Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: Pedro Perdigão
Transe, antes de tudo, é um poderoso documento sobre a ingenuidade e prepotência de uma geração jovem e de classe média que considerava que a vida dos brasileiros era igual a sua. Daí o susto quando percebe que a sua forma de ver e sentir a vida representava uma bolha, não a maioria da população. O filme de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães parte de uma ideia híbrida entre o registro ficcional e documental para falar da época das eleições presidenciais de 2018, em que Lula estava preso e Fernando Haddah e Bolsonaro disputam o cargo máximo do país.
Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães constroem uma estrutura narrativa muito coerente, que parte do ponto de vista do trio protagonista, formado por Luisa Arraes, Johnny Massaro e Ravel Andrade, três jovens que vivem de maneira libertária uma relação que inicialmente é de casal entre Ravel e Luisa, mas que vai se abrindo com a chegada do aventureiro e sedutor Johnny. Não existe um pano de fundo, pois os três vivem a ascensão de Bolsonaro nas pesquisas e nas urnas, em um período que será o mais terrível da história do Brasil. O contexto está de tal maneira entrelaçado ao enredo, que a noção de pano de fundo perde o sentido. Aqui, a história está permeada pela situação política do país, sem hierarquização.
As diretoras vão cruzando a vida cotidiana dos três jovens em um apartamento na Lapa com depoimentos dilacerantes de Bolsonaro em relação aos direitos civis e humanos, além de introduzirem as canções de Caetano Veloso, sempre na voz de Ravel com o violão e às vezes na de Luisa no piano. Essas músicas, muito bem escolhidas inclusive, vão costurando os momentos tanto da relação entre Ravel e Luisa quanto do próprio país. São especialmente lindas as partes em que Ravel canta Ele me deu um beijo na boca, Podres Poderes e Muito Romântico (esta que diz algo muito forte para esse momento: “nenhuma força virá me fazer calar” e “canto somente o que não pode mais se calar”).
Aos poucos as diretoras vão mostrando as contradições que movem a vida desse trisal, como por exemplo, a observação de uma mulher preta em um bar que diz que o movimento #EleNão não possuía muitas mulheres pretas presentes nas manifestações e que isso deixava evidente o quanto o movimento não incorporava os corpos de favelados, que possivelmente estava pensando a política por outras perspectivas. Esse aspecto das bolhas está muito bem documentado pelo filme tanto pelas imagens documentais quanto nas ficcionais. Como o filme retrata muito um determinado momento político, in loco, as diretoras abusam da câmera na mão, o que registra bem as instabilidades emocionais dos personagens.
Quando Bolsonaro abre favoritismo nas pesquisas, esses grupos conscientes do mal que ele representa, vão às ruas tentar mudar o voto das pessoas, mas já era tarde, pois o fosso entre o povo e essa camada média da sociedade já estava mais do que acentuado. Quando Luisa revê João, menino negro criado com ela na infância e filho de sua babá, as diferenças ficam latentes. João vai votar no diabo e não tem quem o convença do contrário.
O filme reafirma muito as desigualdades sociais e o quanto a vida progressista dos três protagonistas contrasta com a da maioria da população que vive nas favelas. Um senhor no bar, em conversa com Johnny, fala que não estamos vivendo exatamente um retrocesso, mas sim uma reação dos setores mais conservadores diante dos avanços das pautas e da vida libertária que muitos já vivem, independente do status quo vigente e da moralidade conservadora, que se sente ameaçada pelo movimento LGBT, pelo feminismo e pelas políticas de inclusão de raça. Essas são reflexões interessantes que o filme traz.
As diretoras conseguem abrir discussões cruciais como as que abordam a religião evangélica e o ramo neopentecostal que invadiu a política no Brasil, reforçando as pautas conservadoras e cristãs que almejam mexer na cláusula pétrea de que o Estado no país é laico. A presença do Pastor Henrique Vieira, do PSOL, é fundamental para que não se caia em preconceitos religiosos de toda a ordem.
Transe equilibra nos seus 77 minutos, todas essas questões, e funciona mais como um panorama histórico sincero, autocrítico (tem muitos momentos sim de autocrítica, cuja culminância é o discurso de Mano Brown na Lapa, logo após a derrota de Haddad), verdadeiro e emotivo desse momento tão delicados da política do país que esperamos que não volte para mandatos no executivo, por trazer uma política revanchista, de perseguição e de destruição do ecossistema do planeta, como estamos vendo agora na recente tragédia climática no Rio Grande do Sul, consequência de uma época em que passar a boiada foi a maior marca de um governo inescrupuloso. Transe é o típico filme que precisa ser visto e revisto para que governos de extrema direita não ocupem mais o poder.
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