Série: Encontros em Brasilia – Glenda Nicácio (Ilha)

Glenda NIcácio no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Entrevista: Janderson Felipe e Leonardo Amaral. Texto: Leonardo Amaral. Edição: Larissa Lisboa.

Enquanto cineastas e jornalistas conversam espalhados pela cobertura em um quase fim de tarde, Glenda repousa de óculos escuros no batente da cobertura e quem sabe o que olha. Ela se levanta e nos recebe com um sorriso e abraços. Seu filme passou dia 19 na Mostra Competitiva de Longas do 51º Festival de Cinema de Brasília, Ilha, longa que dirigiu junto a Ary Rosa e ele infelizmente teve que ir antes que pudéssemos entrevista-los juntos.

Leonardo Amaral: Do que você gostava de brincar quando criança?

Glenda Nicácio: Nossa… que pergunta gostosa, nada a ver com cinema. Acho que eu gostava de brincar muito de pega-pega, até hoje. Assim… as vezes, sei lá. Se eu tiver parada e alguém, as vezes o Ary faz muito, que é tipo… ameaçar que vai me pegar, eu disparo assim. Eu vou sair correndo. É só chegar correndo atrás de mim, eu posso tá parada, eu saio correndo. Me dá alguma coisa e eu tenho que sair correndo, não vou ficar parada. Mas esconde-esconde, acho que também é uma brincadeira que eu gostava muito. Eu fui muito filha única, minha irmã nasceu com oito anos de diferença, então eu sempre ficava naquela de ter um irmão ou irmã, demorou pra chegar, e quando chegou já tava um pouco grande. E assim eu ficava brincando muito sozinha em casa. Tinha primo e tal, mas em casa quando não tinha outra criança, eu brincava muito sozinha, mas quando estava com minhas primas, a maioria das minhas primas são da minha idade, as brincadeiras eram mais essas de pega-pega e esconde-esconde.

LA: Essa questão vem mais pelo lúdico visto em Ilha, aquela experimentação de um cinema livre, um cinema plural, foi isso o que impulsionou essa pergunta.

Janderson Felipe: O seu filme termina com aquela frase…

GN: “Dedicado aos meninos e meninas que escolheram o cinema, mas não foram escolhidos por ele”.

JF: Então eu queria perguntar justamente isso, como você escolheu o cinema ou como chegou o cinema para você?

GN: Então foi um grande misto assim, né? Eu não tenho uma trajetória de cinema na minha família, por exemplo, eu tinha uma relação muito mais forte com o teatro na minha cidade, eu sou de Minas, do interior, Poço de Caldas. E na minha cidade na adolescência, eu comecei a fazer teatro na escola do bairro, aí acabei indo pro conservatório e do conservatório, fui pra companhia do meu professor. Então ficava nessa aí, ficava na produção, meio de assistência, era muito jovem né. Eu era muito jovem, tinha uns 14 (anos) algo assim, e me apaixono muito pelo teatro, a ponto de querer fazer. Quando surge essa possibilidade de fazer uma universidade, eu penso em fazer Teatro, aí eu entro nesse momento do Enem, como nota de entrada nas universidades né? Aí eu entro, sem nem pensar muito se queria fazer uma universidade ou não, tinha uma nota do Enem, ia ver se eu estava bem ou não, aí acaba que dá certo. Aí dentro das possibilidades tinha Teatro, e eu também coloco Cinema, que de certa forma se comunicava com as linguagens que eu gostava, com a fotografia, com questões que me tocavam. Mas eu ainda comecei a pensar cinema da forma muito voltada ainda pro Teatro, pensava assim “ah faço cinema e depois e depois eu consiga criar comunicações com atuação e tal”, aí eu fui pega de surpresa, eu não sou escolhida pelo cinema, mas estando dentro da UFRB, eu descubro a linguagem de cinema, nunca fui uma pessoa de ter esta trajetória dentro da minha família. Cinema pra mim era televisão, Globo, Sessão da Tarde, era isso, não tinha uma referência, uma cinefilia construída.

(Glenda retirou os óculos e colocou na mesa, sentou-se de forma mais confortável.)

LA: Você desenvolveu durante a faculdade?

GN: Não sei se eu sou uma cinéfila, com certeza não sou, não consigo. Moro num lugar que não tem um cinema, que nem Salvador. Se eu quiser ir pra um cinema o mais próximo é em Salvador que fica há 2h. O Cachoeira Doc é um festival que acontece em Cachoeira e aí sim, tem o Panorama Coisa de Cinema que dá esse leque do que tá acontecendo contemporaneamente no país, mas enquanto o cinema mais comercial, o acesso a esse tipo de cinema eu não tenho. Não sou uma cinéfila com certeza. Eu acabo entrando no cinema e fico deslumbrada pela possibilidade da linguagem cinematográfica, a linguagem sempre foi uma coisa que nos tocou desde o começo, pensar cinema a partir da linguagem, muito gostoso ir desnudando as coisas porque tudo que é natural, de repente não é nada natural. Isso pra mim foi muito revelador, enquanto mundo, lembro de “gente, mudou tudo”, ver o mundo com outros olhos, com olhos que você nunca supunha e enxergar toda uma engrenagem que não é natural, nem de longe natural, não é neutra, muito bem articulada, bem premeditada, estratégica né. Fazer cinema é muito estratégico e aí a linguagem vem trazer esse mundo que se abre, através da linguagem. E é uma coisa que a gente gosta muito de se debruçar.

JF: Eu acho que o Ilha tem isso então né? De pra vocês serem algo tipo “vou fazer o que eu quero, vou criar minha própria referência”.

GN: É, eu acho que é muito esse processo né? Eu refletindo agora falando com vocês. Que é muito esse processo de eu aprendo a fazer cinema, Ary também aprende a fazer cinema e aí no processo de também fazer cinema eu vou descobrindo o que é o cinema, não chego com uma grande bagagem e a partir disso me coloco, enquanto vou construindo a minha bagagem. Esse processo de conhecimento e de construção, de conhecimento do mundo do cinema e da minha construção enquanto estudante de cinema, enquanto realizadora, é muito esse lugar.

(Glenda gesticula animada com sua fala.)

GN: E aí tem o gostoso que eu acho que faz toda a diferença é que o meu encontro com o Ary se dá nesse lugar, nessa hora de em 2010, na terceira turma de cinema da UFRB, a gente tá junto, a gente se encontra na mesma turma, e aí a gente aprende a fazer cinema junto. E é muito gostoso porque a gente consegue ter uma série de diversidades enquanto pessoas, mas o cinema que a gente aprendeu parte de um mesmo lugar. Então é muito gostoso porque é dialogar, porque você fica se alimentando, se nutrindo enquanto parceria. Então eu gosto muito de pensar, que eu aprendi a ser diretora com Ary e ele aprende a ser diretor comigo. O pessoal as vezes pensa que é muito difícil de dividir direção, questionam essa divisão da direção, principalmente pra se ter um cinema mais autoral, essa figura né, do diretor ter um corpo, um pensamento, e aí eu acho que o nosso cinema já parte de sendo dois, desde os curtas a gente já trabalha num formato de coletivo, a nossa produtora é formada num formato de coletivo, a gente acredita muito nesse formato amplo de criação.

JF: Por que esse lugar do diretor autor, vem também de uma perspectiva até masculina, de sempre pensar que é um homem, e com vocês trabalhando coletivamente, vindo do Recôncavo Baiano, produzindo fora do eixo Rio-São Paulo, e entrando em lugares como Brasília, é muito uma resposta a isso, que vejo com muita importância, acho bem legal, é mais um comentário mesmo…

LA: Só que é um comentário bom porque considerando a realidade alagoana também né? Que é a de que não há uma escola de cinema lá, só que existe cinema lá e é algo que tem que ser afirmado também. Um cinema fora de padrões mercadológicos, um cinema de curta que por si só já é algo anti-mercado.

JF: Os nossos primeiros longas por edital estão para ainda serem lançados, então eu acho que a gente tem muita semelhança com o cinema de vocês, mais do que com esse eixo.

GN: Tem sim, no debate teve outro cara de Alagoas que falou também (Rafhael Barbosa), inclusive quero muito encontrá-lo, eu até falei com Ary que é muito gostoso estar nesse espaço, os filmes no geral geram vários diálogos diferentes com cada pessoa, com cada público, mas pensando em diálogos com outros realizadores, é muito legal conversar com quem também não está no eixo, com quem também tá em outras regiões, porque as pessoas partem de um lugar de fala que é muito do meu, sabe. A pessoa fala um negócio, não precisa nem ficar gastando.

JF: Se entende, né.

GN: É porque, é tão obvio, é isso que a pessoa faz também, e aí tem uma história muito próxima, muito semelhante, porque eu acho que quem não está nesses grandes eixos, e aí eu digo seja Rio-São Paulo, seja enquanto mercado mesmo, pensando até essa estrutura em festival, que é o lugar que dá uma visibilidade, mas ao mesmo tempo quando você não tá, você não existe. A gente sabe o que é não existir, não podendo estar nesses lugares por mil questões desde financeiras até possibilidade enquanto corpo, e aí eu gosto muito porque são diálogos muito diretos que a gente tem conversando com outros realizadores que estão no Norte-Nordeste.

LA: Você comentou anteriormente, sobre aspectos da linguagem do cinema que te chamaram a atenção, o que que não te chamava tanto a atenção e agora te puxou pra isso? Foram quais possibilidades, estilos etc.

GN: Coisa muito simples, questionar e saber o lugar da câmera, o Emerson brinca muito com isso, quando ele fala comigo “tudo é motivado”, o cinema que a gente aprendeu é muito isso.  A gente aprendeu linguagem com a professora Angelita Bogado, uma querida professora. É a professora da cadeira de linguagem no curso e ela partia muito desse lugar com a gente, porque a gente fica muito nessa reprodução, hoje a gente tem celulares, tem iPads, iPhones, “i-não-sei-o-que” e a gente pode gravar, gravar incessantemente, gravar tudo, todo mundo tá podendo gravar e isso é incrível, mas eu acho que é gostoso entender que o lugar da câmera conta narrativas diferentes, não é só chegar ligar a câmera, é muito cirúrgico escolher o lugar da câmera, escolher de que distancia você está filmando, refletir sobre essas relações. Então quando eu descubro que a câmera pode quebrar com esse vício né? Que a câmera pode assumir lugares diferentes, me dá vontade de pensar lugares diferentes para a câmera, de acordo com a minha vida, com o que gente faz no Recôncavo, com o que a gente passa. E é muito isso simples, depois vem um monte de coisa na cabeça, mas o ponto de partida pra mim, eu acho que é esse de refletir o lugar da câmera, pensar o que que ela tá contando e o que muda quando o lugar dela muda.

LA: A gente nota isso muito em Ilha com o movimento dos corpos, e é muito interessante você falar isso do movimento da câmera porque o filme começa com isso né? De evidenciar o que cada plano constrói, é uma autoconsciência aplicada.

GN: Sim, total.

(Antes do encerramento da entrevista, já com Glenda bem confortável, Janderson questiona sobre a o deslocamento e presença de seus filmes e dela em Brasília, é importante lembrar que esta edição do festival é a primeira que contou com maior presença de realizadoras mulheres.)

JF: Você é uma das poucas diretoras negras do festival, então como você se sente nesses espaços de festival e tendo um deslocamento pra esses lugares, sendo uma das poucas vozes nesse sentido?

GN: Eu acho que é um lugar muito complicado sempre. Porque parece como se você não tivesse história antes, você quase sempre é a primeira. “A primeira a fazer isso” e a gente sabe que não é a primeira porque tem toda uma militância, toda uma trajetória, todo um movimento bem articulado que vem se construindo e vem se consolidando, e somos muitas, mas ainda não estamos nesta quantidade ocupando os festivais, mas estamos produzindo, estamos realizando, estamos acessando. São vários nomes. Claro que é ótimo estar nos lugares, eu sou muito do entendimento de que a gente não consegue mudar as coisas se não estiver no fronte, se a gente não estiver fazendo parte, a partir do momento que enquanto mulher, enquanto negra, enquanto lésbica, quando eu faço parte desses lugares, eu acho que esses espaços eles vão ter que sofre algumas rupturas pra conseguir me acolher, acho que quando faço parte disso o formato um pouco muda também, existe um outro desenho. Então a gente tem que entrar mesmo, porque é entrando que a gente consegue causar alguma reverberação, seja no incomodo, seja na empatia, seja no reconhecimento, e pra além das questões de representatividade que são o ponto mais alto.

JF: A questão do afeto ser tão falada sobre os filmes de vocês, vocês acreditam que sejam algo que é por ser uma questão muito carente da representação do negro no cinema brasileiro, e que por isso é tão comentada pela crítica ou isso é algo que parte de vocês?

GN: Fale-me mais sobre isso, fiquei em dúvida na fala.

JF: É que eu acredito no Ilha tem uns encontros de afeto que são muito carentes no cinema brasileiro para com as representações de personagens negros, o afeto que existe entre o Emerson e o Henrique (protagonistas de Ilha) é bem único, então vejo da crítica comentar muito isso do filme de vocês.

GN: É, o Café com Canela ficou muito conhecido como filme de afeto, né.

JF: Eu sempre lembro muito do texto do Juliano Gomes.

GN: Sim, um texto lindíssimo, e eu acho que com o Café com Canela eu faço a reflexão que isso se dá muito, de que de fato, na nossa cinematografia as histórias dos personagens negros estão em segundo plano, sempre são personagens secundários, terciários, quando não está só na quinta camada, ou só é alguém que passa. E aí eu acho que trouxe essa quebra porque vinha contar uma história que poderia ser de personagens brancos, por que não? Mas eu acho que a gente demarcou, a partir do momento que a gente escolher filmar em Cachoeira, então quando montamos a nossa equipe, o nosso elenco, estamos falando daqui, a vida dessas pessoas nos interessam. Então eu acho que trouxe essa surpresa, porque não foi naturalizado, era sempre muito pontuado “o elenco todo negro”, “como é fazer um filme com um elenco todo negro?”, então a gente trouxe essa possibilidade através de histórias de afeto, que também passavam pelo racismo, conversamos sobre isso, não tinha como não ser político, falavam “é um filme de afeto, mas tem política?”, claro que era, não tinha como não ser, olha onde eu tô? O cinema que a gente faz não tem como não ser político. É um cinema muito político, de muita reflexão, de muita consciência, não é aleatório, é motivado.

JF: E eu acredito que tem um fator político no afeto também, né?

GN: Claro.

JF: Porque isso é algo muito negado, os afetos e encontros, tanto no cinema, quanto na vida mesmo.

GN: E pra além disso tem o afeto de quem tá fazendo né? Que é a forma de como a gente faz esses filmes, o Café com Canela é um filme muito onde nós precisávamos fazer esse filme, a equipe que fez foi a duras penas, muita dureza, mas a gente precisa, estávamos dispostos a contar essa história, eu gosto muito de pensar o Ilha, passando pela essa questão do afeto em tempos mais duros, trabalhando o encontro, mas gostando de pensar que nessa possibilidade enquanto realizadores negros, profissionais negros, atores negros poder contar qualquer narrativa, qualquer história. Isso precisa se consolidar no imaginário das pessoas, de que nós podemos falar de qualquer coisa. Se assusta a gente falar de afeto, então, vamos falar de qualquer coisa. Pode falar de ficção-cientifica, pode falar do que a gente quiser. Porque caímos nas nossas complexidades, nas nossas subjetividades e na nossa diversidade que tem que ser exaltada, tem que ser celebrada.

O sol já quase se põe, torna-se dourado, e assim termina a entrevista. Convidamos Glenda a conhecer o Alagoar, o que a deixou feliz pela possibilidade de encontrar mais do cinema alagoano. A jovem diretora é tranquila e transmite honestidade e muita paixão pelo cinema que realiza.

Esse texto faz parte de um projeto de entrevistas realizadas no 51º Festival de Cinema de Brasília com alguns dos diretores e atores da Mostra Competitiva. Busca-se a partir dessas entrevistas evidenciar questões e levantar tópicos de discussão sobre diversos pontos que compõem o atual cinema brasileiro a partir da experiência pessoal dos entrevistados.

Entrevista: Janderson Felipe e Leonardo Amaral

Texto: Janderson Felipe e Leonardo Amaral

Edição: Larissa Lisboa

4 Comentários em Série: Encontros em Brasilia – Glenda Nicácio (Ilha)

  1. Linda entrevista, adorei, parecia que estava ali também. Eu admiro muito esse cinema, vendo os filmes senti mesmo que estava acompanhando as ideias se iluminando na cabeça desses diretores, nada ali parece que estava de graça e ao mesmo tempo nada parecia forçado, ou “falso”. Demais, parabéns pelas entrevistas!

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