Cine Fialho: A Flor do Buriti (dir. João Salaviza e Renée Nader Messora)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.

É incrível observar o quanto A Flor Do Buriti coaduna uma imensa força espiritual com um cinema de grande vigor estético, sem perder de vista que o mais essencial é o viés da narração pela própria nação Krahô. Digo isto, sabendo que os diretores João Salaviza (um português) e Renée Nader Messora (uma brasileira) acompanham os Krahô desde 2009. O filme quase todo está narrado em voz off, se utilizando de um registro de memória oral típica dos povos originários, algo que é devidamente respeitado pelos diretores. Podemos ainda complementar, dizendo que A Flor Do Buriti foi muito bem recebido na Edição de 2023 em Cannes, tendo angariado o prêmio de Melhor Equipe da Mostra “Um Certo Olhar”.

A Flor Do Buriti é bem mais do que prêmios e uma boa condução narrativa. Destaca-se também por conseguir extrair das histórias dos Krahô um poderoso teor estético, a começar por incorporar uma ideia de circularidade que muito condiz com a maneira de pensar dessa cultura. O filme espelha um cuidado dos diretores com a fotografia. Muitas das cenas são gravadas à noite, aproveitando a beleza das estrelas ao fundo para criar uma interessante textura, o que conecta os indígenas de forma mágica ao universo, integrando rio, terra, árvores, animais e céu em uma só cosmogonia. E isto está expresso pelas imagens e não só pelas falas ou narrativa do filme. E como essas imagens constatam o quão agressiva é cada invasão promovida pelo homem branco a essa cultura, que preserva relações mágicas com tudo que não seja fruto da criação humana. Uma atitude de respeito fundamental e espontânea com o planeta. Se a ação do homem branco é sistematicamente marcada pelo distanciamento e hostilidade, a câmera de João Salaviza e Renée Nader Messora opera pela aproximação, numa intimidade amiga e amistosa, ao mostrar os detalhes dos rostos dos Krahô, em busca de revelar beleza e admiração a esse povo retratado.

O tempo é outro fator crucial na narrativa do filme, que perfaz mais de 80 anos da trajetória dessa etnia indígena, incrustada no interior do atual Estado de Tocantins. Os diretores inserem no filme uma camada poética permanente, assim como uma rara aura mágica em vários planos. A Flor Do Buriti está imersa numa ludicidade condizente com a cultura abordada, embora sem abrir mão da necessária perspectiva de luta que ratifique o direito à existência dessa cultura que já estava aqui bem antes de 1500.

A Flor Do Buriti passeia igualmente pela memória, uma memória que rima com uma resistência diretamente relacionada com a própria existência deles. Inclusive, os diretores, respeitosamente, preservam o idioma dos Krahô, legendando os diálogos em português. O ato de perpetuar não só a tradição, mas também a luta política, faz parte do cotidiano de uma etnia que quase foi literalmente exterminada pelo poder econômico de dois fazendeiros locais e pela ineficiência das políticas públicas por meio da FUNAI.

A ideia de circularidade em A Flor Do Buriti aparece não só nas cenas iniciais e finais, mas também quando as crianças do presente avistam na floresta perto da aldeia uma vaca, fato que demarca o quanto os fazendeiros estão avançando tal como ocorreu no passado, quando os Krahô foram quase dizimados pela ganância capitalista dos homens brancos.

A eminência do extermínio dos povos originários não passa só pelo poder da grana e da bala, passa ainda pela sedução consumista, como as conversas que mostram o quanto vários costumes foram substituídos pela praticidade da vida cotidiana dos homens brancos, como dormir em colchão, usar sabão para tomar banho ou incorporar o celular como forma de comunicação. São maneiras sutis de aniquilamento cultural que vão se avolumando e quebrando os laços e práticas herdadas por gerações. O uso do celular entra de maneira dialética no filme, já que por meio dele se articula a participação dos indígenas na política, inclusive no Congresso Nacional, ao mesmo tempo que o smartphone representa hoje o próprio simbólico do consumismo.

A Flor Do Buriti mostra como que a preservação dos valores sagrados dos povos originários depende muito de uma luta política, no sentido de salvaguardar as suas relações cosmogônicas. A presença de pessoas como Sonia Guajajara no Congresso torna-se fundamental para garantir o respeito e a visão dos indígenas acerca de qual país se quer no hoje e no amanhã. Por isso é importante lutar para se assegurar os direitos de usufruto da terra, não como um mero bem econômico, mas sobretudo como um território do sagrado e da subsistência desses povos. Cabe lembrar que o filme foi filmado em pleno Governo Bolsonaro, que rotulava os povos originários de vagabundos e preguiçosos, além de alimentar a fome de invasão dos grileiros e fazendeiros do agronegócio. Os diretores, habilmente, aproveitam e mostram um outdoor da campanha de Bolsonaro com dizeres dele ser um fiel representante do agronegócio.

Entretanto, podemos mencionar que independente do gênero do filme, A Flor Do Buriti deve ser visto como um precioso documento afetivo e relevante sobre a luta de mais de 500 anos desses povos guerreiros e resistentes. Não casualmente, os diretores encerram o filme com uma imagem de um nascimento de mais uma criança Krahô enquanto ouvimos uma canção tradicional a entoar “chama um outro, mais um, mais um guerreiro…” A Flor Do Buriti carrega essa mistura fundamental, de somar a tradição lúdica e mágica desses povos originários com a luta necessária deles contra o avanço do poder econômico, que só vê a terra como fonte de lucro.

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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