Crítica: Os Desejos de Miriam (dir. Nuno Balducci)

Texto: Thame Ferreira. Revisão: Chico Torres.

Os desejos das Mirians?

A alternativa é a emoção que surge ao deixar o passado para trás, sem rejeitá-lo, transcendendo formas já desgastadas ou opressivas, ou a ousadia de romper com as expectativas normais de prazer de forma a conceber uma nova linguagem do desejo
(Laura Mulvey – Prazer visual e cinema narrativo)  

Partindo do triste pressuposto de que o padrão de funcionamento do cinema mundial dá mais nudes e menos falas à personagens femininas, termos um filme alagoano que tem como pivô de condução dramática uma mulher e seus mais de 35 anos, já nos coloca diante de uma experiência provocadora por essência. Começar o texto assim pode parecer ultimatista, no sentido de sermos obrigados a gostar de um filme pelo tema ou por cumprir determinada agenda política. Mas a intenção é oposta, inclusive porque o papel da crítica não é converter ninguém para gosto particular nenhum.

A questão latente que perpassa o curta-metragem Os desejos de Miriam, realizado por Nuno Balducci, é a da presença de um cuidado nos detalhes, como que numa necessidade estética de extrapolar um lugar argumentativo de que só a escolha da temática é suficiente para sua classificação positiva.

Óbvio que cansa, sim, vermos a chuva de representações estereotipadas no cinema e seriados: das Lolitas – estas não tendo nada a ver com a obra original – até à nova moda da “menina feia” – mesmo quando a atriz preenche o padrão de beleza hegemônico – que se apaixona por um cara “feio”, malsucedido e escroto (vou levianamente chamar aqui da “onda” indiepop “Zoey Deschanel).

Se deixei confuso, vou elucidar: o curta de Balducci vai na contramão dessa movimentação ordinária. Em seu compasso, está marcada a compreensão de que, por mais importante que seja seu tema, não dá para tratar as mulheres como pombas catando migalhas na praça. Há uma complexidade a ser explorada e Os desejos de Miriam é uma tentativa de entrar nessa miscelânea silenciosa que é a sexualidade feminina e o desejo de existir.

Com alguma expressividade em bilheteria, há um fluxo espontâneo e relevante que acontece no cinema nacional: em Aquarius, Som ao Redor e Que horas ela volta? – só para ficar nos mais óbvios – se expõe a necessidade de trazer a figura feminina em um cotidiano esquecido. Nota-se referências imagéticas nítidas desse “fluxo” do cinema brasileiro não só no curta de Balducci, mas em outras ficções da mostra: mulher e guarda-roupa, mulher e cama, mulher e cozinha, prédios de classe média, todos num formato de quadros que vêm se tornando paisagem conhecida de “casa” e “cotidiano”. Inserido nesse lugar comum, em Os desejos de Miriam há um jogo de câmera como elemento de estranhamento. Na verdade, a câmera em sua imobilidade parece falar com a gente: olhe, é isso mesmo, olhe mais, não desvie o olhar. São planos longos; esperamos o corte, mas ele não chega.

Essa brincadeira de estátua mostra uma premissa que é a de nos colocar para contemplar. Não à toa, há um compromisso de Miriam com um desejo, talvez inconsciente, de ser notada, e talvez por isso a câmera se detenha tanto nela. Aqui faz todo sentido o primeiro quadro ser a desconfortável cena do desjejum. Família à mesa no início de mais um dia, tudo preparado cuidadosamente por essa mulher invisível. Dói ver, não é? Incomoda aquele silêncio, essa insistência da câmera em ficar ali.  Afinal, o que o status quo reserva para as donas de casa?

E daí que parte a provocação do título. O que ela deseja? Quem ela é? Antes de qualquer coisa: Miriam é alguém, um ser desejante. Pulsa vida ali, emerge daquele ambiente constrangedor e isso se expressa, sem sutileza nenhuma, ao longo do filme.

Há desejo, certo, mas me vi um pouco confusa com as referências exacerbadas à luxúria. O título já anuncia e faz levantar a sobrancelha, nossa referência é guiada para o sexo; vi isso até na escolha da fonte para o título. Esse excesso de referências à luxúria me fez pensar se a ideia era nos confundir: batom, unha, brinco, parede, espelho, tudo vermelho! O vídeo pornô, a mensagem sobre a vênus e a libido, enfim, tudo remete ao sexo.

Por outro lado, sabemos dos desdobramentos e das diferenciações entre luxúria, sexo e desejo, certo? Não sei qual a motivação para tantas referências, da insistência em toda essa ambientação sexual, porque no final o filme, como um todo, me soou muito mais sobre o direito, a vontade, a necessidade de ser um ser desejante.

Daí também me pergunto se a ideia era mostrar Miriam como uma adolescente, numa abordagem por vezes caricatural. Infelizmente, talvez meu imaginário esteja pregando peças, me levando para um pensamento do tipo: “mas ela não tem mais idade para isso”. Fato que esse local ainda é tão silencioso, pouco conhecido e representado, que mesmo no ensejo de falar sobre isso, parece que ainda não encontramos o tom.  Outra desconfiança é que o desconforto que permeia o filme parece também fruta podre caída dessa árvore genealógica do nosso imaginário. Somos construídos para estranhar a sexualidade da nossa mãe, avó, tia…

Depois de tanto estranhamento, o filme encerra com sua ambientação mais bem executada. No penúltimo quadro há uma bela iluminação, cores, o bem-te-vi cantando e Miriam jogada no sofá. Sim, me lembrei das farras homéricas da adolescência. Eu me vi na pele de Miriam e isso é primoroso. A gente olhar uma cena e sentir aquela identificação imediata, do sistema límbico, sem racionalizar ainda, eis uma das coisas mais interessantes que o cinema pode me proporcionar. Daí, depois, quando pouco a pouco me vi pensando sobre o filme, fui levada novamente para o lugar de estranhamento que ele me enfiou, me obrigando a escrever essa crítica. Os desejos de Miriam, apesar de seus longos planos, é uma película repleta de quebras. Na expectativa de duração dos quadros, na narrativa, na nossa percepção de Miriam e das mulheres mais velhas. Quando suas fotos da rede social aparecem, quando se olha no espelho, se arruma, ela, sendo a ruptura com tudo aquilo que os filmes – a representação da realidade com suas falsas ideologias limitantes – reservam apenas para as mulheres jovens e belas.

Não é pouco destacar a preocupação com cada detalhe, e cada quebra parece ter sua função. Homem filmado de baixo para cima, close do rosto, algo meio bestial, institivo, selvagem, quente! Na festa, temos quase o ritmo da Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade:  dança com um, outro olha; vai lá e dança com outro; agora é uma moça que olha, até que as duas se encontram e se beijam no banheiro. Ela quer o desejo do outro, o olhar, nosso olhar. Buzina de carro, som de celular… Seria sua conexão com outro mundo, fuga, ou parte da sua vida para manter algum grau de saúde mental? Nuno Balducci foi o maestro de uma sinfonia estranha, não embalada, mas que faz remexer.

Afinal, quem são e onde estão as Mirians? Do nosso lado, mas invisíveis? Assim como fui Teresa e Veroni – outras personagens incríveis de curtas da VIII Mostra Sururu de Cinema Alagoano – fui Miriam! O caso é o seguinte, filmes assim, ainda que com suas limitações, vão tirando o véu e nesse desvelar, abrem caminhos para narrativas autênticas. O cinema em Alagoas está sendo adubado, nutrido!

1 Comentário em Crítica: Os Desejos de Miriam (dir. Nuno Balducci)

  1. Thame
    Your excelence in written these critics is part of who you are.
    És dejá as a sensitive, competente e qualificada in MOST and WHATEVER you do.
    This is more than a mother’s thoughts.
    YOU ARE “THE WOMAN”.

    XXXXxxxxx

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