Crítica: Mirar (dir. Larissa Lisboa)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

Mirar (Dir. Larissa Lisboa, 2017-2020) 

Sob o sol poente, em contraluz, Larissa Lisboa direciona sua atenção às águas do Rio São Francisco e mira uma figura humana (ou mais que uma) pescando à margem. Com sua câmera em mãos, dispara fotografias em 4:3 aspect ratio e, pela segmentação da montagem, cria Mirar (dir. Larissa Lisboa, Animação, 2017-2020). O curta, de menos de um minuto, concilia a relação entre o humano, a natureza e o tempo; mediante uma decupagem sensorial, fragmentada e contemplativa. 

Tal relação reflete a imagem de interdependência e fluxo contínuo, no entendimento de que todos os elementos são coadjuvantes e recíprocos — se o humano, como parte da natureza, experimenta a passagem do tempo como um processo natural. Mas Mirar não concebe esse elo (tangível ou intangível) como um ciclo contínuo de criação, mutação e dissolução. A abordagem do curta, de pronto, remete a Reflexos (Dir. Celso Brandão, 1975) e Entrerio (Dir. Larissa Lisboa), ao buscar uma experimentação impressionista (acima de apenas um exercício de foco do olhar e da consciência), em detrimento da mera documentação. Mirar está mais interessado na representação de uma conexão transcendental. 

A figura humana é retratada como uma presença quase fantasmagórica, uma “resta” ao centro, ou uma miragem na mira da câmera. Ao mirar, o periférico é suspenso para que o olho se concentre em um ponto específico. Daí, o plano fechado que circunscreve a silhueta do homem na contraluz, capturando seu movimento de pesca. Embora o indivíduo se destaque no horizonte líquido, sua falta de identificação talvez o torne uma representação da humanidade. No plano, a natureza e o tempo moldam a existência do homem; enquanto a consciência do plano reflete e interpreta o ciclo (de criação, mutação e dissolução), buscando significado, compreensão e resolução, com fragmentos de memória, na interconexão dos elementos do curta. 

Mirar as águas, retratadas como uma unidade, um elemento transcendental (para além de uma instância metamorfa), pode representar a aspiração do espírito humano para alcançar o metafísico, o ideal ou o divino — ao assumir o caráter idílico, sublime, da imagem, com planos cheios de cintilância e sombras. Como uma folha metálica, ou um manto de alumínio amassado; as águas do Rio refletem a luz do sol, como quem espelha a aparência da alma humana: sua profundidade imensurável, sua tranquilidade superficial, e seu ritmo ondulante e corrente. De modo que, mirar não é apenas uma ação dos olhos ou da câmera; é um movimento da alma em direção à superfície, ao belo ou ao verdadeiro — reminiscente do Mito da Caverna de Platão, onde o homem “mira” além das sombras para contemplar a luz do sol, signo do conhecimento e da verdade.

O movimento das águas, conduzido pelo vento e pela correnteza, é capturado e compilado por fotografias, em um senso de continuidade da montagem. A métrica de Mirar se desdobra nessas instâncias de fotos, criando uma espécie de animação em stop motion que ressalta o jogo de luzes e sombras, reflexos e contraluzes presentes nos planos. Mas a escolha de Larissa Lisboa, por utilizar uma sequência de fotografias reproduzidas (em lapsos de tempo predeterminados, e que escapam à verossimilhança), parece remeter aos primórdios do cinema, quando a técnica ainda estava em sua fase experimental (quando não encontrou em frame rate a sua medida “certa”). Por isso, tal técnica confere ao curta uma sensação de atemporalidade, que evoca uma atmosfera saudosa sobre a própria linguagem. 

Mirar se vale de sua força sensorial: imagens e sons (de canto de pássaros, de vento e de movimento de águas) que comunicam uma mensagem mais sensória do que narrativa. Planos que convidam à contemplação em um ritmo fragmentado, criando uma sensação de urgência, que contradiz a própria contemplação. Essa lógica ambígua confere ao curta uma qualidade intrigante, em termos de artifícios sígnicos, ao conciliar o elo entre o humano, a natureza e o tempo. De modo que, o humano deve reconhecer sua posição no todo (através da consciência do plano), onde a natureza e o tempo são partes essenciais da experiência.

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