Cine Fialho: Othelo, o Grande (dir. Lucas H. Rossi dos Santos, 2024)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.

Em Othelo, o Grande, há uma imagem paradigmática logo no início e ela durante a projeção retorna algumas vezes. Grande Otelo está sentado em um sofá, enquanto a câmera se aproxima de seu rosto, a sua expressão séria não se modifica. O que mais intriga nessa imagem é o fato do ator não exibir um sorriso sequer, logo essa expressão que tão bem marcou a sua carreira. O que veremos a seguir no documentário é a difícil tarefa de um ator negro, inteligente e talentoso ter que lidar com os preconceitos de uma sociedade recém saída da escravidão. A potência da primeira imagem reafirma a história de uma luta e a vitória improvável desse corpo negro que se afirma contra tudo e todos. Grande Otelo, apesar de seu um metro e meio de estatura é gigante como artista e ser humano.

O que o diretor Lucas H. Rossi dos Santos propõe para Othelo, o Grande é algo especial, sobretudo pela narrativa que parte da própria voz de Grande Otelo como propulsor de sua própria história. Durante os quase 90 minutos de filme, não há uma outra voz que não seja a dele. É ele o narrador soberano de sua história e esse fato dá uma dignidade imensa ao documentário.

Somos convidados a acompanhar alguns fatos da vida de Grande Otelo por meio de uma pesquisa irretocável de Henrique Amud. Imagens de arquivo impecáveis e significativas marcam a narrativa do filme, em que o personagem divide com o público sua vida marcada por tragédias pessoais e sucessos profissionais inquestionáveis.

A inteligência de Grande Otelo salta da tela, com tiradas e reflexões impactantes e até inesperadas sobre diversos temas da vida brasileira, tanto social quanto cultural. Lentamente, Lucas H. Rossi dos Santos revela o quanto o racismo impregnou a trajetória do ator, um dos primeiros negros a exercer o ofício e talvez o primeiro a alçar o estrelato. O diretor enfrenta com coragem o assunto, sem jamais deixar de sublinhá-lo no decorrer da narrativa. Vale ressaltar que o nome Otelo conversa diretamente com a história criada por W. Shakespeare, do mouro negro, que o ator inclusive representou na juventude, cujo tema passeia pela inveja, ciúme, traição e racismo.

A força da temática do racismo em Othelo, o Grande é central e se relaciona com a própria trajetória do ator, que soube lutar frontalmente contra essa realidade. O filme retrata com extrema competência o seu talento múltiplo como ator, cantor e compositor. Grande Otelo aproveitou a fama que construiu desde cedo para fazer trabalhos internacionais simplesmente com nomes como Josephine Baker, Orson Welles e Werner Herzog. A todo instante o ator demonstra em entrevistas o quanto era consciente do papel sociológico que exercia com sua fama e projeção. É excepcional os depoimentos do ator em relação ao filme de Orson Welles, que veio ao Brasil para filmar como o povo vivia e se expressava culturalmente.

Ao relevar a importância de Grande Otelo como artista e homem cônscio de seu papel social, Othelo, o Grande se afirma como obra necessária para a afirmação de uma luta contra o racismo em um país que há pouco mais de cem anos ainda convivia com a escravização da população negra para explorar a sua mão de obra. O filme ainda mostra o trabalho do ator na formação do cinema brasileiro, com as comédias da Atlântida, da Herbert Richers, do Cinema Novo, do cinema marginal e do cinema com uma vertente tropicalista. Como não lembrar da participação dele em Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, um clássico do nosso cinema? Os momentos com Oscarito na Atlântida são lembrados por ele, com toda a justiça, como um dos mais marcantes da cultura brasileira.

O mais impressionante de Othelo, o Grande é o quanto o documentário consegue traduzir o talento de Grande Otelo em suas mais variadas facetas e de mostrar as dificuldades que travou na vida pessoal. É incrível como o ator superou as adversidades em nome de elevar a figura de um negro ao status que podia transformar a sua imagem social. Grande Otelo foi artisticamente gigante, e o filme de Lucas H. Rossi dos Santos sabe, não só sublinhar isso, como construir a relevância social da personalidade de seu personagem, com a devida e merecida dignidade.

Voltando à imagem inicial, quando a câmera se aproxima de seu rosto na tentativa de apreender a alma triste de um personagem que tanto nos fez dar risadas, é fundamental que fiquemos com essa imagem que mais soa enigmática do que como conclusiva. Esse é o mistério e o fascínio dessa obra, o de deixar uma brecha sobre quem era realmente esse personagem, por mais que haja um esforço enorme para tentar decifrá-lo. Para mim, uma ótima e imprescindível aula de cinema documentário brasileiro.

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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