Série: Encontros em Brasilia – Júlio Machado (A Sombra do Pai)

Júlio Machado na varando do B Hotel, no 51º Festival de Brasilia do Cinema Brasileiro
Entrevista: Janderson Felipe e Leonardo Amaral. Texto: Janderson Felipe. Edição: Larissa Lisboa.

Esse texto faz parte de um projeto de entrevistas realizadas no 51º Festival de Cinema de Brasília com alguns dos diretores e atores da Mostra Competitiva. Busca-se a partir dessas entrevistas evidenciar questões e levantar tópicos de discussão sobre diversos pontos que compõem o atual cinema brasileiro a partir da experiência pessoal dos entrevistados.

Júlio se senta num dos sofás da varanda do B Hotel, em Brasília, de muito bom humor nos recepciona depois de passar por uma série de entrevistas.

Júlio Machado: E aí? E vocês tão vivendo essa delícia de experiência de acompanhar um festival inteirão né?

Leonardo Amaral: Inclusive é a nossa primeira vez em Brasília.

JM: Minha primeira vez em Brasília também, mas é doido né? Assim, um volume de estímulos, os debates se criam, é muito rico.

LA: As nossas entrevistas não são tão ortodoxas…

JM: Eu nem sei se sei fazer entrevista ortodoxa, eu sempre quebro os protocolos, as pessoas ficam “tem um tempo aqui”, fui gravar um stories ontem, falei um minuto o cara teve que dividir em cinco.

[Risos]

JM: Prolixo, é louco…

LA: Me diz uma coisa que você tem medo.

JM: Medo não honrar… de não conseguir honrar determinadas oportunidades.

LA: Você tem algum exemplo em mente?

JM: Aqui onde a gente tá, conversando sobre cinema, medo de ter uma oportunidade rica dentro do filme e não alcançar a dimensão humana de um personagem, como poderia? A gente nunca tem esse controle, mas o medo de ficar aquém de um voto de confiança, por exemplo, de algum criador, de algum realizador.

LA: Você se sentiu confiante com esse da Gabriela Amaral Almeida?

JM: Eu me senti muito confiante durante o processo porque ela tem muita objetividade, muita clareza do que ela propõe, Gabriela tem um arsenal vastíssimo de estímulos além do roteiro, e Gabriela tem uma disponibilidade pro outro rara de encontrar, então muita confiança durante o processo, mas confesso que quando vi o filme ontem, pela primeira vez, e depois de dois anos de ter feito, eu fiquei com medo, eu fiquei assombrado e fiquei com medo de me ver na tela, por esse motivo que acabei de dizer. Porque como o personagem é um morto vivo, ele tem um estado de não interação com o mundo, que era a proposta, que era o objetivo, mas que me fez na ansiedade de ator me perguntar, onde é que estão as curvas, de buscar algo dali que não era dali, então eu dividi meu olhar ontem entre o expectador que vê o núcleo das mulheres vivendo com suas fés, com uma fotografia mais solar, mais iluminada e eu como telespectador envolvido com aquilo, com o ator do outro núcleo e absolutamente crítico, sobre as escolhas que eu fiz, mas depois eu relaxei um pouco, porque a gente não tem domínio sobre isso, é o diretor quem tem esse domínio e é um aprendizado que ainda tô vivendo. Não tenho muita experiência em cinema.

LA: Só que recentemente a gente vê você vindo pra outras linguagens, o Onde nascem os fortes, Velho Chico, o cinema depois…

JM: É, o meu primeiro contato com atuação foi no teatro, eu passei 20 anos trancado em salas de ensaio de teatro ou em temporadas de peças, sem me relacionar muito no audiovisual, mas com muita curiosidade em relação a cinema e sempre que podendo encaixar uma participação num curta,  era uma pulsão de aprendizado daquela linguagem, de quatro anos pra cá começaram a aparecer oportunidades tanto no cinema quanto na televisão, de me relacionar com esse universo do audiovisual, e eu tenho investido muito nisso, ao custo de não fazer teatro há três anos quase, o que tem me colocado uma questão de necessidade, mas assim feliz na experiência porque é um outro paradigma, um outro jeito de abordar a atuação, a oportunidade de passar em revista tudo que de bom o teatro me ensinou e tudo que de ruído o teatro me ensinou também, na hora de fazer o audiovisual tem hábitos que a gente desenvolve no teatro que no audiovisual atrapalham, o desenvolvimento da criação ali de um espírito. Então eu gosto por uma natureza minha de experimentar em todos os lugares, claro que cada um tem a sua especificidade, fazer uma peça de teatro, que é a minha origem vai me dar um prazer especifico, fazer cinema que é uma novidade na minha vida, é um prazer onde eu caso os bons prazeres do teatro com a relação com a câmera e não só com a câmera, com a possibilidade daquilo estar registrado em outras instâncias, em outros tempos, o teatro é muito efêmero, então quem puder tá ali na experiência que vai compartilhar a criação, é através do audiovisual que isso se ampliou como uma coisa nova pra mim. E tem o equilíbrio que é sobreviver de arte no Brasil, que tá intimamente ligado a certas escolhas.

Janderson Felipe: Então acredito que sobre seu medo dito anteriormente, você teve experiências bem diferentes no cinema, a primeira com o Joaquim (em Joaquim, dir. Marcelo Gomes) que era muito confrontado pelo seu meio e na A Sombra do Pai, onde você tem uma personagem muito linear.

JM: Exatamente, embora os dois tenham muita similaridade na abordagem, no processo, na construção do trabalho, que é a seguinte, não são similaridades, acho que é uma, na verdade, que é “a porta de entrada pra esse universo será a corporalidade”, isso foi um acordo que coincidiu tanto no Joaquim, quanto no A Sombra do Pai, abordamos o trabalho de atuação dentro do filme através da fisicalidade, tentando o máximo que podíamos nos desviarmos das elaborações psicológicas daquilo, interessava muito flagrar como é que um corpo reage e se transforma ou no caso do A Sombra Pai, simplesmente estar, se mantém, permanece naqueles universos. Pô, então é o maior barato poder viver isso, no cinema isso é muito necessário, o realizador tem uma elaboração muito mais profunda do que no caso de televisão que tem uma necessidade anterior que é a de fazer um produto. Isso se reflete de um jeito diferente, agora eu tenho entendido que na televisão, dentro desses produtos de entretenimento, o aprendizado que a gente tem acesso é fantástico, coisa que a gente aprende ali na urgência de fazer tudo num ritmo mais acelerado e industrial, como isso ensina e te dá também repertório pra em situações mais contemplativas você trazer também esse material e contribuir de alguma maneira.

LA: Com certeza, talvez você aproveite o tempo de outra forma, né? Talvez você sinta um maior aproveitamento da coisa.

JM: Eu acho que a coisa vai se elaborando dentro de você de forma mais humana, você não sai correndo precisando definir determinados caminhos, eu acho que quando se tem tempo, as coisas brotam mais genuinamente dentro da proposta, um jeito mais natural, mais orgânico, então são desafios distintos, assim, eu confesso que eu me divirto ou tento me divertir com cada um deles.

LA: Tanto que hoje no debate ficou uma coisa bem emotiva, porque teve aquela evidenciação dessa questão da masculinidade…

JM: Esse é o ponto que mais me seduziu nesse projeto da Gabriela, poder através desse projeto investigar a minha condição cívica, de cidadão mesmo, de macho, num mundo em que isso está em debate, como são essas relações, o que precisa ser transformado, pra que a gente encontre mais harmonia, mais felicidade, então isso foi o grande elo, foi realmente o que me deu vontade fazer esse personagem, esse homem cristalizado na sua necessidade de sobrevivência, que também abre um aspecto social…

[A assessora de Júlio o interrompe para perguntar se ele irá para a sessão deste dia]

JM: Então foi com esse personagem que eu fiquei “uau, quero fazer isso”, pensar onde é que está o Jorge dentro de mim, de como é que eu, Júlio, me comporto com ele do ponto de vista do engessamento mesmo, da dificuldade de construir pontes, da dificuldade de compreender o universo feminino.

LA: Então aí é interessante ver que você fez Joaquim, que é um homem de uma outra época, e é como se o homem daquela época, viesse e ficasse engessado né, porque o Joaquim tem uma masculinidade bem crua, bem bruta e aí essa masculinidade quando colocada nos dias de hoje ela entra em choque com as mudanças de mundo.

JM: É verdade, e ambos estão tentando sobreviver, né? De certa forma oprimidos por um sistema, por um funcionamento de sociedade que te cerca, que te dá muita pouca oportunidade de respirar e contemplar e de acolher a alteridade, o outro, a necessidade do outro, a realidade do outro, o diferente né? Enfim a busca pelo ouro daqueles homens em Minas Gerais naquele momento, a gente pode traçar como paralelo da gênese, da necessidade de se inserir num mercado hoje.

LA: Exatamente, é bem o trabalho como base dessa cadeia opressiva.

JM: O capitalismo ali nascendo.

JF: A alienação…

LA: O trabalho que aliena né?

JM: O trabalho que aliena, que te tira a autonomia do seu tempo e da sua subjetividade, sua capacidade de escolher.

LA: Como você mesclou a alienação do trabalho com a alienação da masculinidade? Porque dá pra ver que seu personagem é a união de ambas, que é aquele personagem que não demonstra afeto, agora ele não demonstra afeto pelo sistema machista, mas também pela alienação do trabalho que impede que ele descanse, que só deixa ele chegar em casa tarde.

JM: Eu acho que as coisas estão intimamente ligadas, é socialmente aceitável ou socialmente imposto que o homem seja o caçador, o provedor, o caçador aqui fazendo uma referência aos primórdios, que o homem seja a fonte, o motor da produção de recursos, o que nos colocou em ciladas né? Primeiro porque a mulher é muito bem capaz de assumir, a gente tem visto, frentes de liderança, frentes de criação, de produção, mas a mulher trás na natureza dela a capacidade de se manter atenta a essa dinâmica e de não se deixar ser engolida por ela, eu penso.

LA: Enquanto no homem não tem esse ensinamento né?

JM: Acho que o homem foi tão ensinado a ser o vitorioso dentro de uma busca, de uma batalha, que foi deixando desvalorizar sua condição de humano, eu acho que são duas questões que se cruzam, estão intimamente ligadas e uma explica muito a outra, e vice-versa.

LA: E é interessante notar que quem mais morre de suicídio são homens, branco e héteros, e a gente se pergunta “por que se são os mais privilegiados? ”, que na verdade existe uma bolha, que a Gabriela inclusive chama de castração emocional, que impede com que ele consiga lidar com as emoções, a ponto de não se matar…

JM: Acho que foi inclusive uma coisa muito bonita no filme da Gabriela, esse recorte, ela nos apresenta um personagem homem muitas vezes odiável, ele tem atitudes que a gente odeia ver, eu odiei ver, mas a gente também o acolhe, vê que também é um fruto de um sistema, que não é uma escolha individual, que não é uma escolha consciente, e é isso todas as pautas, reivindicações das mulheres, do feminismo, tudo isso tem que ocupar mesmo os espaços, tem que ser pensado.

JF: Também é uma forma de se pensar novas masculinidades né?

JM: Essa nova masculinidade depende dessas coisas que estão sendo colocadas, mas também depende da compreensão de que o homem, o indivíduo, não necessariamente reproduz aquilo conscientemente ou por uma escolha, acho que se houver essa discussão, os diálogos serão mais produtivos.

JF: Então, e conversando com a Gabriela, que é uma amante do gênero de horror, como foi a sua pesquisa pra sua personagem, já que você faz um zumbi no filme?

JM: Eu não tinha intimidade com o gênero, eu nunca fui um estudioso, e isso se colocou como uma questão pra mim, “poxa, eu preciso conhecer o gênero como um todo? ”. Mas logo no começo do processo eu entendi que quanto mais inconsciente eu tivesse que estávamos fazendo um filme de gênero, talvez melhor proveito eu tirasse da experiência da sensorialidade que a gente buscava, na tentativa de desviar de uma elaboração muito racional ou teórica daquilo, eu simplesmente encarei como qualquer outro trabalho que se apresenta, deixei abrir a minha escuta para o que a direção propõe. A direção não propunha que eu tivesse conhecimento sobre o gênero para a gente elaborar algo que coubesse no gênero, e nessa aventura eu descobri que um zumbi tá muito mais próximo de cada um de nós contemporaneamente, nessa sociedade que a gente vive do que eu podia supor, porque de certa forma, se não tomarmos cuidado a gente também vira mortos em vida na medida que a gente vai diminuindo a nossa disponibilidade para a subjetividade, para os encontros, então foi uma escolha eu não me debruçar sobre o gênero para buscar dentro de mim o que eu pudesse emprestar pra aquele estado de espírito da personagem, aquela sensorialidade.

[Ao final da entrevista entregamos o convite, em formato de ingresso de cinema, do Alagoar para o Júlio conhecer o site e os filmes alagoanos.]

JM: É tão bacana, um dos meus maiores prazeres agora que tenho feito um pouco de cinema e participar dos festivais, é encontrar essa pluralidade, assim sair daquele mundo alienante das superproduções, é uma conquista do cinema brasileiro nos últimos anos e é muito legal ver que cada local tem seu jeito de fazer e o seu movimento, eu agradeço muito pelo ingresso e estarei lá na próxima sessão no Alagoar.com.br

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