Texto: Leonardo A. Amorim. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.
O início de Ostinato mostra Arrigo Barnabé abrindo um piano em uma sala com a rua ao fundo, é um filme sobre um artista em que o mundo está presente, do qual não se separam para “falar dele”. E falar é algo que Barnabé faz facilmente; Paula Gaitán tem talento para encontrar personagens interessantíssimos e o tato para deixá-los à vontade. Nessa abundância de material, a diretora encontra a maneira de conectar, sabendo, da mesma forma que a citação que aparece no início do filme demonstra, que a nota seguinte altera a anterior: Ostinato se constrói pela simbiose entre as maneiras que Barnabé e Gaitán veem suas artes.
Barnabé explica que ostinato é uma técnica que emprega em suas composições, a repetição de uma frase musical, e ele afirma que faz de maneira obsessiva. Ter essa informação enquanto vemos o músico em alguns momentos do filme observando a rua ao lado, andando por ela, e de certa forma também encontrando repetição: o espaço e o movimento do dia, o espaço e a ausência na noite. A partir dessa conexão com o mundo podemos entender o motivo que o músico encara sua arte como algo “erudito com uma levada de música popular”. E o mesmo está no cinema de Paula Gaitán: o que a diretora transmite para o público é um interesse genuíno pelo que seus personagens pensam, pelo que fazem. Uma fascinação que não é a da idolatria, mas a da conversa do olho no olho, a presença. Qualquer uma das partes não está no filme para esclarecer algo sobre a outra.
A partir do momento que Barnabé começa a falar, ele e Gaitán se engatam em conversa, não param, porque a música e a fala encadeiam os momentos de conversa entre o entrevistado e a diretora, sem brechas: “É o ritmo que dá vida”. Logo de início há uma montagem paralela que compõem a fala do entrevistado e demonstra o controle do ritmo e do conteúdo captado. Uma das tantas formas que Gaitán e sua equipe destacam Barnabé, sem fazer questão de se esconderem, de se colocarem somente enquanto observadores. Há pessoas fazendo um filme, experimentando com o cinema; os comentários dos bastidores interferem no som de quando Barnabé está tocando piano, as interrupções, a inserção de trechos de áudios de outros momentos do filme, experimentos com voiceovers, “mas continua falando”, e Barnabé começa a tocar.
Na cena mais longa do filme, o compositor fala sobre como a arte revolucionária hoje tem uma tendência escatológica, o que gera um momento de dúvida, tanto por parte do entrevistado quanto por Gaitán, que vai soltando proposições do que isso pode querer dizer, um momento mais intenso do interesse da diretora, em que sua voz se faz mais ouvida e dessa forma também se destaca a sua investigação, o seu interesse. Gaitán ressalta que enxerga que a música trabalha com esse espaço incógnito, de suspensão, que é possível entender como a música traz uma expressão não-exata, não-explícita. Mas ao mesmo tempo, Barnabé traz um contraponto: cita um quarteto de Beethoven que é “pensamento puro”. É um momento em que desenvolvem uma discussão sem resposta exata, e retira o público de uma sensação comum a boa parte da arte hoje em dia: a da certeza, a da mensagem direta. É também uma cena que nos faz retornar ao início dela mesma, com a repetição de uma frase específica, e no seu fim, ao começo do filme, encerrando onde começamos.
Através dos silêncios dessa conversa, percebemos que a constância não é a música e a fala como interpretamos no começo, mas a dúvida. Um filme que parecia tão direto em seu início se torna elusivo, a nota seguinte altera a anterior, porque Gaitán, através da repetição, da montagem, injeta no filme a mesma “não-resposta”, o “incógnito”, visto por ela na música: Ostinato se constrói e desconstrói pela simbiose entre as maneiras que Barnabé e Gaitán veem suas artes, de novo e de novo.
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