Cinema Negro em movimento, uma entrevista com Thamires Vieira

Perguntas: Larissa Lisboa e Roseane Monteiro. Respostas: Thamires Vieira. Foto:Fabio Bouzas.

É possível que você já tenha tido contato com alguns dos filmes produzidos por Thamires Vieira, pois ela foi produtora de Ilha, segundo longa de Ary Rosa e Glenda Nicácio, e dos curtas curtas alagoanos dirigidos por Ulisses Arthur As Melhores Noites de Veroni e Ilhas de Calor. No entanto, para incentivar que mais pessoas a conheçam e (re)conheçam o trabalho que ela realiza, Roseane Monteiro e Larissa Lisboa realizaram esta entrevista.

Larissa Lisboa: Como teve início a sua relação com o cinema?

Thamires Vieira: Ir ao cinema nunca foi um costume ou uma possibilidade durante toda infância. Raras foram as vezes que minha mãe conseguiu me levar para um cinema de rua que ficava no centro de Salvador. Porém eu assistia pela televisão todos os filmes que conseguia. Um dos meus tios alugava fitas VHS para seus filhos e sempre me convidava, foi assim que conseguia ver filmes fora da disputada televisão de casa. Talvez tenha iniciado por aí minha relação com o cinema, mesmo eu não me dando conta anteriormente.
Já na adolescência, depois de ter perdido o ano escolar e precisando começar novos ciclos pois estava saindo do trabalho de Jovem Aprendiz (2008- 2010) procurei algo para fazer, de surpresa cai na seleção da turma de 2010-2011 de um projeto social chamado OI KABUM escola de arte e tecnologia que atuava em 4 estados do Brasil introduzindo como formação a arte e tecnologia para jovens periféricos. Comecei a estudar, produzir vídeo. A escola ficava no Pelourinho, nesta época saímos com a câmera tentando filmar a tudo e a todos, dali já considero o início da minha relação com o cinema.

Roseane Monteiro: Como o desejo de produzir filmes se concretizou na tua vida?

TV: Já na OI KABUM, onde foi minha primeira experiência com produção audiovisual, pude experimentar um set de curta metragem que durou 5 dias em uma ilha chamada Caixa Pregos realizando o filme AO MAR,  eram alguns profissionais na orientação e 20 jovens de diferentes periferias de Salvador. O desejo pelo cinema aumentou depois desta experiência e continuou a se concretizar na sequência, através da faculdade onde ingressei para estudar cinema e audiovisual logo após o término do curso.

LL: Quando você começou a perceber o cineclubismo como uma ferramenta para formação de público? De quais cineclubes já fez parte?

Não acredito neste cinema que se acaba na produção, no desejo, na ideia de um diretor. Entendo o cinema como ferramenta política de transformação social, acredito que os filmes nos permitem dizer e estar em lugares inimagináveis. Produzindo um cinema negro, o cineclubismo é a melhor forma de nos aproximar de fato do nosso público. Participei de diversas iniciativas e mostras de outros cineclubes em vários lugares do Brasil, mas efetivamente fiz parte durante quatro anos do Cineclube Mário Gusmão – Projeto de Extensão do Curso de Cinema da UFRB.

LL: Com quais áreas de atuação no cinema vocês mais se identifica?

TV: Já experimentei de tudo um pouco, trabalhei operando câmera, assinei direção de arte de alguns projetos de curta, fiz assistência de direção e produção em diversos níveis em muitos projetos. Me permiti a vivenciar tudo isso, pois acredito que é a maior graça do começo de carreira são as descobertas e o cinema tem muitas possibilidades.
Atualmente me identifico e trabalho nas áreas de direção e produção.

LL: Qual foi o seu primeiro trabalho como produtora executiva?

TV: Ser produtora executiva ainda está acontecendo, construir neste lugar uma história sólida requer muitos passos. Minha primeira experiência foi no curta metragem alagoano As Melhores Noites de Veroni (dir. Ulisses Arthur, 2016). A caminhada tem crescido, tive outras experiências, assinei uma Exposição de Artes Visuais, um projeto de Cineclube com três Mostras e produzi o curta metragem Ilhas de Calor (Ulisses Arthur, 2019). Agora estou desenvolvendo trabalho com outros filmes e uma série, continuo caminhando.

LL: Como foi realizar a produção executiva de “As Melhores Noites de Veroni, de Ulisses Arthur”?

TV: Começamos a fazer o filme em casa, nesta época dividimos uma casinha velha  e era nossa primeira vez morando juntos, a casa era movimentada, pensávamos sobre o cinema que gostaríamos de fazer, o futuro era pauta principal em nossos café da manhã…
As melhores noites foi uma experiência bonita e desafiadora. Cheguei em Maceió com muita vontade de conhecer as pessoas e a cena. O filme exigiu  muitos arranjos de tramitação do recurso que envolvia pessoas que eu não conhecia, filmar em apartamento, entre outras coisas, mas conseguimos ter um set harmonioso e os problemas estavam sempre sendo solucionados juntos, tínhamos uma equipe muito afim de fazer acontecer.

LL: Como foi participar do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro vendo Café com Canela (dir. Ary Rosa e Glenda Nicácio), em que você fez assistência de direção, e As Melhores Noites de Veroni, que você responde pela produção, exibidos juntos?

TV: Eu estava com Ary e Glenda no set do Ilha. Já estávamos há alguns dias isolados em Ilha Grande. Fizemos um caminho longo de meios de transportes, costumo brincar que usamos quase  todos, de fato pegamos; barco, van e avião para chegar no Festival. Foi um ano bonito, uma sessão emocionante. Vi tudo acontecer de perto. De alguma forma ver seu trabalho em tela grande e em lugar de prestígio contribuiu muito para minha própria relação na crença do cinema que estou fazendo, não pela validação, mas por poder acessar pessoas e assuntos de um outro lugar. Tem toda a complexidade da estrutura e questões que ainda são um desafio para refletir como a celebração do cinema, mas foi um projeção bem importante.

LL: Como foi realizar a co-produção de “Ilhas de Calor, de Ulisses Arthur” pela Rebento Filmes?

TV: Sabemos o quanto é difícil fazer um filme sem recurso. Ter uma empresa e fazer filme sem grana é entender isso como um investimento. Pensamos isso juntos (Ulisses e Eu) , ter um filme que pudesse continuar a construir esse nosso  cinema, que se aproximasse do longa (já que o roteiro já existia). Como produtora mobilizei toda equipe técnica e garanti algumas parcerias na relação de equipamentos, mas sem dúvidas a relação de coprodução faz as responsabilidades serem compartilhadas e complementadas, estou aprendendo a coproduzir.

RM: Você pode nos contar como foi a experiência de participar do BrLab?

TV: Grandiosa, o processo de trocar os projetos com outros produtores e a conversa de uma forma amistosa com playres (diferente dos ambientes tradicionais de mercado) ampliou muito meu repertório como produtora. Para o projeto um dos maiores ganhos foi saber da sua potência artística e política, sendo algo que não interessa apenas ao circuito brasileiro. Sem contar a importância de ser premiada com dois prêmios de desenvolvimento e consultorias o que foi bem incrível! Sabemos neste momento do Brasil a importância de evidenciar projetos que debatam outros pontos, outros corpos e toda ocupação destes espaços por pessoas negras tão importante termos cada vez mais visão da qualidade do nosso trabalho e do quanto esta experiência contribuiu.

RM: Nos filmes que produziu o que tem de você neles?

TV: No longo destes quase 9 anos com cinema fiz  muitas coisas. Como produtora tenho ganhado cada vez mais autonomia para criar atmosfera, montar equipes  e decidir alguns processos. Minha relação com o cinema é visceral, além de muito da minha energia nos trabalhos, aqueles que consigo;  tem um pouco do meu ponto de vista, do meu trato, deste cinema que tô descobrindo que mais gosto; um cinema que não maltrata as pessoas que assiste , que não maltrata quem faz, um cinema que não é romântico, mas que é perto e possível, tem um monte dos filmes que fiz em mim.

LL: Como funciona o coletivo Tela Preta?

TV: Tela foi um momento, um movimento, um marco. Começou em 2012 com os estudantes negros do curso de cinema. Nesta época eu ainda estava chegando na universidade. Comecei a integrar o coletivo em 2015, depois da experiência como diretora de produção  do Cinzas de Larissa Fulana de Tal. Nossa organização naquela época eram ações pontuais, fizemos parte da construção da APAN e de diversas edições do Encontro de Cinema Negro, insistindo sobre o debate entre ética e estética. O funcionamento do coletivo nunca foi linear, mas sempre muito intenso. Foi sem dúvidas um processo de acolhida e de formação importante para mim.

RM: O que você acha da políticas de cotas socioeconômica, étnicas e de gênero nos editais de fomento ao Audiovisual?

TV: Necessárias, um avanço. Quando começamos a falar de cotas em editais de fomento entendemos a importância de repensar os agentes de cultura e os detentores de poder dos meios de produção e de comunicação. A periferia existe por causa dos centros, a população negra sempre produziu, os cineastas negros ainda que invisibilizados sempre realizaram. O que a política de cotas faz é possibilitar que a minha geração  e outras não precisem passar pelo mesmo processo dos que vieram antes de nós, com Zózimo Bulbul e Adélia Sampaio. Que nosso cinema tenha questões, mas que não seja a dificuldade de realizar a maior questão dos filmes. Temos capital simbólico, artístico , agora precisamos ter capital financeiro, esta é uma das contribuições das políticas de cotas, reparação.

RM: O que é e qual é o papel da Associação de Produtores Negros (APAN)?

TV: Reunião de realizadores negros que se encontram na sua maioria em lugares solitários. Dentro do cinema e só pelo cinema, comecei a me sentir só. Na periferia onde morei toda minha vida ou na escola pública, não dava tempo de se perceber só. Sabemos que o cinema como todas as artes é majoritariamente dominado  por uma elite, branca e herdeira. As pessoas negras ainda que em diferentes contextos econômicos não são maiorias em sets ou em produções. A APAN surge como uma união destes profissionais que se encontram espalhados pelo Brasil vivendo experiências marcadas pelo racismo, principalmente institucional. Dentro da APAN existe uma divisão de trabalhos, mas sabemos que o gargalo institucional é o maior deles. Reuniões com Ancine, conselho gestor, fundos, eventos, participações e pautas em mesas. Mas ainda é um começo…

RM: Qual é o conselho que você dá para a aquela galera que sonha em fazer cinema, mas não tem câmera, mora nas quebradas e que não advém do sudeste?

TV: O caminho é estudar, se emancipar ideologicamente de toda e qualquer tutela do estado perante nossos corpos, nossa criação, nosso trabalho. Já estamos em lugares importantes, mas ainda não temos o poder. Importante que a gente pense em novos processos políticos e nos pense como projeto político, já que pelo movimento negro conseguimos hoje ter as políticas públicas sendo tocadas de outra maneira. Nossa história interessa muito ao mundo, interessa muito a gente, se interessa a você, o mundo já vale conhecer. Precisamos arregaçar os braços e começar. De algum lugar, comece. A oportunidade ideal para gente não vai acontecer.

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Thamires Vieira é natural de Salvador, Bahia. Possui graduação em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. É produtora e  atua nas áreas de assistência de direção e direção de produção, entre seus trabalhos estão as produções baianas Café com Canela (2017) e Ilha (2018) ambos premiados com Prêmio de Distribuição Petrobras. Thamires Vieira foi produtora executiva dos curtas-metragens de Ulisses Arthur: As Melhores Noites de Veroni e Ilhas de Calor. Atualmente está na pré-produção de Não Estamos Sonhando, estreia de Ulisses na direção de longa metragem, premiado no BrLab 2019.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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