Texto: Jasmelino de Paiva. Revisão: Larissa Lisboa e Chico Torres
O Universal
Na última cena de Originários, documentário roteirizado, produzido e dirigido por Marcelo Amorim em três aldeias indígenas do estado de Alagoas, toda a comunidade dança e canta em círculos. Talvez essa cena defina bastante a impressão que tive ao ver o filme. A seu modo e com uma estética própria, os realizadores souberam sintetizar, ainda que sem intenção, a ideia de comunidade e alteridade.
A alteridade do ponto de vista da antropologia social é a condição de ser um outro, um diferente, um distante ou, nos casos mais radicais, ser um exótico. Em outras palavras, alteridade seria a ideia que fazemos do outro a partir do nosso ponto de vista. Talvez nem sempre nos atentamos para isso, mas regularmente estamos emitindo juízos de valor sobre outras culturas utilizando como unidade de medida nossa ideia de mundo ou partindo do pressuposto que nosso modo de vida é o universal e todos os outros não.
Um dos meninos retratados no curta, que não deve ter mais de 10 anos, cujo nome dito em sua língua significa “índio da mata”, aparece fumando um cachimbo. Chamou a minha atenção a naturalidade que o filme deu à imagem, como se o fato de aquele menino estar fumando um cachimbo fosse algo normal. Nas cenas seguintes, lá estava o índio da mata fumando normalmente seu cachimbo. Um pouco mais à frente, a voz de uma das líderes da comunidade fala sobre o assunto, como quem se explica para o mundo e soubesse do meu sutil estranhamento na cadeira de cinema. Entre outras coisas ela relata que naquela aldeia as crianças também fumam e que aquele fumo é diferente dos cigarros que são comercializados nas cidades, cheios de produtos químicos e nicotina. Aqui, na “civilização”.
Esse mesmo menino, em outro momento do filme relata como frequentemente é abordado por não indígenas. Dizem para ele que o índio tem que viver nu e no meio do mato, como eram os índios antigamente. A esse respeito há uma ideia equivocada e etnocêntrica de que o indígena é o detentor da cultura ancestral e que, portanto, deve permanecer intocado e intacto, enquanto o resto do mundo cuida de viver o futuro, com todas as suas bonanças e desgraças. Isso é problemático e óbvio porque o modo como cada um decide viver a própria vida é estritamente pessoal. Segundo a mesma líder indígena citada acima, a missão do índio é ser livre.
Sem dúvida, um ponto crítico do filme é a ausência das meninas. Ao assistir Originários, ficamos mais íntimos dos meninos daquelas aldeias. Cada um deles diz com orgulho o seu nome em sua língua original, depois o que significa. Mas o nome de nenhuma menina foi dito, o que pareceu uma escolha dos realizadores, já que elas existem e estavam ali. Nós as vimos e não as conhecemos, o que é uma pena.
Esses exemplos ilustram a sensação que tive ao ver o filme. Deparei-me com o individualismo que nos envolve na célula social que vivemos, onde o conceito de comunidade acaba restringindo-se às redes virtuais, o que também é uma escolha pessoal. O filme me fez recordar como a maioria de nós acredita que nosso modo de vida é universal, sendo a cultura do outro e do novo uma anomalia à regra.
grande Jasmelino, nos vemos en buenos aires