU: identidade da personagem vista e que vê, mas também identidade do cineasta-câmera, que vê a personagem e o que a personagem vê” (DELEUZE, 1990, p. 178).

[9] Criada em 2009, é a principal mostra regional competitiva do Estado.

[10] “Mwany” (2013) nesta edição da Mostra Sururu de Cinema Alagoano recebeu os prêmios de melhor: direção, atriz, plano cinematográfico, direção de fotografia, Prêmio Sesc do Júri Popular e Prêmio Algás de melhor documentário.

 

Referências bibliográficas

 

À ESPERA. 2016. De Sónia André e Nivaldo Vasconcelos. Brasil/Moçambique.

BARBOSA, Cristiano. O espaço em devir no documentário: cartografia dos encontros entre cinema e escola. 2017. 1 recurso online (193 p.). Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322209>. Acesso em: 1 set. 2018.

COELHO, J. F. P. Gritaram-me negra: processos formativos da negritude. 104 f. Dissertação (Mestrado). Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espirito Santo, 2016.

DA REDAÇÃO. Mwany (2013) e o Vulto são os grandes vencedores da Mostra Sururu. Caderno B. Gazeta de Alagoas, 11 dez. 2013. Disponível em: http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=235416. Acesso em: 19 jun. 2019.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mille Plateaux, Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009. [Ed. bras.: Mil platôs, São Paulo, Ed. 34, 5 vols., 1995-1997.]

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro, Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007b.

DELEUZE, Gilles. Cinema II. A Imagem-Tempo. Tradução Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. – Salvador: EDUFBA, 2008.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do desejo. – Petrópolis: Vozes, 2013.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.

MWANY. 2013. De Nivaldo Vasconcelos. Brasil. Disponível em: https://vimeo.com/116765798. Acesso em: 20 jun. 2019.

OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (org.). Encrespando – Anais do I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos Afrodescendentes (ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, 2016, p.175-198.

REZENDE, L. A. Microfísica do documentário: ensaio sobre criação e ontologia do documentário. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

 

Artigo de Janderson Felipe apresentado e publicado no II Seminário Interdisciplinar de Cinema (SIC) da Universidade Federal de Sergipe em 2019.

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