Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.
O crítico francês Jean Douchet, em um texto clássico sobre crítica de cinema (A arte de amar, 1961) escreveu que um crítico para fazer um bom texto deve buscar um equilíbrio entre a razão e a emoção. Confesso minha dificuldade em empregar essa metodologia após assistir a Nada será como antes, de Ana Rieper. Isso porque assistir ao documentário sobre o Clube da Esquina, ou mais especificamente, sobre o processo de composição das músicas do icônico LP duplo, fui tomado por uma baita emoção, pois funcionou para mim como se estivessem contando espiritualmente um pouco da minha vida, da minha formação como sujeito que sou hoje.
O LP “Clube da Esquina nº 1” (1972) foi decisivo para a minha juventude entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Lembro de ouvir infinitamente tanto o volume 1 quanto o 2, lançado em 1979. A ideia de um grupo heterogêneo, livre, que flertava com o caótico e que juntos fizeram um disco mítico está presente no documentário de Ana Rieper. O filme enfoca muito os bastidores do clube (que se localizava na encruzilhada das ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Belo Horizonte) e no universo que propiciou as composições das músicas. Não se deve esperar nada além disso, ainda mais que o filme tem apenas 76 minutos de duração. Quando entram os primeiros créditos finais levei até um susto, já que a impressão que me ficou era que o filme ainda não tinha nem 40 minutos. Fiquei inconformado com a sua duração, achei que havia ocorrido algum erro na projeção. Àquela altura, eu já estava para lá de mergulhado e entorpecido nas histórias contadas pelos integrantes do clube e nas músicas que ecoaram fortemente no fundo de minha alma.
Nada será como antes não tem finalidade de explicar, contextualizar, nem de dar conta do amplo universo do Clube da Esquina e isso antes de ser um problema, é um aspecto salutar que delimita a abordagem de Ana Rieper. O filme tem muitos personagens que descrevem suas participações no Clube da Esquina, alguns deles dão depoimentos valorosos e esclarecedores, como Toninho Horta, Beto Guedes, Milton Nascimento, Robertinho Silva, Tavinho Moura, Marcio Borges, dentre outros fantásticos. Muitas dessas entrevistas desvendam o processo anárquico e livre dos arranjos, os momentos de improvisação, sem grandes planejamentos de quais músicos tocariam determinada música, mas que iam chegando e assumindo os mais variados instrumentos, como um verdadeiro “clube” deveria ser.
Há uma mistura de arquivos antigos e depoimentos mais atuais. O filme tenta costurar a visão dos compositores, letristas e músicos sobre esse fenômeno musical inspirado que agregou influências diversas desde o jazz, a música brasileira, a percussão afro, o rock (em especial o progressivo e The Beatles), o folk norte-americano, o choro, os ritmos latinos da América do Sul, apenas para citar alguns.
Nada será como antes aposta ainda na amizade e nos encontros, busca resgatar como os principais membros do clube se conheceram, sublinhando os causos, muitos deles engraçados e sui generis, além do esforço de tentar recordar acerca da origem do nome “Clube da Esquina”. A amizade passa a ser algo central e determinante na relação entre todos que transitavam por lá, não há ainda hoje nenhuma querela entre eles, o que é fantástico, só o amor pela música e a amizade, a admiração e o respeito entre eles. Ronaldo Bastos chega a dizer que ele se sentia compositor de todas as músicas daquele tempo, o que demonstra o clima de integração existente no ad eternum. Os músicos entram no documentário para falar e explorar acerca das nuances melódicas e harmônicas das músicas e detalhar as maiores influências de cada um dos integrantes do clube.
E eu sigo aqui, me esmerando e tentando exercer a difícil tarefa de manter o tal equilíbrio entre a razão e a emoção, sugerido por Jean Douchet, conforme descrevi no início do meu texto (alguns ainda dizem que é fácil ser crítico de cinema). O que destaco como o maior senão de Nada será como antes está na sua duração diminuta frente a tantas histórias, que caso fosse maior, permitiria aprofundar mais os bastidores de outras músicas que ficaram sem ser analisadas.
Diante do gostinho de quero mais que fica a aguar a boca dos inúmeros fãs do Clube da Esquina, nos quais eu me incluo, tem uma sequência que me tocou profundamente, quando perto do fim um jeep desliza numa estrada de terra, enquanto ouvimos a canção “Clube da Esquina nº 2”. A vontade é pegar carona nesse carro e ir infinitamente com ele até o infinito da memória. O que posso dizer, talvez como consolo de quem viveu a época, é que é necessário se preparar e levar uns lencinhos, porque as lágrimas serão inevitáveis. Mas olhe para o lado nesse momento, quem sabe não há alguém, como este crítico que vos escreve, a também precisar do seu lencinho.
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