Conversa com Getúlio Ribeiro

Texto: Leonardo Amaral. Revisão: Janderson Felipe, Larissa Lisboa e Lucas Litrento. Fotos: Tothi Cardoso, Guarany Neto e divulgação.

Vencedor da Mostra Aurora da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o longa-metragem Vermelha está agora disponível online, e ficará disponível durante 15 dias no canal da produtora Dafuq Filmes. O intuito é muito simples: fazer com que o máximo de pessoas assistam ao filme.
Para promover seu lançamento, Leonardo Amaral entrevista Getúlio Ribeiro. Conversam e se aprofundam sobre Vermelha e seus processos e temas, os curtas da carreira do diretor goiano (O Que Aprendi Com Meu Pai, Enquanto a Família Dorme, Jonatas), o cinema de quintal brasileiro e o tempo dos espaços. A entrevista foi realizada no dia 04/06/2020 em uma conversa pelo Skype.

Leonardo Amaral: Vamos começar falando sobre esse lançamento online, de onde vem essa ideia.

Getúlio Ribeiro: De início não foi nada muito planejado não, o Larry (Machado) chegou um dia na produtora e disse “a gente podia soltar o Vermelha”. Aí ele deu essa e ideia e por que não, né? Depois falamos com a Bárbara Zaiden, que trabalha na assessoria de imprensa com a gente, pra começar a disponibilizar.

LA: Entendi. Sei que é meio brega essa pergunta logo no começo, mas gosto de como ela, de certa forma, localiza. Como começou seu processo no cinema?

GR: Cara, começou com o ato de assistir filme. Sempre gostei muito de ver filme, tinha uma locadora perto de casa e aí descobri que tinha um catálogo de filmes mais antigos. Aí fui assistindo esses filmes clássicos americanos, depois comecei a ler sobre cinema, e aí filme passou a ser uma parada que eu consumia muito ainda no ensino médio. Quando chegou o terceiro ano pra tomar essa decisão sobre o que fazer, fiquei sabendo que tinha um curso audiovisual aqui em Goiânia e eu nem pensei duas vezes. Caí no curso, conheci muita gente, fiz contato com a galera que ajudou a formar esse período de faculdade com início de trabalho, de atuação no campo e tal, começar o início dessa prática, de uma rotina de cinefilia pra prática pra entender o campo de trabalho. A partir de lá formamos a produtora, começou como coletivo, fazia vídeo na faculdade, começaram os curtas, e tamo aí até hoje.

LA: Quando assisti teu primeiro filme, que foi também o TCC, O Que Aprendi Com Meu Pai, eu achei interessante como deu pra sentir Vermelha nele também. Não exatamente sobre uma questão de tema, mas deu pra sentir um mesmo lidar com a questão do tempo e imagem.

GR: É curioso você falar isso, essa associação dos dois nunca tinha rolado não. O que você acha, o que você vê?

LA: De forma bem solta começa pela relação familiar e as figuras masculinas, que puxa pra algo que gostei muito de Vermelha, essa relação de amizade entre Beto e Gaúcho. Uma coisa de amizade entre homens, camaradagens. Mas que no curta se dá de forma mais distanciada, por essa coisa do cinema de gênero mesmo, eu acho, esse homem assassino e o filme focando nessa prática. Não sei o que essa impressão te diz

GR: Eu tô pensando aqui… Aprendi com Meu Pai foi o primeiro curta que a gente fez com um pouco de grana, que não era muita, mas que já era alguma verba. E a gente tava em um momento de testar os limites fazer um trabalho que fosse além de um exercício de faculdade, um filme de estrada, que viajasse pra várias cidades, tinha um desafio de produção, de testar esse limite. E talvez eu sinta a mesma energia de experimentação inicial dele em Vermelha, mas em outra zona, outra organização, a do caseiro, outra retomada. Talvez nisso, nesse impulso de experimentação e curiosidade. Os dois tem esse frescor: o curta, por ser inicial, e o Vermelha, por isso de longa, por entrar nas questões aqui de casa, dessa intimidade. E também por ainda estar aventurando de alguma forma. Outra coisa também é os dois estarem centrados na figura paterna, eu não reassisto muito meus filmes não, mas eu lembro de rever (O Que Aprendi Com Meu Pai) um tempo atrás e achar um filme muito amargo, denso, principalmente pelo final. Acho que existe um acúmulo dessas questões familiares nos dois, cada um de uma via completamente diferente. O Vermelha tá ali de forma direta, enquanto o curta tá pisando nesse território, começando a sentir isso primeiro pela ficção assumida, pelo gênero.

LA: Tem também uma experimentação com o tempo mesmo. Por exemplo, na cena do curta quando ele tá carregando o corpo de uma das vítimas ao lado da estrada, e aí o carro dele passa e a câmera faz uma pan (panorâmica) pra direita e o segue, e depois corta pra ele dentro. Foi um momento que eu gostei muito, gosto muito dessas experimentações, é como se você colocasse na mesma imagem tempos distintos. É o que acontece muito em Vermelha, e já tava lá.

GR: É o que eu mais piro também, cara. Essa possibilidade da fazer um laboratório de tempo, com o tempo e com o espaço. E passar a ser uma matéria tátil, você esticar e brincar, realmente verdade isso aí, um interesse de olhar pro tempo desde essa época.

LA: A pan como corte.

GR: É a própria elipse.

LA: Também tem os planos e contraplanos do protagonista olhando pra criança, gera um atrito de ser ele mesmo o filho dele, um atrito entre tempo e memória, o que vai vir a ser esse filho dele, como ele próprio se afetou pela relação com o pai.

GR: E talvez outro paralelo que dê pra traçar é que ao mesmo tempo em que traz essas coisas que vão e vem, essa imagem do menino deslocado, os dois filmes tão muito pautados nisso do presente. Por mais que tenha idas e voltas, seja blocado, essa coisa do presente, de não amarrar, não tem uma explicação exata pra resolver o lugar daquele menino, a motivação psicológica do assassino, ele é só um assassino ali e mais nada, e essa coisa do presente, dessa superfície dela, quase de silhueta mesmo.

LA: É interessante como Vermelha nivela tudo nessa silhueta, a maneira como as formas não se declaram enquanto fantasia ou realidade, não cria um juízo de valor entre elas. Fico lembrando do impacto da cena em que Jonas aparece no telhado, lembro que senti como se o filme fosse organizado em volta dela em algum. Pela maneira com que o filme que progride partindo de uma câmera no telhado meio inquieta e vai indo pra umas cenas como essa que tem uma decupagem de planos estáticos.

GR: É como se fossem etapas de segurança e conforto que você vai adquirindo pelo lugar que você vai filmando. Poderia ser qualquer lugar, mas como eu tô em casa, isso de precisar recorrer a uma formalidade de um plano fixo, ou uma imagem que já tenha algum histórico de beleza, ela pode ser usada como uma ironia porque já existe um conforto e um senso de estar à vontade nessa trajetória de estar filmando ali, em que a busca passa a permitir também qualquer quebra de rigidez. Quando você cede a uma imobilidade maior, ou moldura algo cotidiano, corriqueiro, isso passa pela liberdade de assumir aquilo, e o quão à vontade se sente pelo envolvimento que no meu caso são anos e anos porque eu tô filmando meus pais, e minha própria casa. E como gradualmente vai se formando essa escala de rigidez quando ela se permite não se levar tão à sério nessa busca, ou ter uma recusa ao sentimentalismo, tudo através da imagem. Aí acho que vai muito disso, de ter um espaço que eu convivo e é também um laboratório pra essas manifestações de aproximação, olhar e cuidado ao filmar que podem se abrir de forma muito mais tranquila.

Divulgação | Vermelha

LA: No seu segundo curta, o Enquanto a Família Dorme, senti que houve uma coisa semelhante ao primeiro em relação à violência, mas em um movimento diferente, ao invés do personagem produzir a violência, uma coisa dele ir atrás dessa violência que circunda ele nessa urbanidade.

GR: Eu acho que nunca vem com a vontade de falar da violência enquanto tema. Nesse caso, Enquanto a Família Dorme é um filme sobre a noite, sobre a madrugada, o que é poder caminhar por esse horário quase proibido. Não acho que é um exemplo de violência física e que se concretiza, tá muito no imaginário, a gente ouve os disparos mas não sabe o que acontece. Uma coisa meio lúdica, meio fantástica da repetição dos tiros sempre no mesmo horário. Os corpos também não têm uma relação com violência a nível biológico.

LA: Só pra esclarecer que não é uma coisa de limitar o filme a essa temática, é só um link entre a sua filmografia que me saltou.

GR: Ah sim, tranquilo. No caso do Vermelha qual foi a frase que você falou? A violência que não acontece?

LA: É, uma violência que está na iminência, que não é um ato em si, mas lá na briga da rua quando Beto chega com o pau e eles ficam indo e vindo sem realmente executar uma violência física mesmo.

GR: Acho que a imagem mais violenta do Vermelha é aquela em que Gaúcho tá se arrastando rumo a cova, e existe alguma violência nela, do corpo estar em um lugar mais vulnerável, de uma violência comentada. Mas na cena da escada, por exemplo, me é mais uma construção de uma arena pra poder exercitar um pouco essa liberdade de fazer uma cena de conflito. Uma cena bem física, que seja divertida, também pra testar aquelas coisas que a gente estava falando de tempo e espaço. É muito bom ter a rua fechada a noite pra colocar como uma arena e desenrolar isso enquanto cinema, enquanto uma cena clássica de conflito desse cinema que a gente vê mais, de ação e briga. O pessoal vai, ameaça, vai atrás da escada, tem espera, aparece o Beto. Tem um ritmo interior da cena. Essa coisa de prolongar um conflito e não ser uma cena que existe pra ser engrenagem, pra desenrolar a narrativa ou qualquer intenção afetiva do filme. Eu tava com vontade de cair pra um cinema de cena de ação de construção mais clássica e de conflito. E talvez seja a grande cena do filme, no sentido de espichar, uma das melhores cenas do filme.

LA: Gostei muito de como são uma série de ações que vão construindo a tensão, uma escalada que vai de uns 5 caras querendo pegar ele, eles pegando a escada, ele chutando a escada, Beto chegando.

GR: Ela tem uma progressão, um ritmo, que é muito massa de tá pensando e fazendo. A gente gravou essa cena em duas noites, duas madrugadas gravando. E tem um trecho específico também que talvez seja o mais violento dessa coisa que você falou de violência que nunca acontece, que é quando o Welber, um dos capangas com Jonatas, diz que vai dar uma pedrada pra ver se o Gaúcho desce, e aí depois o Gaúcho fala que vai dar uma tijolada na cabeça dele. Por mais que tenha até aquele momento uma construção mais doce, carinhosa, até pra lidar com esses conflitos, nesse momento, soa como se fosse uma violência possível, dentro da brincadeira e da comicidade da coisa toda que tá acontecendo, como seria imaginar um conflito desdobrando pra essa violência que nunca chegou.

LA: É também nessa cena que é o momento de amizade máxima entre Gaúcho e Beto de certa forma, quando o amigo que a gente como público tava até meio inseguro se ainda tava em bons termos ou não chega com um pedaço de pau na mão contra uns 5 caras. Lembra bem umas amizades de homens clássicas do cinema, aquela afetividade “brucutu”.

GR: A relação do Gaúcho com o Beto é bem o que os dois são mesmo no dia a dia, não precisou recorrer à referência. O Beto entra aqui em casa e eles não se cumprimentam direito, esse aspecto bruto da relação é natural dos dois, nem foi preciso recorrer a um trabalho de como criar essa relação. Inclusive foi uma das coisas que foram mais observadas no começo, antes do filme começar a ser gravado, a ser rodado, era muito isso, como o encontro dos dois no quintal era massa, e sempre era meio empolgante. É como se fosse uma conversa que um vai sempre alimentando o outro o tempo inteiro. Eles são muito entusiasmados com as pequenas disputas nos diálogos sobre as coisas mais banais. Existe uma competição agradável na maneira que eles vêm trocando essas ideias. Na real, muito do filme nasceu primeiro com essa observação inicial dos dois, notando isso como algo que já acontecia, já rolava, e como poderia ser filme, cinema em potencial também.

LA: Em Jonatas, seu último curta antes de Vermelha, os personagens estão em um processo de pós-produção de um filme, discutindo a montagem, e aí a partir dessa ideia de como você preza pela montagem, gostaria que você falasse como vê ela em Vermelha.

GR: Sobre a montagem do filme toda, existia uma estrutura, um esqueleto inicial, porque é um filme de cobrança, um cara vai lá e bate na porta, insiste, não consegue, tem que voltar, mas aí tem uma briga, uma confusão, ele morre e volta. Esse é o esqueleto do filme. Mas entre isso, não era possível pela via linear de montagem, de uma escaleta bem racionalizada, conseguir organizar o que é contar esse acúmulo de memória, de perspectiva, de várias coisas que existem na casa e na convivência daqui. Eu vejo muito ele como se fosse uma retomada de uma percepção infantil. Quando você é criança, e tá ali guardando umas imagens na memória, uns fatos, e de repente o filme tenta resgatar e trazer essa mesma perspectiva infantil, de formação, pro presente. Mas aqui isso se torna uma perspectiva e um olhar atuante, como se fosse um deslocamento de tempo que fosse lá atrás no passado e passasse a assumir essa posição pra organizar, ou desorganizar. Quanto mais tempo passa mais a memória faz isso né? Cheio de lapsos. É um labirinto, é treta. E aí, pela via linear isso seria impossível. Então junto com Luciano (Evangelista), que montou o filme comigo, era sempre pensar isso, como deslocar e fazer uma quebra, porque tentando uma radicalidade na montagem, a gente vai conseguir aproximar desse estado de espírito. É só através de ruptura e de uma desordem mesmo, se apegar a uma irresponsabilidade de narrativa, de vício de coesão, e gancho e tal. Então no geral esse aspecto da montagem de quebra, que vai e vem e que tem uma inclinação por ser desorganizada envolve muito isso. A única forma de resgatar essa perspectiva infantil, esse deslocamento de tempo, e dar corpo pra esses vários anos em um filme 1 hora e poucos minutos.

LA: Dentro desse foco na casa há também a relação com a família, quem vive na casa. Muitos cineastas, especialmente nos últimos anos aqui no Brasil, têm filmado mais suas casas, seus familiares, ao mesmo tempo que pra alguns há algumas barreiras aí.

GR: Ah, eu acho tranquilo. Tem uma conversa, e aí deixo as coisas claras, o que vai ser e o que não vai ser, e começa o trabalho. Aqui em casa não passou por muita dificuldade, nem conflito ético, existiu uma coisa mais de “o que é fixar uma imagem definitiva?”, pensando não como filme exibido pra várias pessoas, mas como material de diário, o que tá sendo fixado. É aquela coisa, entender que o filme nunca, jamais vai ser absoluto em retratar o que de fato é a casa, o que de fato é a família. Passou por esse processo de entender isso, desapego, que não corresponde à totalidade.

LA: Outra coisa que se levanta também a partir já do início do filme no telhado é como os prédios comunicam uma relação com a própria cidade.

GR: Na verdade aqueles prédios nem estão tão longe assim. Não existiu tanto uma reflexão sobre a cidade, nem uma tentativa de colocar Goiânia no jogo, como se discutisse Goiânia. A questão sempre foi discutir até o final da rua, e do portão pra dentro, mas sabendo que tendo essa rua e do portão pra dentro, muita coisa acaba sendo dita sobre a cidade. Tem Beto, goiano, pé rachado, nasceu e cresceu aqui, minha mãe também, isso tá no filme, mas não teve vontade de pensar a cidade.

Making of Vermelha. Foto: Tothi Cardoso.

LA: Entendi. A fala final do Beto também remeteu a essa coisa, essa exaltação da localidade, não exatamente só da cidade, mas se perceber localizado no tempo presente do seu grupo, das suas origens.

GR: Eu gosto muito dessa cena, acho uma conversa muito boa, o assunto, tão falando sobre comida na Europa, as verduras de lá e tal. Acho que é um assunto bom pra uma cena, tem um deslocamento massa porque o filme se passa todo nesse quintal e aí a gente fala como é a sopa e verdura da Europa através do Beto.

LA: Em alguns textos e debates sobre o Vermelha foi levantada uma comparação com o cinema da Filmes de Plástico, essa coisa de cinema de quintal, de usar da própria família e espaço. O que acha disso?

GR: Eu gosto muito, cara, do Ela Volta na Quinta, um filmaço pra mim, marcou muito. Foi um filme importante e uma influência, sem dúvida. Todo o movimento, o fato dos caras trazerem isso de filmar a própria casa e a própria rua, fazer filme consistente pra caralho com isso. Foi uma referência real. Tem um filme também que se chama Mundo Incrível Remix, que é também um filmaço. Eles e o A Cidade É Uma Só são os filmes que eu mais gosto, falando desse rolê contemporâneo.

LA: Como você localiza Vermelha pensando o cinema brasileiro em geral? Pergunto porque particularmente essa coisa do filme ser produzido em um estado “fora do eixo” dá uma energizada, acho que tem uma força possibilitadora.

GR: Sendo bem sincero eu não costumo fazer uma reflexão em escala de, por exemplo, quais os fatores de se estar fora do eixo de fato influenciam no caso do Vermelha. Não é pensado pra jogar com isso. Talvez essa decisão por essas influências… talvez já exista uma curiosidade nata do mistério, essa coisa da regionalidade, o que é um cinema de Goiás, o que seria essa marca, como seria esse destaque no desenho do mapa geográfico. A gente pensa isso, e eu penso as vezes de forma genérica como seria o resultado desse cinema e como ele destoa de outros. Mas continua sendo um mistério porque essa coisa de trazer uma regionalidade, uma cidade, nunca vai se resolver. De tempos em tempos podem ter movimentos de fazer um local ter uma cara, e isso vai se desenvolvendo com o tempo, mas no fundo o que eu costumo fazer é me curvar a esse mistério e reconhecer que eu não vou dar conta de trabalhar, trazer o que é Goiânia. Toda reflexão que surge e tudo que surpreende em relação a esse assunto vem como uma surpresa adicional, como uma descoberta que não tava sendo buscada de antemão. Se durante a montagem de Vermelha ou de algum outro projeto nasce um pensamento sobre aqui, sobre o lugar, é muito mais um processo de volta que chega até a mim do que partir com essa missão de desbravar e fechar essa realidade.

LA: Concordo. O regionalismo que mais me agrada tem sempre um ar de consequência, algo impossível que não surja no filme. Mas agora indo pra algo que eu sei que você pensa porque vi em um pequeno vídeo pra o canal curta, você falou nele sobre o tempo dos espaços, e senti que a gente arranhou isso mais cedo, mas me fala mais um pouco de como você vê isso.

GR: Percepção de tempo dos espaços… é louco porque é como se fosse algo constante, ela nunca é sólida, nunca vai virar uma silhueta, como a gente falou antes. Toda vez que eu volto a pensar sobre isso, o quanto já se transformou e vai se transformar, como a própria memória. Você pega um cômodo e tenta traçar uma linha do tempo de o que é que foi aquilo, é movimento o tempo todo. Uma parada orgânica, que não para. Tem esse aspecto de algo que não se fixa, e tem algo maior por cima como se você abrisse um mapa, que é a coisa rígida e sólida da casa. Aí sim é uma estrutura que é o lote, as paredes e tal. Tudo que acontece dentro tá muito vivo e tá se transformando o tempo todo dentro desse algo maior. E é engraçado pensar como na memória o espaço se fixa e essas coisas não se resolvem. E vira cada vez mais essa abstração louca que é. Tem uma parada muito doida que eu tava pensando sobre Vermelha como exercício, e foi uma parada fundamental, pode parecer meio bobo, meio besta, mas foi fundamental mesmo, é um gesto muito simples: pegar uma cadeira que normalmente fica no local X o tempo todo, e pegar essa cadeira e mudar de lugar. Eu lembro de um dia específico que eu não tava fazendo nada, e eu decidi agachar em um canto do quintal que eu nunca tinha ido antes. Eu parei e fiquei lá uns minutos. Aí fiquei olhando, a partir disso comecei a viajar. Onde é o centro? Quando você tá como centro de tudo num espaço, sabe? Qual a distância que se estabelece sobre as coisas, entre as coisas. Quando você coloca um quadro pra fazer um filme, pra delimitar um plano, você tem aquela comunhão de todos os elementos de quadro e de cena sendo presentes e dialogando e sendo vivos. Aí essas trocas, você pegar e mudar a cadeira de lugar e se reposicionar, como esse centro reorganiza tudo, como se fossem mapas astrais mudando o tempo todo, como se tudo tivesse um diálogo constante e cada alteração fizesse com que passasse a existir outros significados dramáticos por essa relação de centro. Aí isso parte pra tudo, pra cadeira que muda de lugar, mesa, móvel, você tira um sofá daqui e põe de lá. Tava pensando nisso esses dias… existe muito uma reflexão de cinema nessas coisas de mudar um móvel, tirar as coisas de lugar. É a matéria de tudo, se é tempo e espaço, o quão próximo e o quão distante você tá de algo.

LA: Lembro de uma cena do filme relacionada a isso de perspectiva e memória e tempo e espaço, que é quando a Debora pinta um quadro da foto da Mãe sentada num galho de árvore, aí ela tá lá no quintal julgando o quadro, e eu achei muito foda como a câmera tá vendo elas de cima e a Debora tá perto de uma árvore do quintal. É como se o quadro que a Mãe segurasse fosse a continuação da imagem que tá fora de quadro, da árvore que a Debora tá perto.

GR: Um fora de quadro e fora de tempo com tudo dialogando ao mesmo tempo.

LA: Como foi a recepção em Tiradentes, ver um filme no mosaico da programação, no contexto de Brasil que a Mostra Aurora traz.

GR: Foi massa. Ter sido selecionado foi uma surpresa massa. Chegando lá o filme é exibido e sai com um prêmio, uma parada que a gente não esperava tanto. Perceber que rolou um entusiasmo, principalmente uma curiosidade do pessoal que acho que despertou por soar meio exótico, um filme que veio de Goiânia, de Goiás, e aí tá alí. E gerar o que ele gerou lá de impressões e tal. Foi curioso isso porque a galera parece que não bota fé mesmo, essa coisa do eixo tá centralizada demais. Muitas vezes tinha esse sentimento de ser uma parada extremamente exótica, mas será que é tão estranho assim mesmo? O que chamou tanta atenção. Então rolou esse estranhamento e surpresa por parte da galera, e foi muito bom também por ser essa experiência de família, estar com meus pais também, ser uma continuidade do filme como uma viagem de família, e eles tão lá acompanhando. É como se tivesse fechado um ciclo não só do filme, mas de várias coisas, coisas de família mesmo. Meu pai ficou super empolgado, foi engraçado.

Vermelha está disponível no YouTube, e os outros 3 curtas citados nessa entrevista estão no Vimeo da produtora Dafuq Filmes. Agradecemos ao diretor Getúlio Ribeiro pelas palavras e tempo cedido, a Larry Machado e Laís Araújo por articularem esse contato, e ao Cineclube Palhaço Degolado que proporcionou essa articulação.

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