Texto: Assessoria / Mostra Sururu. Foto: Divulgação.
A memória audiovisual alagoana é repleta de lacunas. A ausência de políticas públicas de preservação legou a acervos inteiros o desaparecimento. Um sem número de documentários, filmes de ficção, cinejornais, reportagens e importantes registros domésticos — obras que contribuiriam para reconstituir nosso passado — foram vencidos pela ação do tempo. Nunca mais poderão ser vistos novamente.
Um conjunto de oito filmes em super-8, dirigidos pelo veterano fotógrafo e cineasta alagoano Celso Brandão entre 1975 e 1982, por pouco não engrossou essa galeria de títulos perdidos.
“Os filmes foram confiados a um laboratório do Rio Grande do Sul, para serem copiados em digital, mas voltaram em VHS, sem os originais. Durante anos, o laboratório não respondeu à nossa insistente correspondência, nem telefonemas. Dez anos depois, procurando peças para uma exposição na reserva técnica do Museu Théo Brandão, encontrei uma caixa do correio, fechada e com todos esses super-8, que há muito tinha dado como perdidos”, conta Celso.
Após o inusitado resgate, em 2017 Celso apressou-se em digitalizar as obras num laboratório em São Paulo. O resultado seria incerto. A película cinematográfica é um material extremamente sensível. Com tanto tempo fora de circulação, o material poderia ter sido deteriorado, assim como tantas outras produções no decorrer das últimas décadas. Algumas delas inclusive de autoria do próprio Celso Brandão.
Mas o frio na barriga durou pouco. Logo foi constatado que todos os filmes estavam intactos. Dessa forma, Alagoas recuperou um preciosíssimo documento de sua história cultural. Imagens que hoje são inéditas para os olhos de toda uma geração.
Nascido em 1951, Celso dedica-se ao registro etnográfico desde os 17 anos de idade, acumulando uma riquíssima documentação acerca de diversas expressões culturais, entre elas os folguedos, o carnaval, os rituais religiosos, as feiras, a arte popular, o artesanato e as comunidades indígenas.
Os filmes resgatados propiciam um passeio geográfico pela Alagoas profunda, indo de Porto Real do Colégio, onde o cineasta filmou a técnica indígena da cerâmica utilitária, em 1978, a Boca da Mata, terra do artesão Manoel Da Marinheira, retratado por Celso em 1979. Maceió surge em “A Feira do Passarinho”, documentário em que temos contato com o tecido humano do centro da capital, no epicentro cultural de um dos mais atípicos comércios populares do país.
Também em Boca da Mata foram captadas as imagens de “Guerreiro das Alagoas” (1982), um retrato da expressividade atemporal do folguedo natalino mais amado do estado. As imagens são pura poesia.
No próximo domingo (16), finalmente o acervo será apresentado ao público na Sessão Relicário Mágico da Terra, promovida pela nona edição da Mostra Sururu de cinema alagoano. A exibição antecede a tradicional cerimônia de premiação do festival.
Serão apresentados cinco filmes, numa curadoria organizada pelo jovem realizador Ulisses Arthur (“As Melhores Noites de Veroni”). Ulisses, que teve recentemente seu primeiro contato com a produção do veterano, revela-nos o que lhe seduziu na obra do artista: “Estar diante das imagens que Celso fez em super-8 me instiga profundamente em diversos aspectos. Primeiramente, em sua potente beleza enquanto registro de ritos cotidianos e folclóricos do povo alagoano. Em segundo, por experienciar suas imagens enquanto uma viagem: a leveza do super-8 possibilitando que a linguagem vibre próxima à vida em fluxo. É também um encontro de gerações e o desejo de aprender com as imagens que me antecedem, e compreender a história do cinema que é feito em Alagoas desde muito tempo”, diz.
Segundo o curador, a intenção é dar continuidade à sessão após a Mostra Sururu, apresentando os relicários de Celso para mais espectadores país afora.
Após vermos os filmes, fica-nos a sensação de que o artista filmou cada uma das imagens pensando na posteridade. Se foi mesmo o caso, muitas outras gerações ainda irão se surpreender com seu olhar.
Autor de mais de 40 filmes, aos 67 anos de idade o cineasta parece estar longe de aposentar sua câmera. Entre as 15 produções selecionadas para a competição da Mostra Sururu, neste ano poderemos ver o mais novo trabalho do diretor, o documentário “Chau do Pife”.
SERVIÇO:
O quê: Sessão Relicário Mágico da Terra (Encerramento da IX Mostra Sururu de Cinema Alagoano).
Onde e quando: Domingo (16/12), no Centro Cultural Arte Pajuçara, às 19h.
Entrada franca
Mais informações: mostrasururu.com.br
PROGRAMAÇÃO:
Cerâmica Utilitária Cariri (super-8, 1978, 4.56 min.)
Em Porto Real do Colégio, município alagoano localizado na região do Baixo São Francisco, uma comunidade de descendência indígena Kariri-Xocó preserva os saberes da produção de cerâmica utilitária. Feita por mulheres, a atividade era a principal forma de subsistência do grupo quando enchentes do Velho Chico afetavam a agricultura. O documentário mostra o procedimento de confecção das louças de barro, com auxílio de ricas informações etnográficas trazidas pela narração de Vera Calheiros. Assim como em outros trabalhos de Celso, a paisagem humana ganha protagonismo.
Mandioca da Terra à Mesa (super-8, 1977, 10.31 min.)
Uma família de agricultores de Riacho Doce, comunidade localizada ao Norte de Maceió, realiza todas as etapas do cultivo da mandioca, alimento que é protagonista da mesa nordestina. Novamente com a rigidez etnográfica que lhe é característica, Celso Brandão busca retratar cada detalhe do processo artesanal, dos cuidados com a terra antes do plantio até a produção da farinha de mandioca. A paisagem de Riacho Doce confere bastante plástica ao visual do filme.
Na Boca da Mata (super-8, 1979, 5.35 min.)
Um relato do processo de criativo do artesão Manoel da Marinheira (1916-2012), desde a coleta dos troncos mortos até a finalização das peças, sempre inspiradas em animais da fauna brasileira. Em paralelo ao trabalho do artista, o filme acompanha o cotidiano prosaico de Manoel, sua esposa e seus 17 filhos na zona rural do município alagoano de Boca da Mata. A narração (texto de Vera Calheiros) problematiza os efeitos da exploração da Cana de Açúcar na região, que tirou a terra dos pequenos agricultores e devastou a vegetação que deu nome à cidade. As imagens de Celso também constróem uma camada lúdica, brincando o universo de Manoel da Marinheira e seus fantásticos animais. Há espaço até para uma breve experimentação em stop motion.
Guerreiro das Alagoas (super-8,1982, 18.34 min.)
O documentário acompanha a jornada nômade de artistas populares do folguedo Guerreiro, a mais difundida manifestação popular de Alagoas. Utilizando do recurso do som direto (técnica não disponível em seus filmes anteriores), Celso lança mão de entrevistas com os membros do grupo do Mestre João Inácio, ouvindo seus relatos poéticos sobre aquele modo de vida. A montagem intercala entrevistas com as apresentações nas noites interioranas, momentos de deslocamento do grupo de fazenda em fazenda e a preparação dos brincantes em alojamentos improvisados. Marcado por muita musicalidade, irreverência e poesia visual, o registro é uma verdadeira raridade para a memória da cultura popular´alagoana.
A Feira do Passarinho (super-8, 1975, 18.05 min.)
“Fim da Feira do Passarinho é o choro do Trocadores” — diante desta manchete de um jornal da época, o documentário registra a movimentação de uma das feiras mais tradicionais, e também pitorescas, de Maceió, famosa nacionalmente pela sua localização em meio aos trilhos de uma linha ferroviária. Todos os dias, os feirantes eram obrigados a desmontar suas barracas cada vez que o trem passava. Para além do aspecto exótico, o filme mostra as negociações de compra, venda e troca dos mais diversos itens, os serviços de conserto, os alimentos servidos aos consumidores, as cachaças e, principalmente, as pessoas que compõem aquele ambiente. A lente de Celso captura com especial atenção as feições, os movimentos dos rostos e dos corpos dos feirantes. O plano sonoro é composto ora pelo som dos repentistas da feira, ora pelas canções populares que ecoavam nas rádios da época. Um registro único do Centro de Maceió na década de 1970.
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