[Carta] Acesso ao AudioTransvisual

Texto: Larissa Lisboa. Revisão: Felipe Benício. Foto: Mídia Ninja.

Assisti a Lembro Mais dos Corvos (dir. Gustavo Vinagre) em sua estreia, na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2018. Foi a primeira obra audiovisual brasileira que vi com coautoria de uma pessoa trans, a roteirista e protagonista do filme, Julia Katherine. O filme foi e é uma aula de cinema para mim, assim como semeou e semeia reflexões sobre a presença e o protagonismo de pessoas trans no cinema brasileiro. Vibrei também em presenciar no encerramento da Mostra a premiação de Julia com o Prêmio Helena Ignez.

Copio trecho do discurso de Julia que encontrei no site Mulher no Cinema: “Em seu discurso, Katharine definiu o prêmio como ‘um gesto de amor às mulheres trans, às travestis e às mulheres cis’. ‘Somos todas uma só, somos todas mulheres’, afirmou. ‘Quero que mais mulheres trans estejam aqui no festival.’”

Tenho consciência de que poderia nem ter me aproximado de Lembro Mais dos Corvos ou mesmo tê-lo assistido, se não tivesse estado presente na Mostra em Tiradentes. Poderia ter conhecido Julia apenas quando Lembro Mais dos Corvos e Tea For Two (dir. Julia Katherine) chegaram às salas de cinema, momento que teve mais intensidade em decorrência do fato de que Tea For Two foi o primeiro filme dirigido por uma pessoa trans a entrar no circuito comercial brasileiro.

Assim como reconheço que se não tivesse ouvido Julia salientar mais que uma vez e em mais que uma oportunidade, a ausência de pessoas trans em Mostras, Festivais e no cinema brasileiro como um todo, poderia nem ter dado atenção ao Festival AudioTransvisual, ou ter me contentado em apenas divulgar.

E foi justamente por não me contentar que vim aqui escrever, a partir do meu lugar de fala, de espectadora e pesquisadora, mulher cis e branca, que ficou inspirada em conhecer e reconhecer a ação formativa virtual que foi realizada por André da Costa Pinto, voltada para pessoas trans, sendo uma iniciativa inédita, e formando esta que foi/é a turma pioneira composta por 30 pessoas trans de 13 estados diferentes do país. A ação contou com dois encontros semanais durante dois meses e resultou na realização de 17 curtas-metragens.

Para dar visibilidade e voz ao realizadores trans e aos 17 filmes produzidos, foi criado o Festival AudioTransvisual (@audiotransvisual), que tem realização da Mídia Ninja e da Maria Fita. Tenho acompanhado as mostras e festivais de cinema brasileiro on-line, mas ainda não tinha acompanhado nenhum neste formato, em que a cada dia são liberados filmes no Youtube (disponíveis por 48 horas), e que também são exibidos em sequência (como uma sessão virtual) pelo Facebook, além de contar com debate com todes os realizadores após a sessão.

Tem sido prazeroso assistir aos filmes e, mais ainda, conhecer e reconhecer os artistas trans que foram reunidos através dessas iniciativas. Indico a cobertura que tem sido realizada pelo Mídia Ninja (22, 23 e 24/09), e espero que dê tempo para conferir os filmes. Ressalto que os debates têm sido empoderadores e afetuosos. Para quem estiver aberto à escuta, o festival tá recheado de vida e conhecimento.

É preciso seguir ofertando oportunidades formativas, de reconhecimento, para visibilização e inserção das pessoas trans no mercado de trabalho, entre eles, o mercado audiovisual brasileiro.

Celebro as vivências registradas pelos filmes que listo aqui.

A Neta de Cibele (Um filme de Nicole Terra Carvalho). Sinopse: Cibele de Souza Pimentel e Nicole Alice Carvalho de Souza. Avó e neta. Nicole decidiu sair de casa para descobrir mais de si. Cibele a esperava voltar de braços abertos. Hoje, em meio à pandemia de Covid-19, ambas contam como o respeito, a cumplicidade, o carinho e o amor não só salvaram relação das duas mas também a vida de uma mulher idosa e de uma mulher trans.

Tia Iracy Futebol Clube (Um filme de Layla Sah). Sinopse: Maria Iracy, mais conhecida popular e carinhosamente como TIA IRACY, principalmente pelos jogadores do seu time de futebol, é uma mulher forte e ao mesmo tempo delicada, que fez da sua vida uma partida de futebol e que apesar de ter tido tudo pra perder os campeonatos da vida, obteve muito mais vitórias que derrotas. Um filme que fala sobre jovialidade na melhor idade, sobre afeto, e, sobretudo o seu amor por um fenômeno tão imposto ao ser masculino (o futebol), na visão de uma mulher que de tão materna, se torna diariamente a maior referência de delicadeza e feminilidade na vida de sua filha transexual.

Oficina do Diabo (Um filme de Caim Pacheco). Sinopse: A mente enquanto espaço e o monstrinho ansioso que se desenvolve nela, transforma os pensamentos em nós e se enrola neles a ponto de ficar preso. O momento que antecede um surto.

À Procura de Pandora (Um filme de Louise Xavier). Sinopse: Safira é uma mulher discreta, inteligente, sonhadora, que vive na zona Sul do Rio de Janeiro. De dia, ela é uma mulher que faz seus afazeres domésticos, que pedala pela orla nas horas vagas (onde acaba conhecendo Guga, um rapaz que fará de tudo para conquistar sua atenção) e a noite, Safira vira Ruby, uma cam girl para lá de quente. Uma ligação vem para mudar sua vida, sua tia-avó acaba de morrer e deixa de herança uma gata e um bilhete. Safira decide doar a bichana, porém, com o passar dos dias, elas se apegam e ela acaba desistindo da doação, mas um descuido ao deixar a porta encostada, dá mais uma reviravolta na vida da Cam Girl: Pandora desaparece. Ela então decide ler o bilhete deixado pela sua tia-avó e se dá conta de que não foi só sua companheira que desapareceu.

A hora do banho (Um filme de Cenobitch Monroe). Sinopse: Obra audiovisual sobre terapia hormonal, seus efeitos, disforia, depressão e de uma corpa transvestigenere não-binária a partir de uma vídeoarte performática experimental.

Bhoreal (Um filme de Bernardo Assis). Sinopse: Em meio a uma pandemia onde muitos se encontram vulneráveis, a Drag Queen Gérvasia Bhoreal – vivida pelo professor Lorenzzo Di Padilla – percorre as ruas de São Paulo entregando marmitas, cobertores e abraços.

Graça em Tempo de Pandemia (Um filme de Rhany Merces). Sinopse: Graça enfrenta o isolamento social causado pelo COVID-19 em 2020. Vinda do Interior, mãe de travesti, idosa e moradora de favela, o documentário traz a história de força e superação desta mulher espetacular através de lembranças durante a pandemia.

A Corpa Fala (Um filme de Gabs Torres). Sinopse: Com a necessidade de se enxergar em uma sociedade que limita as infinitas possibilidades de vida, Gabs Torres reescreve sua história a partir da captação de uma performance em uma cachoeira, incorporando e transmutando sua essência mais pura e sagrada através de movimentações, expressões e não expressões.

Nelliel Mãe Gamer Mulher (Um filme de Jane Beatriz). Sinopse: As mulheres estão cada vez mais dominando o mundo dos jogos, no entanto, ainda são invisíveis, mas quem são elas? Nesse documentário, vou mostrar a Neliel, primeira Head Coach brasileira de League Of Legends.

A Coisa Tá Russa (Um filme de Deborah Gomes). Sinopse: Em “A Coisa Tá Russa”, conto a história da Chris, a minha história, a história de várias e várias pessoas que sofrem de transtorno bipolar e que não tem quase ou nenhuma representatividade em nenhum meio, mostrando que a narrativa cinematográfica pode ser realizada para dar atenção a causas importantes de saúde mental, usando o poder do corte para mostrar os efeitos dessa doença que me consome todo dia.

Adão (Um filme de Henrique Bulhões). Sinopse: O que teria a dizer da cultura que criamos o primeiro homem do mundo? O que é ser masculino e qual o papel dessa essência transformada em corpo e prisão? Na solidão do mundo e solitude de seu ser, Adão lida com um inferno mais real que maçãs, cobras e uma alguém chamada Eva.

Feminação (Um filme de Victoria Helena). Sinopse: Inspirado em poemas da autora Patrícia Pacheco, um grupo de mulheres formadoras de opinião, colocam em pauta assuntos tais quais as violências sofridas por mulheres em seu cotidiano. A arte vídeo documental, traz relatos da ativista Solange Revoredo, contando um pouco de sua vivência com o abusador, desde agressões físicas e psicológicas à volta por cima e como fundou o GRAM (Grupo de Apoio a Mulher). Colocando em pauta relacionamentos abusivos, e os traumas causados por esse tipo de relação.

Como nenhuma inteligência já amou (Um filme de Sophi Saphirah). Sinopse: Num mundo onde são naturais a automação das coisas e as desigualdades sociais, seria possível seres humanos desfrutarem de relações afetivas com as máquinas? Uma grande revelação surpreende os milhares de consumidores de uma grande empresa de tecnologia. Até que ponto essa sociedade poderia se sustentar?

Amei-a (Um filme de Vinicius Cassano). Sinopse: Inspirado no conto “Pêra, uva ou maçã?” de Caio Fernando Abreu, o curta tem como objetivo mostrar a solidão vivida na quarentena, na perspectiva de objetos inanimados questionando o “novo normal”, mostrando um pouco da rotina e das relações sociais.

Lugar de origens (Um filme de Luca Andrade). Sinopse: Alocados como acolhides e circundados na insegurança de um predio situado no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, um grupo de pessoas transvestigeneres, retrata suas realidades dentre as diferenças sociais cotidianas, enaltecendo suas potencias de maneira a reconhecer e reafimar seus lugares. Acessar esse universo vai além do que o lugar tem a ofertar, fala sobre existir!

IAUARAETE (Um filme de Xan Marçall). Sinopse: Uma casa na periferia de Salvador. É manhã. Uma laje residencial onde se desenrola a situação. ELA uma mulher Trans de aproximadamente 35 anos, prepara o espaço para uma cerimonia religiosa, Noite de Iauara Etê, entidade encantada das matas virgens, que ELA recebe nas noites de Lua cheia. Iauara Etê é gente e bicho, é onça e mulher. Espirito ancestral encarnado, que baixa para comunicar as verdades do mundo.

Café com Rebu (Um filme de Danny Barbosa). Sinopse: Vanessa é uma travesti de 37 anos, negra, que trabalha como manicure atendendo em domicílio e, que há algum tempo conseguiu deixar a vida de prostituição nas ruas da cidade onde vive. Isolamento social estabelecido na cidade. Vanessa dentro de sua residência aguarda a aprovação do auxílio emergencial do governo. Sua situação está em análise. A pouca comida não durará muito. As clientes desmarcaram o atendimento para aquele período. Estava, então, sem exercer as duas funções que aprendera: a de manicure/designer de sobrancelha e a de garota de programa. Até que um encontro no meio da tarde de uma quarta-feira a surpreende e a faz questionar a natureza da visita.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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