Série: Encontros em Brasília – Gabriela Amaral Almeida (A Sombra do Pai)

Entrevista: Janderson Felipe e Leonardo Amaral. Texto: Leonardo Amaral. Edição: Larissa Lisboa.

Sob o piso de madeira e cercados pelo horizonte brasiliense, diversos jornalistas e cineastas se reúnem na varanda do B Hotel em uma tarde de várias entrevistas no 51º Festival de Cinema de Brasília. Alguns pulam na piscina e tomam sol, bebem e comem, enquanto conversam sobre filmes e também sobre tudo que não seja cinema. Gabriela Amaral Almeida saiu há pouco do debate sobre seu longa selecionado para mostra competitiva, A Sombra do Pai; e fuma um cigarro.

Leonardo Amaral: Você já notou como a cidade de Brasília dá medo? Já andou de noite e sentiu algo…

Gabriela Amaral Almeida: Como eu amo esse sotaque! Ela dá medo porque ela é completamente impessoal, né? É muito programada. Tudo que é muito programado dá medo.

LA: É muito estranho. A gente saiu do apartamento pra ir pro nosso hotel umas 1 da manhã pra pegar Uber na rua. A gente achou um cenário muito distópico, não tinha um pé de gente na rua, prédios iguais. E a gente ficou pensando sobre a maneira que o horror nos permeia.

GAA: A simetria é uma coisa que dá medo. O Kubrick explora muito isso no Iluminado. A simetria é tão programada que a gente se sente ameaçado como ser humano. Porque a gente é imperfeito. A gente não é esse equilíbrio. A gente é torto, é assimétrico. Então estar numa obra arquitetônica modernista pra mim, e a cidade é modernista, causa esse estranhamento.

LA: Com certeza.

GAA: O modernismo tem essa coisa, né? Dessa utopia de criar uma coisa que não tem distinção – muito ligada ao comunismo – uma coisa que não tem distinção uma da outra porque todos teriam a mesma coisa. Só que a gente não é a mesma coisa. Tá aí a falência e a chama do modernismo.

LA: Outro cineasta, o Pedro B. Garcia do curta As Aulas Que Matei (link em breve), falou sobre como a cidade tem um projeto de exclusão através desse impedimento de fluxo.

GAA: É muito doido porque ela surgiu pelo oposto, pra você ver como o projeto modernista faliu. Minha melhor amiga é arquiteta, a Luana Demangio, então são conversas que a gente tem. Ele era um plano, o Plano Piloto, que não previu o crescimento da cidade da forma como cidade latino-americana cresce. A gênese dela – o Niemeyer era um comunista – era de inclusão, não exclusão. Mas aí a realidade interfere com essa coisa acadêmica, medida, e fala que não é assim. O que era inclusivo se torna excludente.

LA: E com essa questão de como a realidade interfere no acadêmico, como você lida quando seus planos colidem com a realidade do Set?

GAA: Sabe o que eu faço? Não decupo. Porque tem muita gente que lê e já leva os planos prontos. Não faço isso. O que eu faço é: tenho uma fotografa muito gênia, a Barbara Alvarez, uruguaia, que fotografou Whisky, já viu Whisky? A Mulher Sem Cabeça da Lucrecia Martel. É uma puta fotografa. E o que eu faço com ela é interpretar texto, mesmo. Quando a gente tá no lugar a gente faz o blocking – a movimentação dos atores – e ela observa, e aí a gente vai definindo dentro do que é necessário na cena pra onde a câmera vai. Não é uma lógica de filme de estúdio, onde o set é construído pra câmera, uma coisa hitchcockiana; Hitchcock chegava ao absurdo de desenhar o filme inteiro antes porque ele construía pra câmera dele, e essa não é a realidade do cinema contemporâneo. Mas isso não impede que você entenda o espaço junto com os personagens. É na hora e não é.

(Happy começa a tocar do nada, a cobertura se anima mais; um fotografo anda de um lado para o outro e tira fotos com realizadoras em celebração pela maioria dos selecionados para competição desse ano serem mulheres.)

LA: Depois dessa quebra com Happy… Como você construiu a mise-en-scène pra estruturar esse medo?

GAA: Eu gosto muito de filme de terror. Fiz comunicação e estudei terror no mestrado então consumi muito literatura e cinema de terror. E pra mim a construção da tensão, o tensionamento da cena passa pelo medo. Assim como pra outros diretores passa pelo drama, outros pelo afeto; o meu passa pelo medo. É uma construção que só vai ter dimensão quando você tá na montagem, porque é construído junto: o que os personagens podem dar, o que o espaço pode dar, o que a direção de arte contribui na criação de camadas, o que o espaço constringe ou libera pros personagens, então isso tudo vai determinando a mise-en-scène. Ela é efetiva o quão menos você a enxerga racionalmente numa primeira apreciação essa construção, porque é tudo truque, cinema é truque. É tipo um truque de pintura: perto é um monte de borrão aí você se afasta e vê a mágica acontecer. Então tem uma questão técnica aliada a isso, mas é uma questão técnica dividida com muitos departamentos – conduzido por mim, mas influenciado por muita coisa.

Janderson Felipe: No debate ficou bem evidente a questão familiar, e o horror tem essa característica de explorar as fissuras na sociedade.

GAA: Total!

JF: Aí eu queria saber seu lado sobre isso já que desde o início já começa com uma família não-tradicional, o pai, a tia e a filha, mas ao mesmo tempo tem uma toxicidade, opressões, aí queria saber como você pensa…

GAA: Eu vim de uma família né gente, não fui criada em laboratório.

(Após rir, Gabriela bate o cigarro no copinho que lhe deram, recusou o isqueiro próximo já que lhe deram outra coisa antes.)

JF: A gente tá em um momento onde se pensam em famílias não tradicionais.

GAA: Não, isso nem passou pela minha cabeça. Acho que os conflitos da sociedade a gente aprende pela primeira vez na família. Aprendemos o que não funciona, os disfarces sociais pra se apresentar com a família, o que acontece dentro e fora, acontece individualmente na relação; o Brasil tem essa característica da mulher que tem que cuidar. A Cristina é um exemplo da mulher brasileira – filha, tia, sobrinha – que toma encargo de algo que o homem não consegue, fazer de uma casa um lar. É uma realidade bastante brasileira, crianças que ficam a maior parte do tempo sozinhas.

JF: Já fiquei bastante.

GAA: Porque os pais tão trabalhando; é muito Brasil isso. Na classe média ficam com babás e nas mais baixas ficam sozinhas. As vezes com irmãos, sozinhas. Tem crianças, sempre meninas e é importante dizer isso, que tomam conta do bebê. É assustadora a responsabilidade. Tem uma cena que gosto muito dela (Cristina), da bichinha querendo ser adulta, que bota o urso de pelúcia dela pra lavar, né? Primeira coisa, tipo vou fazer tarefas domésticas, aí bota o urso pra lavar.

LA: É interessante você mencionar família porque ela é o nosso primeiro contato de traumas com o mundo porque ela molda você pra te preparar pro lado de fora…

GAA: Sem saber né? Não é que molde. Acredito no ser humano ainda e acho que erram tentando acertar, mas a gente é humano e a gente é falho. Sendo uma organização latino-americano a gente depende muito do afeto. Então somos famílias que, por mais que o pai seja provedor, quem mantém o funcionamento da casa é a mulher né? O pai – a figura paterna na sociedade brasileira é uma figura excluída do cuidado com o outro.

LA: E é legal que quando a gente vai pensar no cinema de gênero, especialmente terror, tem bem essa característica social tipo Frankenstein, que é a criação de um ser, que não é compreendido pela sociedade e é excluído e marginalizado e tem que ser morto. Vejo que essa noção social reflete bastante no horror nacional, desde As Boas Maneiras (dir. Juliana Rojas e Marco Dutra) até seu cinema. E é talvez cinema de gênero na sua maior potência.

GAA: Concordo totalmente. São os medos da gente, né? É como se fosse um volume, o horror pra mim é um volume. Se você baixa, vai perdendo e virando drama. Quanto mais você torce isso vai virando um negócio – são os medos, os monstros; todo medo da gente é projeção, a maioria deles não é real.

JF: Aquilo que não é permitido socialmente…

LA: E numa questão de referências – calma que não é a pergunta básica de referência – é que quando a gente assiste aos seus filmes, também aos do Marco e Juliana, a gente sente uma reverência, amor a linguagem, o abraçar daqueles códigos que para algumas pessoas podem ser exagerados…

GAA: Ah, não ligo não.

LA: A pergunta é sobre como você mede o quão você vai utilizar dos códigos?

GAA: É a medida da minha sensibilidade. É completamente subjetivo, aquilo que eu gosto de ver. O que eu gosto de ver são filmes assim.

JF: É fazer os filmes que você quer…

GAA: Os filmes que eu quero ver.

LA: Conversando com pessoal pós-sessão teve por exemplo quem se incomodou com uso da música…

GAA: Adoro, adoro, adoro.

LA: Porque acham “ah, mas é muito dramático” e etc…

GAA: Tudo bem. Eu acho que a obra de arte – primeiro que leva tempo pra ser decodificada, não é algo imediato. Você pode se relacionar de um jeito com o filme num momento e assistir um ano depois e ter outra relação. Segundo que a gente vem de uma tradição cinema-novista onde o uso do artifício é um negócio mal visto.

LA: Com certeza.

GAA: E é um negócio que pra mim, honestamente, é tão artificioso – não artificial – é tão artificioso você construir a ilusão de cinema real quanto a de você construir o oposto, pra mim são as mesmas ferramentas. Uma questão de gosto, se não gosta desses artifícios, vai ver outro tipo de filme.

JF: Quem disse que você quer um naturalismo ali né?

LA: Essa tradição cinema-novista… existe no mundo um preconceito para com filmes de gênero, e aí eu sinto que no Brasil esse preconceito é maior devido a essa tradição.

GAA: É. Mas assim, tem uma hora – eu to com 38 anos – meu tempo de achar que eu precisava ser aceita com o que eu fazia já foi. E tem uma hora que você fala: ok, existe algo muito complexo, e eu vou seguir o que me alimenta. É uma tarefa inglória você tentar agradar todo mundo. Se é impossível, e lógico que é impossível, então acho que você tem que ser o mais fiel que você consegue a sua sensibilidade, que não é a única sensibilidade que existe no mundo. Isso é importante de saber: é uma sensibilidade possível, que vai atingir um público possível, não vai atingir todas as pessoas, sabe? As pessoas podem ter uma apreciação, tipo da música, que pode ser completamente diferente – e pode ser legítima – da minha gênese como criadora. Eu cheguei naquele recorte musical por um trabalho de lapidação muito grande, e essa lapidação não é racional, porque eu sinto coisas, então colaborando com compositor e montagem e desenho de som é esse o meu trabalho, o resultado disso eu já não controlo. Foi muito bacana, como diria o Tarantino: It’s fun! É divertido, porque é divertido!

(Ainda sorrindo, Gabriela apaga o cigarro no copinho.)

JF: O legal do seu filme também é que você brinca com os subgêneros do horror. Filme de bruxa, zumbi, slasher; tem muita paixão ali, você sente.

GAA: Pois é, e paixão é algo que não se explica. Tipo quando perguntam “seu namorado ou namorada, por qual motivo você gosta dele?”. Aí você pode tentar racionalizar e pensar que tem essa qualidade e esse defeito, mas não vai chegar lá. Paixão você não explica.

LA: Inclusive é algo que eu sinto falta – não só no cinema brasileiro, mas geral – as vezes eu acho que há muito cinismo e afastamento.

GAA: Ah sim, sim.

LA: Uma racionalização, algo conceitual que afasta.

GAA: É! Novamente, não me interessa como artista. Assisto, não me toco; não me toca uma arte acadêmica. Já fiz mestrado, não gosto de academia, gosto do sensível. Trabalho com gênero – o que é gênero? Ele é sempre definido pelo que você sente. A primeira coisa que define o gênero é como o espectador se sente emocionalmente, não racional. To cada vez mais trilhando isso sem medo. É o que tem que ser.

(Alguns cineastas correm e pulam na piscina do hotel, a tarde está divertida.)

LA: Vamo voltar um pouquinho para o passado.

GAA: Vamo.

LA: Você, nordestina fazendo curtas, algo que se aproxima bastante da realidade alagoana. Fale da sua impressão sobre curtas numa situação de nordeste e cineasta iniciante, como lidava com eles naquela época? Porque imagino que sua visão mudou da época que fez eles até agora.

GAA: Mudou de ontem pra hoje a minha visão.

(Rindo, Gabriela muda sua posição na cadeira para uma mais confortável.)

GAA: É… Os curtas que eu fiz foram já em São Paulo, porque eu fiz comunicação e mestrado na UFBA, e aí eu fiz a escola de Cuba, e então voltei direto pra São Paulo. Então como voltei direto pra São Paulo, minha relação com cinema na Bahia é acadêmica. O único que filmei lá foi Náufragos, já que ganhei edital do MinC e queria filmar na Bahia, mas ele podia se passar em qualquer lugar. E os outros filmes produzi em São Paulo. Mas eu acho que a realidade do curta-metragem é a vantagem que você pode arriscar sem a pressão, porque você sofre a pressão do retorno financeiro, faz parte do fazer filmes (longas), então se eu faço um e experimento, tem uma margem de experimentação possível que é menor do que a do curta. Então quando eu disse (no debate) que a potência do cinema brasileiro tá no curta tem a ver com isso, você não tem compromisso em vender, fazer dar lucro. E isso é de uma liberdade que você não encontra mais a partir do momento que você começa a fazer longa. Tem um lugar que você ocupa de expectativa, expectativa de mercado, que vai limitando – agora, como diz o Hitchcock, a limitação pode ser uma maneira de fazer sua imaginação funcionar, e isso vale pra limitação financeira também. Os filmes do Kleber Mendonça Filho, que eu amo, foram feitos sem um puto. O Vinil Verde que eu acho brilhante, A Menina do Algodão que eu acho brilhante, Eletrodoméstica; não tinha essa coisa de editais. Mas ele dribla essa falta – ó, você vai fazer cinema mas, e acho que como latino-americanos a gente sempre tá “fazendo cinema, porém”, com isso e isso e isso, né?

LA: É como se a gente quisesse atender expectativas estéticas que não condizem com nossa realidade, com o nosso “cinema possível”

JF: Aquele cinema que só você pode fazer.

GAA: É, e aí você descobre uma linguagem, de repente uma nova e potente. “Ai, eu não tenho dinheiro então não vou fazer”.

LA: E aí onde empacam muitos que querem ser cineastas.

GAA: Mas aí fica a dúvida: você quer ser cineasta mesmo? Não quer TV ou publicidade, que te permitem filmar e ganhar também grana. Questões que você vai se colocando ao longo do processo.

Ao fim da entrevista, convidamos Gabriela para conhecer o cinema alagoano visitando o catálogo aqui no Alagoar, nos abraçamos e tiramos algumas fotos. Ela é enérgica, ao mesmo tempo que leve e convicta no que fala, tratando cada elemento com a devida atenção, exatamente como vemos em seus filmes.

Esse texto faz parte de um projeto de entrevistas realizadas no 51º Festival de Cinema de Brasília com alguns dos diretores e atores da Mostra Competitiva. Busca-se a partir dessas entrevistas evidenciar questões e levantar tópicos de discussão sobre diversos pontos que compõem o atual cinema brasileiro a partir da experiência pessoal dos entrevistados.

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