Angelita: retrato da cultura e religiosidade popular

Da pesquisa ao encontro cinematográfico

Texto: Jéssica Conceição

O ritual de benzeção é uma manifestação antiga da cultura e da religiosidade popular, principalmente no Nordeste. Apesar de ainda se fazer presente no cotidiano de moradores de cidades do interior e em zonas rurais, nos grandes centros urbanos essa prática é cada vez mais difícil de ser encontrada. O dom de benzer tem como principal sujeito a figura do benzedor, que na maioria das vezes é uma mulher detentora do dom da cura e da proteção. Munidas de folhas e ervas medicinais, velas, imagens de santos, rosários, oratórios e da palavra, elas exercem o dom da cura para aqueles que as procuram e têm fé.

Por se tratar de um saber, um ofício e uma ferramenta de expressão da cultura de um povo, tal prática deve ser valorizada, registrada e preservada. Pensando nisso, o Laboratório de Construção de Roteiro e Realização de Documentário (DocLab – SESC/AL) produziu, em sua primeira edição, o documentário Angelita (Jéssica Conceição e Mare Gomes, 2016). O filme retrata o cotidiano místico de Angelita, benzedeira que vive em um bairro periférico de Maceió. Ao longo dos seus mais de oitenta anos, Angelita dedicou boa parte de sua vida ao dom da cura. Por meio de planos simples, o documentário consegue registrar de forma singela a dedicação de Angelita ao seu dom.

Dona Angelita. Foto: Jadir Pereira.

Ao longo de todo o processo de construção do filme, foi bastante emocionante perceber a crença que todos na equipe demonstraram em relação ao que nos dispomos a retratar. Vez ou outra me pegava relembrando experiências do tempo de criança quando minha mãe, no menor sinal de mal olhado ou qualquer enfermidade, me leva para alguma senhorinha me benzer. Relatos como esse se tornaram frequentes nas conversas da equipe.

Mas a lembrança mais feliz de todo esse processo foi, sem dúvida, a do acolhimento que Dona Angelita nos deu. Estávamos lá, estranhos, curiosos, com câmeras nas mãos, com mil e uma perguntas a serem feitas, estudando, aprendendo sobre cinema e sobre o dom da cura, mas Dona Angelita com toda a sua doçura e paciência nos acolheu de peito e braços abertos. Para completar, vários integrantes da equipe se livraram de mau-olhado, espinhela caída, intriga ou quebrando, pois Dona Angelita tratou de benzer quem quis.

Angelita é uma produção coletiva, criada a partir do argumento que fiz junto à Karla Calheiros. O filme foi lançado em 2016, durante a Mostra Sururu de Cinema Alagoano. No ano seguinte, a obra foi selecionada para o 7º Festival de Cinema Universitário de Alagoas, realizado em Penedo.

Dona Angelita e Jéssica Conceição a porta da casa em que ela reside. Nivaldo Vasconcelos está de costas do lado direito da foto. Foto: Jadir Pereira.

Sobre a vivência e o processo

Texto: Isaac Moraes

O filme Angelita é fruto de um curso oferecido pelo Sesc Alagoas em audiovisual, cuja temática foi preservação da memória. Primeiramente, tivemos uma explanação com profissionais de diversos seguimentos na área do audiovisual para termos uma ideia, nos quatro meses de curso, de como funciona um set e o necessário para fazermos um filme. Depois, mergulhamos na temática em si.

Após uma seleção de roteiros, escolheu-se democraticamente um que falava sobre benzedeiras. Após uma triagem na cidade sobre as ainda sobreviventes dessa prática, chegamos a duas: Dona Lóla, na Garça Torta (agora já falecida) e Dona Angelita, no Bebedouro. Dona Lóla foi procurada primeiro, mas como sempre houve muito protocolo para que ela atendesse e a lonjura do bairro, foi inviabilizada a pesquisa com ela. Em seguida, procuramos Dona Angelita, indicação de um neto seu, amigo em comum de muitos no grupo. Foi amor à primeira vista e decidimos por unanimidade que ela seria nossa personagem.

Alunos e instrutores no primeiro dia de filmagem de Angelita. Foto: Jadir Pereira.

Marcamos uns dias de filmagem com Dona Angelita após a primeira visita, onde conversamos e alguns de nós fomos bentos por ela. Na segunda visita, já iniciamos as filmagens e a preparação dos ambientes. ”Vamos fazer uma tomada do quarto”: ajeita o altar daqui, abre a janela, fecha a janela, acende a luz, esconde isso, ajeita aquilo, acrescenta tal elemento. Tudo isso em equipe e bem rápido. Lembro que a maioria de nós escolheu sua função, mas tudo também se deu de maneira orgânica.

No final, algumas pessoas se reuniram para juntar as partes e fazer o filme de fato. Depois nos juntamos para ver o resultado, que agradou a todos. Na Mostra Sururu 2016, onde estreou o filme, a própria Dona Angelita esteve presente e recebeu uma homenagem muito bonita de todos nós. Foi uma experiência muito gratificante.

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