[Carta] Sobre a visibilidade, filmes e escritas

Texto: Larissa Lisboa

A minha relação com os filmes e com o cinema mudou profundamente quando eu comecei a criar os meus filmes, principalmente com o passar dos anos, pois não foi e não é uma mudança que se encerra. É uma relação que eu escolho seguir renovando, principalmente depois que eu parei de esconder e diminuir eles. 

Este ano completo 17 anos que eu comecei a minha jornada como diretora, montadora, produtora e diretora de fotografia de filmes. A maioria dos filmes nos quais trabalhei foram filmes meus que até eu resumia como construções precárias e reproduzia a cultura da vergonha que determina o que deve ser visibilizado, pelo consenso ou devido o reconhecimento de pessoas e/ou curadorias, e o que nem deve ser reconhecido em qualquer medida.

É preciso aprender a dar nome ao ressentimento, a vergonha, a comparação, a culpa, a invisibilização. Foi o que eu busquei fazer nos últimos quatro anos, aprendi a reconhecer o que eu sentia, me responsabilizar e me acolher.

Acolher a diretora insegura que eu fui, que morreu de vergonha de ter dois filmes exibidos na primeira edição da Mostra Sururu de Cinema Alagoano em 2009. Reconhecer o quanto a comparação me ajudava a alimentar as minhas inseguranças e a me convencer a acreditar que eu não era digna de ser reconhecida, me fez assimilar melhor a dificuldade que eu tive de receber em 2011 a premiação de melhor montagem pelo trabalho que realizei no filme, que também respondi pelo argumento e direção, Cia do Chapéu

E o que me levou a me convencer a esconder o meus filmes, pois eu me dizia que se eles não eram bons em comparação a tantos outros, deveria me conformar e somar junto às pessoas que me invisibilizavam e também invisibilizavam os meus filmes.

Tive o privilégio de exibir filmes nestas que foram as primeiras edições da Sururu, mas eu não me reconhecia como diretora, montadora e diretora de fotografia de filmes, por mim e nem pelas outras pessoas. Tive algum reconhecimento como produtora, mas não era uma função que eu desejava ocupar, era mais uma função que eu podia caber.

Em 2013, eu dei início ao júri popular na Mostra Sururu, enquanto analista de audiovisual do Sesc Alagoas. Entre 2013 e 2018, mediei a execução deste júri enquanto funcionária do Sesc. E em 2019, pelo Alagoar, voluntariamente.

Colaborar diretamente com uma premiação da Mostra Sururu era um lugar de privilégio que eu queria reconhecer e respeitar, por isso eu evitei ter filmes dirigidos por mim competindo em edições da Mostra neste período. Foi uma escolha sintonizada com o momento que eu estava vivendo de ter vergonha dos meus filmes e escondê-los, principalmente entre 2012 e 2015.

Em 2016, eu me permiti mediar um grupo de estudos pelo Sesc Alagoas que criou três filmes de um minuto para o Festival do Minuto, e foi através da vivência de criar estes filmes coletivamente, ver eles exibidos na Mostra Sururu de Cinema Alagoano e ver um deles reconhecido pelo Festival do Minuto, que me estimulou a começar a romper com a narrativa de que eu devia ter vergonha do que eu era capaz de criar.

Em 2017, eu tive o privilégio de voltar à Mostra Sururu com Entrerio, sendo exibido fora da competição (hors-concours). A minha insegurança ainda roubou muito desta vivência, e eu quase passei mal antes da sessão, tive uma crise de ansiedade com medo de falar besteira ao apresentar Entrerio no início da sessão para o público. (Minha gratidão ao apoio que recebi naquele momento, em especial de Rose Monteiro e Fabio Cassiano.)

Superada a crise e pós apresentação de Entrerio, observei as pessoas assistindo esperando ver as reações durante o filme, e me surpreendi com o silêncio.

Em 2020, inscrevi o meu filme Meu lugar na MOSTRA ESPECIAL – Filmes das Margens (não competitiva), foi a primeira edição da Mostra Sururu de Cinema Alagoano que abriu inscrição para uma mostra não competitiva e a única até o momento.

Por inúmeros motivos a edição de 2020 foi e é uma das edições da Mostra Sururu que mais me marcou positivamente. Foi uma edição que me deu também o privilégio de experimentar ler um texto escrito sobre um filme meu, o que eu vou abordar melhor mais adiante.

Meu caminho teve alinhamentos e desalinhamentos com a Mostra Sururu. O último filme que inscrevi numa edição da Mostra Sururu foi Negativo em 2021, que foi um dos filmes não selecionados pela curadoria daquele ano.

Ver um filme meu não ser selecionado pela Sururu foi um dos momentos mais profundos de vergonha e rejeição que eu vivenciei enquanto trabalhadora do audiovisual alagoano. Foi apenas a primeira rejeição que um filme meu recebeu em uma Mostra e Festival local, pois inscrevi Negativo e Seu Artista no Festival de Cinema de Arapiraca, em 2022 e 2024, respectivamente, e ambos também não foram selecionados pelas curadorias.

Antes de Negativo não ser selecionado pela Sururu, já havia vivenciado ver outros filmes meus não serem selecionados em Mostras e Festivais de fora do estado. Assim como já tinha visto a dor que a não seleção de um filme pela Mostra Sururu havia provocado em algumas das pessoas realizadoras alagoanas que tiveram filmes não selecionados em edições deste evento. 

Imaginei que era possível que um filme meu pudesse não ser selecionado para uma edição da Mostra Sururu, mas não cogitei que isso fosse acontecer quando inscrevi Negativo.

Não sei se ficou possível compreender que eu não buscava e nem busco ver meus filmes em mostras competitivas, e que apesar de saber que faz parte do “jogo”, inscrever e não ver o filme ser exibido, não foi, nem é fácil assimilar a não seleção. Busquei por muitos anos a validação que vinha de ver um filme meu na lista dos selecionados de Mostras e Festivais, no entanto, tinha muito medo de saber o que as pessoas sentiam e achavam dos meus filmes (também tinha curiosidade).

Não foram múltiplos os momentos em que pessoas vieram me contar o que acharam dos meus filmes, ou que elas me responderam se eu cheguei a perguntar. Tive dificuldade de entender até pouco tempo atrás que a falta de elaboração sobre os meus filmes não deveria ser combustível para as minhas narrativas negativas de mim mesma e que não significavam que os meus filmes eram ruins ou que não seria possível elaborar após assistir eles.

Em 2019, recebi um convite raro do Mirante Cineclube que propôs uma homenagem às mulheres do cinema alagoano através da exibição de filmes meus em seu aniversário de 2 anos. Roseane Monteiro, curadora integrante do Mirante, criou uma curadoria com 13 filmes que eu reuni em uma playlist no meu Youtube para poder seguir compartilhando a reunião que Rose propôs de filmes meus, que até aquela sessão não haviam sido exibidos juntos, e parte deles não haviam sido exibidos em um evento de cinema até aquela oportunidade.

Assistir os meus filmes naquela sessão foi emocionante, a ponto de impactar a forma como eu pude ver e revê-los.

Tive o privilégio de exercitar a construção de curadorias para visibilizar filmes alagoanos enquanto analista de audiovisual do Sesc Alagoas, e reuni por três anos sistematicamente filmes alagoanos nas sessões do Curta Alagoas. 

Sinto falta de ver projetos que exibam com frequência filmes alagoanos (principalmente sem competição). Uma falta que foi atendida na primeira temporada do Punho Cineclube do Punho Coletivo, que priorizou dar a tela a filmes alagoanos dirigidos por mulheres.

Foi graças ao convite do Punho Cineclube que Negativo veio a ser exibido pela primeira vez num evento de cinema em Maceió em 2023. Na sequência Negativo também foi exibido no Panorama Alagoas da VI Mostra Sesc de Cinema.

Tirando meus dois filmes mais recentes (Seu Artista e Turu turu), todos os filmes dirigidos por mim estão disponíveis on-line no meu canal do Youtube. (Caso você deseje conhecer a minha filmografia ela está disponível no guia de acesso @larefletida.) 

Foi e é um investimento para mim, e em mim mesma criar os meus filmes. Mas até pouco tempo atrás eu sequer considerei realizar sessão de lançamento deles ou mesmo realizar uma mostra ou festival de cinema como autocuradora. Por mais que busque assumir a responsabilidade de ver meus filmes sendo exibidos, o faço apenas a partir da convocatória de mostras e festivais ou a partir de convite de outras pessoas curadoras.

Acho importante me dar limite e não exercitar uma autocuradoria deliberada dos meus filmes, o que não significa que eu não pratique sempre que necessário uma curadoria dos meus trabalhos para apresentar nas redes sociais, em portfólios ou em outros formatos que sejam pedidos pelos editais e convocatórias.

Além de evitar autocurar os meus filmes, eu também resisto em escrever sobre os filmes que eu participei da realização.

Antes de experimentar criar filmes, eu quis experimentar escrever sobre os filmes que eu assistia. A minha insegurança foi decisiva para que eu me convencesse que eu não era capaz de escrever sobre filmes.

E mesmo após acompanhar enquanto analista do Sesc Alagoas duas edições do Laboratório de Crítica Cinematográfica, a primeira em 2016 ministrada por André Dib e a segunda em 2017 ministrada por Fernando de Mendonça, eu ainda desacreditava da minha escrita sobre filmes. Em dezembro de 2017, comecei ao menos a exercitar, mesmo descrente.

Ainda enquanto analista do Sesc, acompanhei também a terceira edição do Laboratório de Crítica Cinematográfica em 2018 ministrada por Camila Vieira, e a única edição do curso de crítica cinematográfica em 2019 com Felipe Benício.

Enquanto alguém que teve o privilégio de acompanhar três edições consecutiva do Laboratório de Crítica, tive a curiosidade de vivenciar a relação com a crítica num formato um pouco mais duradouro e menos corrido, e foi assim que convidei Felipe Benício para realizar o curso de crítica em 12 encontros que foram realizados em 3 meses (um encontro por semana).

O curso de crítica foi a vivência que mais me aproximou da escrita sobre filmes, e me possibilitou aprendizados sobre escrita e sobre perspectivas do cinema e das relações humanas.

Em 2021, acompanhei a Oficina de Crítica de Arte ministrada on-line por Guilherme de Miranda, enquanto produtora do Festival Alagoanes. E fui instrutora convidada da Weboficina de Crítica Cinematográfica, que também teve como instrutoras Rosana Dias e Dayane Teles.

Enquanto gestora do Alagoar tenho o privilégio de receber os textos produzidos pelas pessoas participantes das edições do Laboratório de Crítica Cinematográfica, realizado pela Mostra Sururu e pelo Mirante Cineclube, e da Oficina de Crítica Cinematográfica, realizada pelo Festival de Cinema de Arapiraca, a cada edição destas ações.

Graças a estas ações e as pessoas que colaboraram escrevendo sobre filmes alagoanos independentemente contamos com mais de 200 críticas sobre mais de uma centena de filmes alagoanos. 

Eu sei como foi para mim escrever cada um dos textos de minha autoria sobre os filmes alagoanos sobre os quais eu consegui tentar elaborar na medida que eu pude sobre a relação que eu criei com eles enquanto espectadora.

E enquanto alguém que sentiu insegurança e ainda desacredita mais do que acredita na sua escrita sobre filmes, celebro e sou muito grata as pessoas que se permitem escrever e publicar os seus escritos sobre filmes alagoanos no Alagoar.

Em particular vou destacar aqui dois textos, sobre dois filmes meus, um escrito por Leonardo Hutamárty sobre o meu filme Entrerio que eu acabei de publicar aqui no Alagoar e o texto escrito por Cleber Pereira sobre o meu filme Meu Lugar.

Eu só soube o que era ler uma escrita sobre um filme meu, quando li o texto de Cleber em 2020, e há poucos dias eu pude conhecer outra escrita sobre outro filme meu ao ler o texto de Hutamárty. Foram duas experiências preciosas que aqueceram o meu coração e que eu guardarei com carinho.

Ler o que Hutamárty se permitiu criar a partir de Entrerio foi o que me estimulou a vir aqui escrever, como parte da assimilação do que Leonardo observou, e do que a escrita dele me deu, escolhi vir aqui compartilhar sobre visibilidade, filmes e escritas na medida que me foi possível hoje.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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