Crítica: Guaxuma (Dir. Nara Normande, 2018) 

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser, discorreu sobre a dicotomia nos conceitos de leveza e peso presentes na vida humana. Sugeriu que a leveza é libertadora, ao passo que, desprovida de significado. Enquanto o peso traz o sofrimento; mas, em contrapartida, é um aprofundamento na existência. Desta reflexão, a narrativa e a escolha de diferentes técnicas de animação, testemunhadas em Guaxuma (Dir. Nara Normande, 2018), irão encapsular, no dispositivo, essa dicotomia (ou dualidade) de Kundera, com uma narrativa e um esteticismo que dialogam com tal tensão entre a leveza e o peso da vida. 

Na esfera narrativa, Guaxuma equilibra o fardo do drama com a leveza da ludicidade: a vastidão e beleza da praia, do mar e do céu satisfazem a vivência infantil — como se a leveza pairasse sobre o fardo de areia da vida —; enquanto o afastamento e a perda são produtoras da experiência. Na dimensão formal e plástica, o virtuosismo estético não passa despercebido: a cinematografia e a decupagem compõem um tableau vivant barroco inigualável (tal qual uma rima visual); cheios de excessos e, em simultâneo, leves e suaves.

Em plano fechado, antigas fotografias de álbum são reveladas debaixo de areia de praia (areias douradas e animadas); e uma narração, em primeira pessoa, evoca memórias da infância. Sabemos que Nara (a protagonista, a voz narradora) e Tayra são duas meninas que crescem juntas na praia de Guaxuma, Maceió. O stop motion, de registros de fotografias de família fincadas na areia — remetendo à materialidade e à impermanência das memórias —, compõem um cenário real. Contemplamos, em animação ilustrada (como fosse gravura), que se autocria, uma casa na praia, pessoas bebendo e fumando, e Nara criança. Ouvimos o som do vento, do vozerio e das ondas do mar.

As brincadeiras na praia e os momentos da infância de Nara e Tayra são retratados com a sensibilidade da inocência e da descoberta. Do topo de um barco, as meninas saltam levemente nas águas densas. Em outro momento, Nara e amigos levam à Tayra (que se encontra de castigo) as águas do mar em uma bacia pesada. Nara também contempla seu rosto num espelho suave, enquanto diz “Eu sou eu”. (Sou eu mesmo?). Ainda em “gravura”, Nara e Tayra vão a um prédio abandonado, em ruína. Lá dentro, no escuro, como animação de caráter surreal (fantástica), a liberdade da técnica: janelas se abrem sozinhas, transmutam-se em degraus de uma escada e, esta, transforma-se em uma espiral.

O crescimento das meninas, e as mudanças, são abordados com uma percepção que transita, da leveza infantil para as responsabilidades e perdas da vida adulta. Em locação real, há a fusão de live action com stop motion: as figuras de Nara e Tayra, como bonecas modeladas de areia ou argila, correm pela areia da praia. A passagem do tempo, com as sombras das árvores se expandindo, revela de propósito o trabalho árduo de modelagem na execução do plano (que dura segundos). As meninas também caminham sobre arrecifes, uma delas pisa num ouriço-do-mar e grita (de dor). Depois, vemos os coqueirais se sacudindo levemente sob o vento da tarde; Nara, sentada à praia, contemplando o anoitecer ao horizonte do oceano; e as ondas do mar se quebrando sobre as areias, em um dia de inverno.

O roteiro toma um rumo opressivo, quando Nara, ainda adolescente, precisa se afastar de sua terra natal, em razão da separação dos pais. Em animação em alto-relevo, com areia e argila 2D e meio (2.5D), ela é conduzida por um transporte e passa a viver numa metrópole. Colocam-na à janela de um edifício, ao barulho urbano. Em outro momento, os coqueirais de Guaxuma também se transmutam em edifícios modelados, que se balançam com o vento; enquanto o pai de Nara, com um livro ao peito, cochila em sono manso, sobre uma cadeira de balanço. O afastamento de Guaxuma é o primeiro peso significativo que Nara enfrenta, intensificado pela ausência do mar (seu signo de liberdade? De pertencimento?). 

O peso narrativo, posto como clímax, surge com o falecimento precoce de sua amiga Tayra. Em live action com stop motion, Nara presencia o sepultamento de Tayra através de um vidro embaçado (com “estrias”) pela chuva e pelo luto. A fotografia e a execução são belas. Mas como Nara poderia enxergar beleza quando submetida a uma tristeza que sangra? (Ou poderia?). A perda de Tayra por uma causa não esclarecida (acidente ou doença?), é representada por essa dualidade. No caixão aberto debaixo da chuva, e ao pé de uma árvore, está o cadáver de Tayra, modelado de argila, coberto com origamis coloridos, ao invés de flores. De modo que, o plano ilustra e sintetiza o conceito de leveza (com a imagem dos origamis de papel) sobre a gravidade (a imagem do cadáver, da morte materializada). 

Ainda em live action com stop motion, Nara contempla o mar (que se move em fotografia time-lapse). Apesar da rigidez de seu corpo de argila, há uma constante brisa (leve ou pesada?) que move seus cabelos — esse movimento, aliado à narração, cria uma atmosfera de tranquilidade que contrasta com a carga estética. Ela olha para o lado e vê Tayra caminhando de costas. De frente uma para a outra, em plano aberto, as duas se encaram e se abraçam. Em plano fechado, o abraço em stop motion, transita para a animação com argila em alto-relevo, depois para a de “gravura”. E enquanto a maré alta invade as areias e seus pés, o abraço permanece. As fotografias fincadas na areia se transmutam em origamis coloridos, e lançam voo em direção ao mar (simbolizando a leveza? A verdadeira gravidade das memórias?), num aparente artifício pesado de CGI.

A maestria de Nara Normande em usar diversas técnicas de animação (artesanais?) e filmagem para contar uma história profundamente pessoal torna este curta uma peça única que ressoa com todos que já experimentaram a dualidade entre a leveza e o peso da existência. Dado que, enquanto Kundera, com seu romance, questiona se a vida é um fardo que devemos carregar, em detrimento de uma leveza insustentável; Normande, com Guaxuma, afirma essa dualidade como inerente à vida. As lembranças felizes de Nara, interpostas com a dor da perda, criam uma narrativa e uma abordagem estética ricas em dualidades, em prol de afirmar a leveza e o peso como coexistentes e complementares, à qual constitua uma experiência de vida intensa e complexa.

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