Crítica: Cidade Líquida (dir. Laís Araújo) 

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação

Cidade Líquida (Dir. Laís Araújo, 2015) 

Em Cidade Líquida (Dir. Laís Araújo, 2015), a câmera é como um olho “profano” sobre a magnificência de certos espaços. Formalmente autônoma, ela “mapeia” a paisagem aquática e de infraestrutura (de ruínas e edifícios) de Maceió. E para reiterar a força dessa impressão que resta (como se a abordagem fosse realmente construtora de um “quadro topográfico” do litoral), a fotografia adere ao Azul Marinho de um filtro, à beira de se restringir em sua dimensão cromática. 

O filme resgata os indícios de memória de um clube aquático (o Alagoas Iate Clube) e de um altar (o Papódromo, erguido para visita do Papa João Paulo II, em 1991): duas obras de infraestrutura de valor histórico, construídas em torno de águas (a do mar e a da Laguna), que foram abandonadas ao longo dos anos, “submergindo” seus significados. O argumento reflete o problema da segregação socioespacial da cidade. Por isso, com esse véu líquido sobre a objetiva, a água é representada a partir da perspectiva de quem a contempla com certa distância (ou sob uma divisória do espaço). 

Contemplamos as águas pacíficas do mar de Maceió. Aos pés de uma estátua de cavalo-marinho emersa (às bordas da ruína do antigo Alagoinhas), como piscinas, como um oásis ofertado à vida em ócio, alguns jovens mergulham e nadam. É de longe que a diretora propõe a captura do mar, por uma teleobjetiva. Ao lado da vida corrente (de pessoas que passam, conversam e nadam), o mar aparece como um ornamento imponente quando inserido em cada plano: ou se estende ao horizonte, como um manto fracionando a composição do quadro, enquanto primeiro plano; ou ergue-se como uma tela monumental enquanto segundo plano. 

O olhar da câmera não é só distante — apesar do azul da cinematografia querer negar essa distância, representando como se a cidade fosse uma célula pertencente ao mar e, por isso, expressasse suas memórias, segundo o movimento —, também é estabilizado e silencioso. Em plano aberto, a câmera faz panorâmicas que enquadram o céu e o mar. A água, por vezes, é uma via, um canal; um conjunto de ramificações que constitui uma passagem. Podendo também ser um meio de subsistência do trabalhador (de diversas maneiras); é ainda o espaço onde melhor se contempla os espaços, onde o olho efetivamente trafega. Tal como, em À Margem (Dir. Tarcísio Ferreira, 2019) onde a grande-angular visa englobar todo o universo da sua problemática social, evidenciando a repetição de uma mesma abordagem. 

Num jogo de planos, quando a câmera deseja cobrir a diversidade dos espaços e das infraestruturas (com saltos de espaços, na diegese), segundo a segmentação da montagem e o arranjo da trilha sonora, manifesta-se a dança. Há certo prazer em deixar o olhar ser conduzido pelos movimentos da câmera (já sendo, esses movimentos, um artifício formal para “esvoaçar as memórias” dos espaços?), dado o caráter vistoso da amplidão de imagens, e a sensibilidade de Laís Araújo, voltada para o minimalismo de sua composição. Mas, aqui, a dança não existe como uma expressão artística isolada: é uma resposta orgânica à paisagem e à memória da cidade. O jogo de planos, de imagens das águas e do concreto, evoca a reflexão sobre a dualidade da cidade, marcada por um abismo, isto é, pelas desigualdades e segregação socioespacial.

A diretora também fixa a câmera sobre o eixo de uma canoa e, como um olho autônomo, o dispositivo vagueia sobre a Laguna Mundaú. Vemos cortes com gaps escuros entre planos (como se fosse o “piscar de olhos” da câmera). Fincada à canoa, a câmera cruza uma aparente alameda de mangue. Enquanto somos essa câmera-olho sobre a canoa, passeamos por florestas sobre águas (ligeiramente sobre águas poluídas, já não mais azuis) — em movimento de dolly, contrário à contemplação dos edifícios da orla, como quem deseja lançar as imagens para o lado, ou seja, “deletar” a visão —, a visão de crianças brincando e lavando as mãos à margem (ao lado de pilhas de lixo), em território comunitário. Enquanto as imagens da orla marítima são contemplativas, essas que contornam a favela pelas margens da Laguna são apressadas. De modo que, a pressa na captura das imagens sugere o medo da violência por parte da equipe do filme. 

A câmera ouve relatos sem rostos — aliás, tal como Bumba Meu Jaraguá (Dir. Coletiva, 2015), a montagem também recorta das falas o que há de mais expressivo — e incorpora, como um olho autônomo, os espaços litorâneos da cidade de Maceió, os monumentos e as ruínas que indicam um passado, que representam memórias (enquadrando sobre o chão artefatos, como papéis e placas, que já se transformaram em lixo). Esses artefatos são resquícios, evidências das memórias narradas pelos depoentes. E, por fim, da perspectiva do interior de um automóvel estacionado ao semáforo, Laís Araújo registra a água de uma garrafa PET escorrendo sobre o para-brisa e, imediatamente, sendo enxugada por dois trabalhadores informais.

Como resposta dramática ao desdobramento das imagens dos espaços segregados; em certo momento, ainda, a tela do filme fica escura e ouvimos a captura de uma voz de pavor (é como se um crime houvesse ocorrido durante as gravações; mas nós, espectadores, não compreendemos direito). Daí, como argumento formal à temática da segregação socioespacial, é que o olhar da câmera é o de quem está na canoa, ou no automóvel, isto é, sempre fora da água, ou por cima desta. É o de quem contempla a beleza do mar acalentado (sem dançar, sem mergulhar, sem o desfrutar), as fachadas dos edifícios em contra-plongée (sem os subir, sem a experiência da vertigem), com frieza e deslumbramento. É a representação proposital do olhar de quem foge da feiura (moral) da pobreza, de quem apenas profana a memória do paraíso e fecha as pálpebras dos olhos diante do medo da violência; ou seja, é a representação proposital do olhar já segregado.

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