Perguntas por Larissa Lisboa. Respostas por Nilton Resende. Foto em destaque: Josué Seixas.
Fui aluna de Nilton Resende em 1999/2000, foi através dele que experimentei pela primeira vez participar do processo de construção de um filme ainda nos anos 2000. Reconheci nessas duas décadas após essa primeira vivência com ele, a atuação dele no Teatro, a literatura que ele transpira e ensina, e me reencontrei com ele em algumas tantas experiências cinematográficas. Sou testemunha da presença dele como ator, diretor de elenco/preparador de elenco e diretor.
Procurei propor nessa entrevista o encontro com parte da trajetória de Nilton para visibilizar a pluralidade, criatividade e transpiração que é alimentada na convivência com ele e pelos trabalhos que fez/colaborou, o que vem somado com a espontaneidade, sinceridade e generosidade dele em estar aqui presente e inteiro, compartilhando suas vivências e paixões.
A Barca primeiro filme dirigido por Nilton Resende iniciou sua circulação em dezembro de 2019 na 10ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano, compõe a programação da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em que participa da Mostra Foco, com exibição no dia 29/01 às 22:30 no Cine Tenda em Tiradentes (MG), e será debatido no dia 30/01 às 12:30 no Cine Teatro Sesi no Encontro com os filmes Mostra Foco – série 3. Confira a programação completa da Mostra.
Larissa Lisboa: Quando você começou a atuar?
Nilton Resende: Artisticamente, quando estudava jornalismo na Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo, no grupo de teatro da universidade, em 1990. Mas antes disso, desde bem novo, eu já vivia falando textos teatrais ou poemas em frente ao espelho.
Em Maceió, comecei em 1998, com o grupo Infinito Enquanto Truque, do Lael Correa. O Espaço Camaleão, espaço do grupo, ali no bairro do Poço, era uma espécie de QG onde, artisticamente, de algum modo, espicaçava-se o marasmo que reinava por aqui — e também a nossa hipocrisia. Lael e o grupo têm uma grande contribuição para nossa cultura.
Na vida, no entanto, comecei a atuar quando passei a ter medo de ser espontâneo; quando passei a criar personagens no dia a dia, para não ser ferido; quando passei a não ser eu mesmo, para que os “machos” (fossem eles homens, adolescentes ou garotos) parassem de me agredir, mesmo quando eu ainda era uma criança.
LL: Na sua trajetória teatral, você realizou a adaptação de Mário e o Mágico, de Thomas Mann. Como foi estar em O Mágico como adaptador, ator e codiretor?
NR: Foram três experiências bem distintas, e todas elas muito fortes e bastante representativas para mim. E é importante considerar que em nenhuma delas eu estive sozinho, pois a relação entre os componentes da Cia. Ganymedes era de um diálogo muito intenso. E principalmente porque tive a Fátima Farias (a Fal) e o Igor de Araújo como meus principais interlocutores enquanto eu adaptava o texto do Mann, e porque eu e a Fal trabalhamos juntos na direção do espetáculo. Imagina, então, a gente junto com o Marcelo Marques, discutindo cenas e trilha do espetáculo. Era muito massa. Havia ainda a Simone Maria (Sima), também no elenco. Além dela, o Igor Machado, o Paulo Cahe e o Igor Vasconcelos, que sucessivamente viveram um mesmo personagem.
Acho que as presenças que mais me agradaram foram as de adaptador e codiretor. Nelas, acredito ter feito um trabalho com uma qualidade estética que de algum modo corresponde às minhas exigências como artista e como espectador.
Em relação à direção, gosto das soluções cênicas encontradas por mim e pela Fal — em especial, a forma como Cipolla o tempo inteiro dirige-se à plateia como se estivesse se dirigindo às personagens que estão atrás dele. Isso dá uma grande contribuição para a sedução do público, porque o traz para dentro da cena.
Se hoje olho a adaptação, eu ainda gosto dela. Gosto da fusão de personagens, de como diversas falas de Cipolla foram colocadas na boca de outras personagens, de como inseri em O Mágico trechos de outras obras, para além da novela Mário e o Mágico: o poema Os homens ocos, de T. S. Eliot; o poema Memória, de W. B. Yeats; o romance O som e a fúria, de William Faulkner; e, do mesmo Thomas Mann, trechos do romance Doutor Fausto, do conto Horas difíceis e da novela Morte em Veneza.
Quanto à minha presença como ator no espetáculo, acho que não consegui algo que me agrade. Eu nunca havia entendido por que minha presença no palco não me agrada, nunca me agradou. Mas parece que agora começo a enxergar o problema: entre mim e a personagem, eu sempre colocava a inteligência, a compreensão da cena; nunca o afeto, o sentimento. Na verdade, sempre elegi a razão como o modo principal de conhecimento do mundo — mas agora eu percebo que não é.
Após tantos anos preparando atores e atrizes, após tanto anos errando como ator e como preparador de elenco, após ter feito alguns cursos, após ter estado com dona Anita das Neves em O que lembro, tenho, acho que finalmente estou pronto para começar a caminhar na direção do ator que nunca fui, mas que talvez um dia eu chegue a ser. Talvez agora eu, no palco, pare de atuar e finalmente seja uma presença.
Sobre O Mágico, estamos preparando um retorno para no máximo até o final de 2021. Estreamos o espetáculo em 2006, mas, após muita busca, apenas em 2014 conseguimos entrar em contato com o agente literário que cuida dos direitos da obra do Thomas Mann para a América Latina. Agora, temos os direitos para adaptação do texto dele e sua encenação; então, poderemos viajar com o espetáculo, inscrevê-los em festivais.
Ainda sobre ser adaptador, codiretor e ator, acho que agora tudo será menos agoniante, porque o espetáculo está quase pronto, sua macroestrutura está pronta. Então, a partir de agora, a Fal, após conversarmos sobre as linhas gerais do espetáculo, poderá ficar sozinha com a direção de atores, o que me permitirá estar em cena sem me preocupar com os outros atores e a atriz. É difícil estar em cena sendo ator e diretor. Como confio na Fal, estarei tranquilo em levar apenas minha presença como Cipolla para o palco.
Lembro algo importante: a enorme atualidade do texto, nestes tempos que estamos vivendo. Por isso quero tanto retomar o espetáculo. Li, em dezembro passado, que a novela Mário e o Mágico está entre os livros a serem lançados neste ano dentro da coleção do Thomas Mann editada pela Companhia das Letras. Então, seria muito bom haver a consonância entre o retorno do espetáculo e a nova tradução/edição da obra.
LL: Como teve início a sua relação com o cinema?
NR: Como espectador, minha relação com cinema sempre foi algo de aventura e algo muito ligado à emoção. Há diversos momentos relacionados ao cinema que nunca me saíram da memória.
Eu morava no bairro do Prado, quando criança, então, havia cinemas perto de casa: o São Luiz, o Lux, o Ideal e um outro cujo nome nunca descobri, mas que era um pequeno cinema particular na rua Manoel Lourenço. E até as televisões que ficavam nas pracinhas — de certo modo, aquilo era cinema.
Ir ao São Luiz era um grande evento. Muitas vezes, esperávamos por horas na calçada, havia filas intermináveis. Quando conseguíamos entrar, ficávamos no saguão, à espera da próxima sessão. Isso aconteceu, por exemplo, com Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão e com Pinóquio. O cinema cheio, um monte de gente sentado no chão, e outro monte de gente esperando a próxima sessão, no saguão ou na rua. Ir ao São Luiz era muito bom também por causa do itinerário de casa até lá, a pé do Prado até o Centro, passando pelo mercado. Lá, eu vi Guerra nas Estrelas e uma das imagens que mais me impressionaram no cinema: a holografia da princesa e general Leia Organa pedindo a ajuda de Obi-Wan Kenobi.
No Lux, vi filmes do Costinha, como Costinha e Robinson Crusoé, com Grande Otelo. Eu me lembro também de ter visto um cartaz com um relançamento de Romeu e Julieta, do Zefirelli, com a linda Olivia Hussey. Acho que eu não pagava para ir ao Lux, porque às vezes me lembro de eu e minhas irmãs ou alguns colegas entrando no cinema pela porta de saída ou entrando escondidos por algum lugar lá.
No Ideal, uma vez, era Semana Santa, havia muita gente na porta, eu entrei no cinema: ele estava cheio, lotado, gente em pé, encostada nas paredes, gente nos corredores. Era A Paixão de Cristo. Acho que foi nesse dia que pela primeira vez eu vi a Fernanda Montenegro: ela era a Boa Samaritana. Era essa cena que estava passando quando entrei, mas havia muita gente e eu achei tudo muito chato, então saí. Mas outra experiência também me marcou: quando, em 1986 ou 1987, O Exorcista entrou novamente em cartaz. Um grupo de alunos da antiga Escola Técnica gazeou aula e foi ao cinema. Agonia danada. Medo danado. Saí do cinema correndo até a Praça dos Martírios, para pegar o ônibus para casa. Corria rezando, quase em pânico, e prometendo “nunca mais pecar”.
Do cinema na rua Manoel Lourenço, lembro-me que um dia um tio meu me levou até lá, e estava passando algum filme japonês, com aqueles monstros parecidos com o Godzilla.
O cinema sempre foi essa aventura, até depois começar a vir a mim sob outro aspecto: quando comecei a me interessar por literatura, passei a sonhar em ver aquelas personagens nas telas, comecei a pensar em adaptações, comecei a rabiscar os livros. Muitos dos projetos que tenho para o cinema vêm de textos literários — tenho uma lista de livros que pretendo adaptar. Sempre me disse que eu não tinha vontade de filmar algum roteiro originalmente meu, mas agora estão aparecendo ideias que não são adaptações. Isso é bom, porque aumentam as possibilidades de realização.
Eu comecei como ator em teatro, mas confesso que sempre sonhei com o cinema, sempre sonhei em trabalhar com cinema, pois ele, na minha infância, esteve sempre presente — e o teatro era algo mais distante.
LL: Fui sua aluna no Madalena Sofia e fiz parte do grupo que você criou para experimentar construir um exercício de adaptação em vídeo de um conto da Lygia Fagundes Telles. Como surgiu a ideia de fazer o grupo? E, do que vivenciamos, o que você levou adiante no desejo de adaptar a obra de Lygia?
NR: Lalá, aquele grupo surgiu de minha vontade de fazer cinema. E como eu tinha uma boa relação com vocês, meus alunos, eu achei que meus melhores parceiros seriam vocês. Então, conversei com a direção e eles permitiram que fizéssemos o grupo, que teve algumas fases, as quais nem sei agora diferenciar: assistimos a filmes, fizemos o curta baseado no conto A mão no ombro, mas que acabou virando uma colcha de retalhos, porque eu fiquei triste de ver que apenas alguns e algumas de vocês estariam como atores e atrizes, caso a adaptação fosse apenas desse texto. Como quase a maioria queria trabalhar como ator ou atriz, resolvi juntar mais de um texto, então, ficou uma mistureba danada que hoje nem sei bem como era. Algo que deixa bem contente é que, dos que estão agora no audiovisual aqui em Alagoas, temos duas pessoas que estavam naquele grupo de adolescentes: você, que foi nossa continuísta, e o Felipe Guimarães, que foi um dos atores.
Depois desse filme, a turma continuou, mas com outras pessoas, porque vocês já estavam se formando. Na turma seguinte, o grupo passou a assistir a filmes. Caramba, a gente viu Cabo do medo, Cova rasa, O exorcista — este último, vimos numa sala do Espaço Cultural. No fim da exibição, umas caixas caíram sozinhas na sala ao lado. Ficamos morrendo de medo e tratamos de sair logo dali. Eram filmes densos, pesados, mas é que nunca subestimei meus alunos.
Na sequência, começamos a ler e adaptar Natal na barca. Fiz um roteiro, definimos personagens, trilha… Numa tarde, pegamos uma barca às margens da Mundaú e fomos até Coqueiro Seco. Durante o trajeto, sonhamos com nosso filme. Foram lindos a travessia e o sonho. Mas era fim de ano, e não daria para fazer mais nada. E no ano seguinte, muitos não estariam mais no colégio.
Depois, outra turma resolveu adaptar A testemunha. Viajamos até Jequiá da Praia, vimos locações… Mas a coisa não aconteceu.
Agora, A Barca existe, e só existe porque antes houve todas essas tentativas, esses sonhos.
LL: Quando teve início o seu diálogo com a obra de Lygia Fagundes Telles?
Ele se iniciou quando eu tinha uns 15 anos de idade e era sócio do Círculo do Livro. Nas revistas dele, havia de vez em quando um livro que me chamou muito a atenção: As meninas. Fiquei admirado pela descrição que dizia ser um livro de linguagem exigente e final irônico. Eu não sabia o que era um final irônico e nem o que era um livro de linguagem exigente. Mas, me pareceu algo desafiador. Passei um tempo paquerando o livro, tentando tê-lo, mas sem conseguir. Quando eu tinha 16 anos, finalmente ele me chegou às mãos. Era uma tarde. Fui ao meu quarto, sentei-me transversalmente na cama, muito desengonçadamente — na verdade, sentei-me com as costas, as pernas dobradas, a cabeça encostada no travesseiro, que se apoiava à parede. Abri a embalagem do livro, abri o livro, cheirei-o, olhei a capa, fui ao começo do romance: “Sentei na cama”. Caramba, eu também estava numa cama! Recomecei: “Sentei-me na cama. Era cedo para tomar banho. Tombei para trás, abracei o travesseiro e pensei em M. N., a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar, o tio da Lião disse isso mas ele não sabe, a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que M. N. vai dizer e fazer quando cair meu último véu”.
Caramba, aquilo foi incrível, eu nunca tinha lido algo daquele tipo, com aquela linguagem, com aquela força. Por dias, minha vida passou a ser eu, Lorena, Lia, Ana Clara. Eu e as meninas, minhas melhores companhias, minhas grandes amigas. Fiquei apaixonado pelo livro, escrevi para a editora, disse que amei o livro, que se um dia eu fosse escritor, era daquele jeito que eu gostaria de escrever, que eu gostaria de um dia escrever algo assim.
Um pouco depois, uma revista do Círculo do Livro publicou uma crônica do Ignácio de Loyola Brandão sobre a Lygia. Ela estava linda na foto — ela é linda, sempre foi linda. Ao terminar de ler o texto, eu estava apaixonado também pela pessoa dela. A partir de então, comecei a ler toda a sua obra, e nunca mais parei, porque ainda hoje os textos me surpreendem — e me ensinam muito, tanto como pessoa quanto como artista, em especial como escritor.
Meu exemplar de “As meninas” era cheio de anotações, porque eu sonhava em adaptá-lo, um dia. A obra dela me ensina a arte de narrar. A vida dela me ensina a arte de perseguir obstinadamente os sonhos, de perseguir obstinadamente o que pretendemos ser, desafiando-nos sem trégua.
LL: Qual foi a primeira função que você desenvolveu num filme independente?
NR: Meu primeiro trabalho em cinema foi como ator, no filme História Brasileira da Infâmia – Parte 1 (2005), do Werner Salles Bagetti. Ele costuma dizer que, de algum modo, eu estou em todos os filmes dele. E que bom isso, porque eu gosto dele e gosto dos filmes dele. Estou ansioso para ver Cavalo, dirigido por ele e pelo Rafhael Barbosa (com quem já trabalhei diversas vezes, e foi quem me possibilitou conhecer dona Anita das Neves, que é alguém que eu nunca esquecerei).
Depois desse filme, vim trabalhar com cinema apenas em 2009, quando a Lis Paim me convidou para fazer a preparação de elenco de Um vestido para Lia, dirigido por Hermano Figueiredo e Regina Barbosa. A Lis era produtora de elenco, conhecia meu trabalho na Ganymedes, e me convidou. Fiquei surpreso, temeroso, mas extremamente feliz com o convite.
Passamos semanas indo à Massagueira, para ensaiar com a Fabrícia Avelino. Foi uma experiência muito forte, porque a produção reservou parte do orçamento para ser utilizado na preparação da protagonista. Eu e Lis fizemos uma imersão, pensando em como trabalhar com a Fabrícia, estudando métodos. Éramos dois amigos trabalhando com a atriz durante o dia. E à noite, conversávamos sobre o trabalho, sobre cinema, sobre literatura, sobre nós mesmos. Ali, nossa amizade tornou-se mais forte, e agora somos muito próximos, apesar de ela estar morando em Fortaleza. Sempre estamos em diálogo.
Foi algo realmente diferencial o que a produção investiu na preparação de elenco: manter em outra cidade, por muitos dias, uma produtora e um preparador de elenco. Mais mágico foi o modo como aquela garota, que nunca tinha feito um trabalho como atriz, permitiu-se os desafios a que eu lhe chamava a cada encontro. Que força de vontade a dela, que força de vontade! Depois, trabalhamos ainda uma vez em Flamor (2013), curta metragem de Leandro Alves, adaptado de um conto meu. E quero ainda trabalhar mais vezes com Fabrícia.
Com a Lis, voltei a trabalhar em A Barca. Ela montou o filme, ela montou lindamente o filme. Ela é uma montadora da pêga, sensível, exigente — muito exigente para com o próprio trabalho.
LL: A sua trajetória como preparador de elenco/diretor de elenco teve início em 2009 em Um Vestido para Lia (dir. Hermano Figueiredo e Regina Barbosa). Conta um pouco sobre as experiências de preparar/dirigir os elencos aos quais você foi convidado.
NR: Nesta resposta, não farei referência explícita aos filmes, porque também falarei de problemas que vivenciei/vivenciamos. Não quero que vejam isto como críticas aos filmes ou a seus diretores ou produtores — esses problemas são totalmente compreensíveis, porque todos nós estamos ainda aprendendo a fazer cinema. E aqui em Alagoas, em cuja história cinematográfica houve mais ênfase na feitura de documentários, estamos mesmo aprendendo ainda a fazer cinema de ficção, a trabalhar com atrizes e atores. Farei apenas duas citações explícitas, porque já foram citadas antes: Um vestido para Lia, em que pela primeira vez pude ver uma personagem nascer; O que lembro, tenho, em que pude ver em cena uma mulher que era atriz, mas que apenas aos 74 anos fez um trabalho no cinema — a primeira vez que ela foi a um cinema foi no dia da exibição de seu filme. Poxa, estou falando disso e estou chorando. Eu não consigo assistir a O que lembro, tenho, sem chorar. Não consigo ver uma foto de dona Anita sem chorar.
Trabalhar com a Fabrícia Avelino e com a dona Anita das Neves foram duas experiências enormes: uma foi minha primeira experiência como preparador; a outra, ensina-me até agora o que é estar presente numa cena. Mas, eu entendi isso apenas no ano passado. Apenas no ano passado eu compreendi o que acontecia ali quando dona Anita estava em cena.
Durante estes anos, fiz cursos de direção de atores. Eles foram muito importantes para mim. E foi importante cada um dos trabalhos, porque cada um deles me ensinou muita coisa. Eu não tenho um método. Eu estou começando agora nessa seara — em arte, dez anos é nada. Mas, trabalhei com uma gente tão generosa… eu me emociono sempre que me lembro. Temos atrizes e atores com uma enorme generosidade. Atrizes e atores são, por natureza, muito generosos e se expõem demais. Eles têm de ser respeitados, muito respeitados. Eles se dão ao filme, eles têm disponibilidade para o risco… Tenho muito prazer em ver uma atriz e um ator em cena… fico contente cada vez que reencontro esse pessoal nas ruas, na Mostra Sururu, no teatro…
Tenho imenso respeito pelas atrizes e pelos atores. Nos créditos finais de A Barca, nos agradecimentos, estão os nomes de todas as atrizes que fizeram teste para o filme. Estão todas lá, porque eu não poderia deixar de colocá-las. Estão lá porque eu me emocionava ao ver o vídeo de cada teste enviado. Eu me emocionava porque elas desejaram/sonharam junto comigo, porque elas se dedicaram, porque elas gastaram algum tempo de suas vidas preparando-se para o teste, porque gastaram algum tempo de suas vidas gravando o teste, porque chamaram alguém para fazer o diálogo com elas… Admiro-as, e sou grato a cada uma delas.
Algo interessante é como se dá um teste de elenco. Não achem que nós, no teste, sabemos realmente o que procuramos. Muitas vezes estamos ali também na berlinda, à espera de sermos surpreendidos, à espera de que alguém apareça e nos diga/nos mostre a personagem que queremos, e não sabíamos que queríamos.
Algo assim aconteceu num teste para o filme Do amor e outros crimes (2011), dirigido pelo querido Anderson Barbosa (que acabou de realizar um belo filme, O Branco da Raiz), com roteiro do Pablo Casado (que tem se destacado na cena nacional como roteirista de HQ — leiam Mayara & Anabelle). Nesse teste, num breve momento, uma das atrizes deu um sorriso que me encantou. Depois, quando nos reunimos, Anderson e Pablo tinham percebido o sorriso. Eu disse a eles: poxa, eu quero esse sorriso no filme. Então, escolhemos a Ticiane Simões, com quem eu tive um enorme prazer, um enorme prazer. Nosso trabalho para que aquela prostituta existisse foi um dos trabalhos mais gratificantes que tive no cinema.
Eu tinha dito que ia falar apenas do meu primeiro trabalho (com a Fabrícia) e do trabalho que até hoje é uma escola para mim (a “escola Anita das Neves”) — mas não posso deixar de falar de como me foi prazeroso estar com a Ticiane em busca daquela mulher que ela nos revelou. Sou muito grato a ela.
Mas, sobre a trajetória, aprendi que:
- não quero entrar numa produção, como preparador e/ou diretor de elenco, se roteirista e diretor ou diretora não souberem o que é cada uma das personagens ou o que querem de cada uma das personagens, porque eu não posso, no set de filmagem ou na preparação, resolver os problemas de um roteiro frágil;
- não quero entrar num projeto cujo roteiro ainda não amadureceu suficientemente apenas por conta da pressa da direção ou da produção em filmar;
- não quero entrar em um projeto cujo cronograma não permita que eu trabalhe o tempo que seria o tempo devido para que tenhamos as presenças necessárias em cena;
- não adianta querer, numa ficção, a direção de fotografia mais top, a direção de arte mais fodorona, a captação de som mais incribilante, se não tiver havido uma prévia preocupação para que haja, em cena, personagens vivas e críveis o suficiente, com presenças suficientes para que a fotografia as ilumine, a direção de arte lhes dê um mundo onde possam estar ou por onde possam transitar, a captação de som ouça o que venha delas. Não adianta importar o tampa da fotografia, se não houver uma presença para se fotografar. Um filme de ficção é um trabalho com personagem — então, roteiro tem de ser valorizado, personagens têm de ser valorizadas, atriz e ator têm de ser valorizados (isso é algo sobre o qual tenho tido muitas conversas com o Rafha, com a Lis);
- uma personagem não existe por conta do que compreendemos dela através de nossa razão, mas de nosso afeto;
- estamos tratando do humano, então, tudo é envolto em mistério, o que me permite dizer que a caminhada em direção ao que somos é ao mesmo tempo um afastamento do que somos, por conta da consciência que vamos tendo de como nossa natureza é inapreensível — ainda bem.
LL: O quanto da sua pesquisa acadêmica influenciou o seu processo de adaptar a obra de Lygia para o cinema?
NR: Quando temos uma grande obra artística, aproximar-se dela é perceber que sabemos nada dela. Aproximar-se dela é perceber que há muito mistério ali. Em sendo uma obra de ficção, o estudo pode nos mostrar como suas personagens são ricas e inapreensíveis, assim como somos nós, pessoas de carne e osso.
O estudo pode também nos ensinar sobre as simbologias presentes na obra, os modos particulares da obra — mas isso, isso de nos acercarmos das simbologias, da linguagem, pode ser bênção ou maldição. Se não soubermos fazer com que a adaptação seja fruto de um diálogo entre duas presenças, a que está na obra e a que está em nós, talvez não haja uma adaptação, mas apenas uma transposição, o que pode fazer com que uma grande obra literária torne-se uma medíocre obra cinematográfica.
Isso de nos atermos à presença da obra, da energia que está ali, do não visível que está ali, é o que muitas vezes faz com que possamos ter grandes filmes advindos de obras literárias consideradas menores. Alguns textos literários nos oferecem um grande perigo: aqueles textos que nos parecem “prontos para ir à tela”, tamanha a naturalidade das cenas, dos diálogos. Mas, como já disse, adaptação não é transposição. A obra da Lygia é uma obra dessa natureza. Ela parece erroneamente fácil, “pronta para a tela”.
O roteiro de A Barca não ficou pronto rapidamente. Eu comecei a trabalhar nele há uns cinco ou seis anos, e passou por mais de dez tratamentos. Ainda bem que eu não fui o diretor de arte do filme. Ainda bem que foi a talentosíssima Nina Magalhães — se tivesse sido eu, possivelmente eu teria encharcado a cena com uma simbologia particularmente lygiana. Mas a Nina, estando movida pela presença da história, pôde, de algum modo, fazer algo independente do mundo que Lygia nos deu, ao mesmo tempo que nos deu aquele mundo. Ou seja, ao conseguir afastar-se do texto original, ela nos deu esse mesmo texto e algo mais. Se fosse eu, um estudioso da obra, a fazer a arte, talvez não tivesse dado nada mais além de um pastiche imagético da obra que deu origem ao filme. É que estudar faz com que a gente dê valor demais à razão. E a razão pode até compreender as presenças, mas não pode tê-las, não pode fazê-las — pode apenas discursar sobre elas.
Atualmente, trabalho no roteiro do longa metragem Edifício Lygia, que comecei a escrever em 2015 e está em seu 14º tratamento, embora tenha começado a pensar sobre ele alguns anos antes. Para ele, o estudo da obra de Lygia tem me ajudado bastante, porque há no filme uma fusão de diversas personagens de diversas obras, dando-nos uma representação microcósmica do universo lygiano.
Lembrei-me de uma coisa bem interessante: a Lis leu o conto Natal na barca apenas depois de ter finalizado o filme. E ela mesma, após ler o conto, ficou impressionada por conta da semelhança entre as presenças que há nele e no nosso filme. Ela não quis ler o conto antes porque temia ser contaminada e guiada demais pelo texto da Lygia. Ela quis que o próprio filme dissesse o que ele queria ser.
LL: O projeto do seu primeiro longa-metragem, “Edifício Lygia”, foi o vencedor do Pitching Aberto do Sebrae. Há quanto tempo você o desenvolve? Como ele surgiu?
NR: Estou respondendo a cada pergunta sem ter lido a entrevista toda, então pode ocorrer de eu já ter respondido a algo. Mas, o projeto surgiu há um tempinho, já, e teve diversas feições. Mas agora está mais próximo do que acho que virá a ser. O projeto de longa surgiu porque havia vários contos da Lygia que eu queria adaptar, então pensei em fazer um longa com diversos curtas, que seriam exibidos um após o outro. Depois, pensei que eles poderiam se passar em períodos diferentes, mas todos num mesmo ambiente. Aí, achei que não seria bom, porque iria começar uma história imediatamente após a outra, sem dar tempo para que ela fosse digerida. Foi quando me lembrei da montagem do filme As horas, do Stephen Daldry, o que me fez decidir por não as separar em blocos estanques, mas em contá-las paralelamente. Agora, a história se passa toda num único dia, num prédio em que moram todas as personagens. Uma coisa interessante, e que nos foi apontada durante o pitching, foi sua potência para virar série — então, estamos trabalhando também com essa possibilidade.
LL: Como foi a criação do projeto de A Barca?
NR: Deixa falar uma coisa sobre o nome do filme: o primeiro nome do roteiro era “Natal na barca”, como o conto que deu origem a ele. Mas, felizmente, o Rafhael Barbosa, sugeriu que fosse apenas A Barca, o que foi realmente melhor, porque então, no filme, temos a presença da embarcação, que se transformou numa entidade. Ela é, de certo modo, uma grande personagem do filme — tanto que, nos créditos finais, ela aparece no elenco. E seu nome, o nome dela na vida real, é “Deixe a minha vida”.
Outra coisa: o projeto de A Barca esteve adormecido desde aquele período no colégio Santa Madalena Sofia. Eu pensava na verdade em fazer o longa, tanto que eu o inscrevi no edital de 2015, em que Cavalo foi premiado.
Com a não premiação, o Rafhael (mais uma vez ele) me disse que era importante eu investir em um curta — foram muitas conversas entre ele e este aqui, cheio da arrogância dos ignorantes. Felizmente, fui convencido, e então tirei do limbo o projeto. O Rafha me perguntou se não havia nenhum conto que eu quisesse adaptar, então falei a ele de Natal na barca, que ele leu e pelo qual se apaixonou. Daí, ficou louco para filmá-lo, para dirigi-lo. Ele disse que queria dirigir, e eu quase cheguei a ceder, mas então me lembrei que muitos anos antes aquele havia sido um sonho meu, e resolvi não me trair, resolvi não dizer “não” a algo que um dia me fora tão caro.
Resolvemos então que eu iria dirigi-lo. Devo ao Rafha ter ressuscitado esse sonho. Serei sempre grato a ele por isso, e direi isso a ele, quando não estivermos discutindo: eu sou de Gêmeos, ele é de Capricórnio =]]].
LL: Como foi ver o seu projeto contemplado no IV Edital de Incentivo do Estado de Alagoas em 2016?
NR: Rapaz, minha “contemplação” não foi muito simples. Na verdade, o projeto ficou como primeiro suplente. Felizmente, o Leandro Alves teve dois projetos premiados: Moto-Perpétuo (projeto de telefilme que eu amo) e Bagaço (curta metragem). Ele desistiu do curta, então A Barca entrou. Na verdade, tenho sido “o rei da suplência”. E acho isso lindo.
Edifício Lygia foi suplente em 2015, quando foi premiado o projeto de longa metragem Cavalo (Rafhael Barbosa e Werner Salles); A Barca foi suplente em 2016, quando foram premiados diversos curtas metragens; Edifício Lygia foi suplente em 2016, quando foram premiados os projetos de longa metragem Olhe para mim (Rafhael Barbosa) e Como se monta uma cena (Werner Salles Bagetti); Edifício Lygia foi suplente em 2019, quando foram premiados os projetos de longa metragem Não estamos sonhando (Ulisses Arthur), Marina (Laís Araújo), Utopia (Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti).
Não vou dizer que é delicioso ser suplente ou que dei um sorriso enorme quando vi os resultados. Mas pô, fui por três vezes suplente do Rafha e do Werner, amigos meus talentosos, com carreiras sólidas, profissionais com quem já trabalhei diversas vezes, profissionais com uma experiência da porra. Então, ser suplente deles não é perda, é alegria, é honra.
Nas primeiras vezes, claro, uma certa tristeza durou por algum tempo, por bastante tempo, mas isso se deveu à arrogância do inexperiente. Na última vez, ano passado, a tristeza durou apenas uma noite. No outro dia, eu estava contente, pois haviam sido premiados projetos que admiro, projetos que naquele momento teriam maior possibilidade de nos dar belos filmes, belos resultados. E mesmo que tivesse sido preterido em função de projetos dos quais eu não gostasse, eu teria de ficar na minha — afinal, não posso dizer que um concurso só é válido quando eu ganho, né.
Assim, no dia seguinte, em vez de ficar chateado, pensei: que pontos no projeto tornaram-no frágil?, que coisas faltaram a ele?, que pontos preciso fortalecer?, em que coisas do roteiro eu preciso mexer? Foi quando me fiz essas perguntas que eu sorri e pensei: que bom que não fui aprovado. Se tivesse sido, talvez não estivesse pensando nesses aspectos, e nem fosse mais mexer neste ou naquele ponto do roteiro. Talvez não tivesse aprendido tais aspectos de como “vender melhor” um projeto cinematográfico.
Eu realmente fiquei contente com a suplência, porque ela me permitiu aprender coisas que talvez eu não tivesse aprendido caso tivesse sido premiado. Fiquei contente porque me fez exigir mais de mim mesmo em relação à feitura de um projeto que eu amo tanto. E também em relação a como vendê-lo. A suplência é um tempo para que o fruto amadureça. Acho que agora eu tô mais pronto pra ser comido.
LL: Quanto tempo durou da pré-produção até a filmagem de A Barca?
NR: A gente filmou já com a corda no pescoço em relação ao prazo. Tínhamos de filmar num período seco. Como não dava mais para filmar no primeiro semestre, teríamos de esperar chegar outubro, pois o filme todo se passa numa barca à noite, navegando na lagoa. Não poderíamos filmar com possibilidade de chuva. Pesquisei os meses mais secos, e vimos que seria bom filmar em novembro, mas isso não foi possível. Então, deixamos para outro período seco, que foi fevereiro de 2019.
Em fevereiro, escolhi uma semana específica, pois algo de que eu não queria abrir mão era de que filmássemos durante a lua cheia, por causa da luminosidade que ela iria jogar no entorno, dando-nos um mundo mais visível ao redor da embarcação. Além disso, e não menos importante, havia a questão simbólica: para mim, seria importante filmarmos na lua cheia. Se não fosse nessa semana, teria de ser na seguinte, quando teríamos uma lua minguante, e eu não queria isso. Outra coisa: se não pegássemos aquela semana, só teríamos outra lua cheia em março, justamente perto do dia de São José, quando as chuvas começam a levar embora o verão. Ou seja: muita oração pedindo para que conseguíssemos filmar na semana prevista.
Depois de filmado, foi preciso um bom período de tempo para as questões relacionadas à intervenção digital feita pelo Marcos André Caraciolo (o Marquinhos, que é um mago dos efeitos especiais). Esse foi um trabalho que exigiu bastante tempo. Por conta disso e de outras questões da pós, o filme só ficou realmente pronto no dia 09/12, dois dias antes de sua exibição na Mostra Sururu.
Em relação a filmarmos na lua cheia de fevereiro, ainda bem que todos concordamos e que tudo deu certo — do contrário, não teríamos no filme aquela lua linda, enorme, olhando/vigiando/abençoando a barca e os passageiros que nela estão.
LL: Como foi trabalhar com a equipe e o elenco do seu primeiro filme como diretor?
NR: Foi uma experiência inesquecível, por ser minha primeira experiência como diretor e por eu estar numa barca em que todos os passageiros eram meus amigos. Eu estava morrendo de medo. Eu queria muito acertar, mas tinha muito medo de errar. Então, se eu não estivesse entre amigos, e amigos com muita experiência no que faziam, talvez eu tivesse sucumbido.
Umas duas semanas antes das filmagens, vi um trânsito astrológico que dizia sobre como eu iria, nos próximos dias, estar propenso a explodir por motivos fúteis, a ter atitudes arrogantes, entrar em algumas discussões, e que caberia a mim “levantar a bandeira branca”. Assim que li isso, telefonei para a Nina e falei a respeito, pedindo que por favor ela me dissesse se visse em mim algum sinal daquelas coisas, que ela não me permitisse agir daquele modo. Depois, avisei também ao Rafha. Eu não queria que alguma atitude minha prejudicasse nosso filme. Mas, tudo correu bem.
É claro que hoje eu faria diferente algumas coisas. Claro! Isso se dá em relação a tudo que fazemos na vida, seja ou não no âmbito artístico. Há coisas no filme que eu vejo e penso: se eu tivesse sido mais corajoso, se eu tivesse conversado mais… Porque acho que há alguns aspectos do filme que vieram de minha insegurança: na insegurança, eu não abro diálogo. Na grande insegurança, eu não pergunto, eu não converso, eu não explicito algum querer. Fico me sentindo tão pequeno, que tenho medo de ser engolido pelo outro — e no final, de um jeito ou de outro, acabo me apequenando, pois me calo, em gestos e voz.
Mas isso é uma bobeira, uma bobeira danada. Ainda mais num trabalho em equipe, em que todos estão trabalhando para que o filme dê certo, cada um em sua função. Mas foi minha primeira experiência, e não quero me flagelar por conta disso. Principalmente porque estou contente com o filme. O importante é que aprendi: na próxima vez, o medo de errar e a insegurança darão mais espaço à vontade de acertar. A vontade de acertar tem de ser mais forte do que o medo de errar.
Éramos muitos na barca, que estava no limite de sua lotação. Por isso, o Leandro Alves (assistente de produção — um diretor, um dos responsáveis pela coisa linda que é o NAVI, sendo assistente de produção do meu primeiro filme) e a Nathaly Pereira (maquiadora e assistente de arte, pessoa cuja simples presença já nos faz bem) ficaram na base, que era o quintal da casa da família do Alanklevs e era onde atracávamos.
Na barca, estávamos nós: eu; Alanklevs Oliveira, dono e condutor da barca, que se mostrou totalmente acessível desde a primeira vez em que falamos com ele (ele abraçou o sonho do filme junto conosco); Rafhael Barbosa (assistente de direção); Nina Magalhães (diretora de produção e diretora de arte, a “mãe da barca”); Michel Rios (diretor de fotografia, que saiu de São Paulo e voltou pra terrinha, para nossas filmagens); Chapola Silva (que veio de Recife e nos emprestou seu talento como assistente de fotografia e operador de câmera); Marcos André Caraciolo (que fez a correção de cor e os milagres da supervisão de efeitos visuais e composição digital); Leo Bulhões (exímio percussionista que agora está entrando apaixonadamente na seara da captação de som direto); Vanessa Mota (nossa “stillosa” mais incrível e também a responsável pelo making of); Moab Oliveira (na iluminação e na elétrica, e ele teria de ser da elétrica, mesmo, porque energia e alegria é o que esse homem mais tem); Paulo Silver ( na 2ª assistência de direção e logagem — porra, eu ter como logger do primeiro filme que eu dirijo um cara como o Paulo, que eu admiro tanto, que nos deu filmes tão sensíveis e que é um cara tão sensível… isso é uma honra, isso é um luxo).
Fora da barca, aguardando que lhes mandássemos o material das filmagens, tínhamos, ainda: Lis Paim (montadora da pêga, e que quero que monte muitas coisas que eu filmar, e temos tantos projetos que a gente vem sonhando há anos…); Lucas Coelho (edição de som e mixagem, o homem que é ele próprio um mantra de apaziguamento para quem está a seu lado); Nataska Conrado (design gráfico e lettering, a mulher que nos deu aquele título tão lindo, tão lindo… e um material gráfico arretado e tão variado, e aquele cartaz!, e aqueles GIFs!).
E depois de tudo, o filme já pronto, contribuindo para que as pessoas de longe entendam nossa viagem, tivemos a contribuição do Pablo Cardellino Soto (tradutor para o espanhol) e da Luiza Leal (tradutora para o inglês e a pessoa que faz a lindeza que é colocar a legenda, sincronizar aquilo).
Mas na barca havia ainda o elenco: Rogério Dyaz, que saiu do Quintal Cultural (aquele necessário lugar de resistência cultural) para nos dar sua presença deitada no banco da barca, com sua flauta; Aline Marta, um ícone de nosso teatro, encarnando uma poderosa Caronte; o bebê Yan Claudemir, cuja inocência, sorriso, sono e beleza deixavam-nos em enlevo; a família do Yan, tão acessível e confiante nestas pessoas que apareceram na Massagueira à procura de um bebê (agradeço à Fabrícia Avelino por ter tornado possível o encontro entre nós e a família); Wanderlândia Melo, que nos deu uma mãe frágil e poderosa; Ane Oliva, com quem convivo no teatro há tantos anos, e que agora está construindo uma sólida carreira no cinema, com diversos filmes a serem lançados, e que nos deu uma mulher misteriosa e inapreensível como somos nós numa noite escura.
Com a Ane e a Wanderlândia, o trabalho durou em torno de um mês. Elas iam lá pra casa e ensaiávamos. Eu as apresentei, num primeiro encontro, mas decidi que os ensaios seriam isolados. Fomos buscando a presença de cada uma daquelas mulheres em separado. Pensei que cada uma delas tinha sua própria história, suas próprias questões, suas próprias energias. Então, trabalhei em separado com cada uma. Eu intuí que não haveria por que colocá-las em encontro, se antes não existisse alguém a encontrar. Assim, elas só dialogaram mesmo no dia da filmagem. Apenas no ensaio dentro do set houve finalmente o encontro.
Às vezes me pergunto se fiz certo. Mas segui minha intuição. E estou muito feliz com o que vejo na tela, com a entrega, a presença de cada uma delas. Não posso dizer que numa próxima vez farei do mesmo jeito. Acho importante que eu esteja pronto para o novo; acho importante que eu não vá ao encontro de uma atriz ou de um ator já sabendo o que farei com eles, mas que eles/suas presenças me mostrem o que devo fazer, mostrem qual deverá ser minha/nossa nova busca.
Acho que fiz bem em seguir minha intuição, porque foi lindo vê-las naquela barca. Eu amo vê-las naquela barca. Aquela barca, aquele encontro entre amigos, trabalhar com eles, foi um luxo — mas é um luxo o nosso audiovisual, porque é um luxo podermos trabalhar entre amigos, dividindo nossos saberes e sonhos, ajudando-nos a erigir esta bela construção que está se tornando o cinema alagoano.
LL: Como foi ver A Barca selecionado para a 10ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano, a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes e o Eurasia International Monthly Film Festival?
NR: Rapaz, a Sururu foi impressionante. Nós ainda não tínhamos assistido ao filme na telona, então, de certo modo, ali, na noite do dia 11 de dezembro, eu vi o filme pela primeira vez. Foi emocionante. Saímos tão contentes daquela sala de cinema. A recepção do público foi tão calorosa. Ali, naquele instante, o filme tinha se realizado. Não importava mais para nós a premiação: o filme, ali, tinha se justificado.
No dia seguinte à exibição, quando estávamos num barzinho, no “after”, o Rafha abriu seu e-mail e viu que a produção da Mostra de Tiradentes havia escrito para ele. Então, ele me mostrou o e-mail: o Rafha ficou tremendo, emocionado. Eu fiquei sem saber o que sentir, eu não sabia a dimensão daquilo, eu não compreendia o que significava a Mostra de Tiradentes.
Dias depois, a ficha foi caindo. O Rafha encaminhou para mim o e-mail enviado pela mostra, e eu digo aqui, sem medo de parecer ridículo, afinal, sou ridículo, mesmo (as cartas de amor são ridículas, os afetos são ridículos, e temos mesmo é de perder o medo de sermos ridículos), então, sim, eu digo aqui: ao menos umas duas vezes por semana eu abro esse e-mail e o leio de novo, como se fosse a primeira vez, e me encho de alegria e me agradeço por não ter traído meu sonho de um dia realizar esse filme.
Falando em sonho: numa conversa com o João Paulo Procópio, ele me disse como são os debates em Tiradentes. Pra que fui perguntar isso? Tive um pesadelo logo na noite seguinte, o debate acontecendo, eu agoniado no meio dele, uma pessoa metendo a lenha no filme, e eu com cara amarela só dizendo “sim, sim’. Depois, sonhei mais vezes, mas a coisa foi deixando de ser agoniante, porque então o debate deixou de ser o centro, e o que passou a aparecer foi o filme sendo exibido e as pessoas assistindo a ele — isso me alegrou.
Após o resultado de Tiradentes, virei a louca dos festivais: o Paulinho (Silver) me deu as dicas sobre plataformas de inscrição e fiz cadastro em várias delas. Então, em dezembro mesmo, inscrevi o filme em alguns festivais. No dia 10/01, recebi a notícia referente a estarmos na short list mensal de um festival de cinema em Moscou. Uma short list que tem, além do nosso filme, curtas metragens da Itália, Letônia, Índia, Kwait, Cuba, Portugal, Estados Unidos (Dane-se, Trump), Reino Unido, Armênia. O filme vencedor de cada mês será exibido no festival aberto ao público no final do ano.
Seria ótimo sermos vistos pelo público maior. Mas, fomos vistos por um júri, e agora somos finalistas. E fomos vistos na cidade de Moscou. Então, coloco aqui o que coloquei nas redes sociais quando divulguei nossa seleção: nossa barca está agora atracada nas águas do rio que margeia a cidade e que lhe emprestou o nome: Moskva, Moscovo, Moscou. Dizem alguns que essa palavra vem da antiga língua fínica, significando “escuro” e “turvo”, como as águas da lagoa por onde navegam as personagens d’A Barca.
Fico contente em saber que alguém, na longínqua Rússia, viu nosso filme; viu as noturnas águas escuras da nossa lagoa Manguaba; viu as diurnas águas verdes da nossa lagoa Manguaba; viu um passarinho tão nosso piando dentro da barca; viu nossa carranca; viu um homem deitado ao lado de sua flauta, trajado numa camisa comprada numa feira nordestina e igual à camisa que tantos de nossos pais e avós vestiram ou vestem; ouviu a música do Mestre Verdelinho; escutou uma mãe ninando seu filho; viu uma poderosa Caronte alagoana; foi testemunha de duas mulheres conversando numa noite escura, com um sotaque tão nosso, tão quente. Fico contente em saber que alguma pessoa, na longínqua Rússia, por dezenove minutos, foi envolvida por Alagoas.
LL: Como premiação do Pitching Aberto do Sebrae, você receberá uma credencial para a edição 2020 do Rio2C – Rio Criative Conference, o maior evento do mercado audiovisual da América Latina, no Rio de Janeiro. Como está a sua expectativa em participar desse evento?
NR: Ainda não tive pesadelos em relação à Rio2C, mas certamente terei quando o evento estiver mais próximo.
E aproveito para agradecer ao Sebrae pela iniciativa do Pitching Aberto, agradecer a todo seu pessoal, em especial à Débora Lima, interlocutora inteligente, linda, descolada, de sorriso tão solar. Agradeço também ao Victor Lopes, que nos orientou para o pitching (caramba, que cara foda, que generoso); agradeço à Sara Rocha (que veio mais uma vez a Maceió para estar perto de nosso cinema); agradeço aos players que viram nossos projetos e nos arguiram a respeito deles. Mas principalmente agradeço a todos nós que levamos projetos ao pitching, porque foi tão bonito ver cada um de nós apresentando seu sonho, defendendo-o, torcendo pela realização do sonho do outro.
Ainda não estou tendo pesadelos, e até estou calmo — estive mais nervoso logo após ganhar a credencial. Mas agora estou calmo, porque de novo não estou sozinho. O Felipe Guimarães resolveu tudo a respeito do credenciamento, pois a produtora que irá levar o projeto do Edifício Lygia será a La Ursa Cinematográfica, do Lipe e do Rafha (eu ia entrar na sociedade, mas aí tornei-me funcionário público).
Estando com o Lipe como produtor executivo (ele é um produtor executivo incrível, é o homem das planilhas, mas é lindo porque ele faz planilhas e é também muito sensível e também é um apaixonado pelo projeto), estando com ele, teremos várias conversas daqui até o evento.
Muitas vezes fiquei me perguntando se não estaria sendo pernóstico em ficar citando as pessoas aqui. Mas citá-las não foi algo planejado (sou geminiano, e por isso eu faço e tomo consciência disso logo depois; por isso, posso dizer sobre algo que fiz e saber que isso que fiz foi espontâneo). Talvez eu tenha feito isso porque também sou escritor, e escrever literatura é algo muito solitário — não há literatura se não nos isolarmos durante sua feitura. Na literatura, o outro é a personagem e é a leitora ou o leitor. É geralmente algo/alguém intangível.
No cinema, ao contrário, a arte é coletiva, então, não quis falar de cinema sem trazer aqui, para perto de mim, as pessoas com cujas mãos realizamos juntos tantos sonhos. Parafraseando uma personagem do filme Peterloo (2018), de Mike Leigh, digo: “unamo-nos, para que sejamos livres”. Sonhemos juntos os nossos sonhos.
Para finalizar, deixo aqui um poema que a Lygia me apresentou e que eu recitei no dia da estreia de “A Barca” (e aqui falo que morro de vergonha porque naquele dia, com toda a equipe no palco, eu estava tão preocupado em não atrapalhar o cerimonial, estava tão preocupado em não atrapalhar tudo, que não dei a todos da equipe a oportunidade de se apresentar, de dizer seu nome, sua função/presença no filme — eu fico puto comigo sempre que me lembro, que me lembro de não ter dado espaço para a fala do outro por conta da preocupação com as regras. Às vezes eu me desculpo, dizendo-me que foi porque era meu primeiro filme, minha primeira vez ali. Mas ainda assim fico triste, porque queria que toda a plateia ouvisse a voz de cada um deles, que tivesse visto a mãe do Yan apresentar o seu bebê, que a plateia tivesse visto o Yan sorrir, tivesse visto o Alanklevs sorrir também e falar de sua barca), deixo aqui o poema:
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
– Partimos. Vamos. Somos.
(Sebastião da Gama)
Deixa a sua minibio aqui.
Nilton Resende é alagoano de Maceió. É Professor Adjunto de Literatura da Universidade Estadual de Alagoas/Campus Zumbi dos Palmares. É integrante da Cia. Ganymedes de teatro, para a qual adaptou a novela Mário e o Mágico, de Thomas Mann, para o espetáculo O Mágico, que codirigiu e protagonizou. Publicou os livros O Orvalho e os Dias (poesia), Diabolô (contos), A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde. Tem contos e poemas traduzidos e publicados em revistas francesas e inglesas. No cinema, tem trabalhado como ator, roteirista, preparador e diretor de elenco. A Barca (2019), baseado no conto Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles, é seu primeiro filme como roteirista e diretor.
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