Análise: Parteiras (dir. Arilene de Castro)

Texto: Jadir Pereira.

O primeiro dia da IX Mostra Sururu de Cinema Alagoano (2018), realizada no Centro Cultural Arte Pajuçara, com duas sessões lotadas, exibiu filmes que refletem sobre a transitoriedade da vida. Este movimento contínuo que chamamos vida está simbolizado, por exemplo, em uma viagem de trem feita por Fernanda, personagem transexual de Bravo (documentário de Alfredo Pontes); no passeio de jangada de Tony e Bia do filme Leve A’mar (ficção de Kátia Rúbia); ou ainda a presença das motos entrecortando os filmes A Última Carta (ficção de Eduarda Marques e Sérgio Onofre) e A Porta (Ficção de Robson Cavalcante e Claudemir Silva). De forma anacrônica, se Heráclito (535 a.C. – 475 a.C.), filósofo grego, pudesse assistir aos curtas da noite, talvez repetiria sua frase imortal “tudo flui e nada permanece.”

Entretanto, para a vida fluir, é necessário um princípio. É aqui que se encaixa o curta Parteiras (documentário de Arilene de Castro). Para Heráclito, o princípio de tudo é o fogo. Ironicamente, o cenário deste curta se encontra no calor do Sertão de Alagoas, onde as políticas públicas raramente chegam. Nestes lugares esquecidos, onde a morte e a vida são severinas, o ofício de parteira é essencial para a sobrevivência. Contudo, o advento da obstetrícia moderna, o aumento dos partos cesarianos, o preconceito contra a medicina popular, vista como um saber inferior, têm extinguido tal profissão, restando apenas idosas parteiras e suas lembranças de tempos em que apanhavam os recém-nascidos em suas saias.

Afinal quem são as parteiras retratadas por Arilene de Castro? Antes de tudo, elas são mães. Algumas delas afirmam que fizeram o próprio parto de suas gestações. São mulheres afrodescendentes que trazem na sua ancestralidade o conhecimento milenar das coisas naturais. São mulheres idosas apegadas aos seus santos católicos com destaque ao Padre Cícero e à Nossa Senhora Aparecida. Em geral, elas são apresentadas sentadas em sofás ou em cadeiras de balanço como se estivessem sempre à espera…

Nos tempos de ofício intenso, chegavam a percorrer longas distâncias “de carro, de bicicleta, de pé”, enfrentavam chuva e atravessavam rio “com água nos peitos”, mas, como afirma uma das parteiras “nunca disse que não ía”. Tudo sem ganhar nada. Em compensação tornavam “mãe de umbigo” dos “meninos que pegavam”; tornavam parte da família. Posteriormente, os meninos crescidos tomavam-lhe a benção: “bença, mãe! Bença, vó! Bença, madrinha!”. Quanto mais “pegava menino” mais confiança e prestígio ganhavam na sociedade. Aos poucos, as parteiras tornavam-se as grandes-mães de seus respectivos povoados.

A escolha por filmar boa parte das cenas em 50mm, trouxe às cenas um aspecto intimista e retratista. É possível se deleitar com a fotografia de cada mulher. A proximidade da lente cria uma sensação de que aquelas senhoras estão na nossa sala; de que são nossas conhecidas; nossas avós. A câmera fixa e focada nas idosas demonstra o cuidado que a equipe teve de sentar e ouvir as histórias ancestrais. Em nenhum momento, o protagonismo daquelas mulheres foi usurpado, nem mesmo quando é ilustrada a presença de seus maridos ou por uma imagem que dura poucos segundos na tela ou pela captação de som ambiente interferida  por voz masculina, logo silenciado por um “cala boca”

As entrevistas são realizadas em tons de confissão. Entrevistadora e entrevistada estabelecem uma dialética feminina; criam um “gineceu”, um lugar onde é vetada a entrada de homens, da mesma forma que as parteiras não permitem a entrada dos homens no ambiente de trabalho de parto. Este é o momento em que a mulher está mais exposta. Aliás, os homens somente aparecem como figurantes e como elemento de transição para outro bloco de entrevista.

A luz natural, provavelmente suavizada, por um rebatedor, traz um brilho áureo e sagrado para a pele morena das protagonistas do filme. Nas paredes, estão suspensos quadros de santos e santas reforçando a presença do sagrado. Elas mesmas são espécies de sacerdotisas, fazendo o elo entre o sagrado e o profano. Suas vestimentas são estampadas por motivos florais ou étnicos que, por sua vez, reforça a ancestralidade do matriarcado divino cuja função é promover a fertilidade da natureza e a nutrição de suas crias.

As filmagens externas optam por mostrar as anciãs colhendo ervas e flores, como se deixasse implícito também o ofício de benzedeira. Uma das anciãs chega a posar para as câmeras com uma flor na mão, cena, provavelmente, dirigida. O efeito deste pano de fundo, das casas cercadas de jardins, realça o caráter fértil do ambiente, embora, vale lembrar, estamos no meio do sertão alagoano. Porém, de acordo com a crenças populares, quem tem a mão boa para “pegar menino”, tem mão boa para plantar, criar os bichos e curar os enfermos através da benzedura. É, portanto, recorrente o foco da câmera para os animais que cercam a casa das parteiras: cachorro, gato, bois, galinhas… O que remete a raiz etimológica da palavra parto da forma latina partum ato de produzir, gerar, criar aplicadas ao ser humano, aos animais e às plantas.

Os saberes sobrenaturais e naturais se fundem como a receita de cicatrização pós-parto, ensinada no filme: “um gengibre cortado em cruz” . Algumas parteiras se orgulham de não precisar de nada para realizarem o seu ofício, apenas esperavam a natureza fazer o seu papel, para que as parteiras segurassem as crianças nas mãos, tal conforme descreve a feiticeira Joana, personagem da peça “Gota D’água” (Chico Buarque e Paulo Pontes), “tudo está na natureza encadeado e em movimento”. Nesse fluir perene é que se desatam os nós umbilicais do espetáculo da vida, como verseja João Cabral em “Morte e Vida Severina”: “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio,/ que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/ vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/ a explosão, como a ocorrida”.

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