Cine Fialho: A metade de nós (dir. Flávio Botelho, 2024)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.

O cinema rotineiramente trata de temas espinhosos e difíceis e A Metade de Nós, de Flávio Botelho, mergulha na dor de pai e mãe depois de perder um filho que se suicidou. O que podemos dizer, em um primeiro momento, é que a direção trata o tema com muita seriedade e respeitando os silêncios inerentes ao assunto e que valorizam o vazio existencial que o tema impõe.

A escolha do elenco foi um dos grandes acertos de A Metade de Nós. Denise Weinberg, Cacá Amaral, Kelner Macedo e Clarisse Niskier, não poderia ser melhor. É evidente a busca desses atores em entender a proposta e a executá-la com o máximo de cuidado e competência. O enredo basicamente se divide entre Winberg e Cacá, na maneira como cada um tenta lidar com uma situação limite, algo irreparável ou insuperável. Daí o acerto de Flávio Botelho em trabalhar com um filme de personagem, enfocando a dor intransponível do casal.

A câmera basicamente está a serviço dos atores, atenta a flagrar sobretudo os rostos que não conseguem esconder cada segundo de sofrimento. O que vem depois dessa perda terrível é uma espécie de recomeço da vida, só que agora tendo apenas a tristeza como parte integrante dela. Tentar conviver com a ausência, com a culpa, que sempre estará ali presente. “Eu quase fui visitá-lo no dia fatídico”, diz o pai. “Como não vimos que ele estava tão infeliz?”, pergunta a mãe. São frases de pessoas que tentam buscar respostas que jamais serão respondidas.

Mesmo que o filme encare a dor de frente, em nenhum momento a direção descamba para cenas dramaticamente apelativas, o que realmente é preciso ser dito. As cenas de choro são secas, sem música ambiente ou discursos melosos, a tristeza aqui, a dor profunda é mostrada pelos silêncios, olhares inconformados e distantes. A câmera não tenta buscar um algo mais, um ângulo tal que pudesse mostrar um quê a mais. Todos os temas levantados ficam muito para a reflexão dos espectadores.

O que eu sempre critico, dos filmes quererem sublinhar emoções, dores e outros sentimentos. A Metade de Nós sabe lidar com a relação emoção/razão, sem duvidar da capacidade de discernimento de cada um de nós que assistimos ao filme. Outro mérito que quero destacar da direção é como trata a relação entre o personagem de Cacá Amaral e Kelner Macedo, uma relação adulta, sem julgamentos e com uma naturalidade impressionante. É muito bonito como em muitas situações, Flávio Botelho consegue quase o impossível: filmar o vazio existencial dos personagens. Um vazio, que muitas vezes é muito evidente, mas difícil de preencher, por não sabermos como exatamente fazê-lo, nem de onde exatamente ele vem. É o vazio da impotência, um sentimento típico do mundo contemporâneo, da impessoalidade ditado pelo processo de urbanização das grandes cidades.

A Metade de Nós levanta questões muito interessantes a respeito da relação entre humanidade contemporânea e medicina. De um certo desrespeito e vulgaridade em como os médicos andam cuidando da vida das pessoas. Sabe-se hoje do poder que envolve a indústria farmacêutica em todo o mundo e a pressão que os médicos sofrem para ministrar alguns medicamentos, independentemente dos altos riscos que eles podem produzir para os corpos e alterar a condição psíquica dos pacientes. A personagem da mãe, interpretada pela ótima Denise Weinberg, fica obcecada pelo assunto, a ponto de querer matar o psiquiatra do filho morto, inclusive, chega a ler para o médico a bula do remédio tarja preta receitado por ele, que fica sem ter o que responder à mãe.

Óbvio que essa é uma questão muitíssima delicada, mas devemos ressaltar o quanto ela é crucial de ser levantada e debatida por todos nós como sociedade. A domesticação dos corpos que o sistema econômico cada vez mais explorador impinge a todos deve ser denunciada, e discutida com mais ênfase, afinal, envolve a todos que transitam no atual mundo do trabalho. Se a indústria farmacêutica enriquece a muitos, isso quer dizer que ela envolve um esquema em que médicos são mais vítimas que algozes, embora sejam muitas vezes cúmplices silenciosos de um esquema que ameaça a vida de muitos que buscam ajuda médica por não aguentarem a pressão do mundo de trabalho.

É muito importante A Metade de Nós levantar o assunto da indústria farmacêutica, embora senti realmente uma necessidade do filme aprofundar mais essa questão relevante e levá-la adiante. Talvez essa luta pudesse realmente fazer algum sentido para os personagens, especialmente para o ato de ter que lidar com a dor incurável de perder um filho. O filme poderia ter cutucado mais esse tema, talvez para ampliar a dor desse casal, e vermos que ela pode ser a de tantas outras famílias, que igualmente também são vítimas desse matadouro em que se tornou a indústria mais lucrativa do momento: a dos medicamentos (basta ver a proliferação das farmácias no Brasil). É um grande mérito do filme, quando ele levanta corajosamente a bola dessa discussão, mas uma baita decepção quando ele não a corta, até atingir os grandes tubarões da medicina, que nada estão preocupados com a saúde e vida das pessoas, apenas com o seu lucro fácil.

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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