A viagem mais para fora é a viagem mais para dentro

Texto: Fabio Rodrigues Filho. Revisão: Larissa Lisboa. Imagens: Frames dos filmes "Um dia com Jerusa" e "O dia de Jerusa".

É curiosa a presença das cenas de aniversário no cinema negro brasileiro contemporâneo. Lembremos do início do Café com Canela (BA, 2017), mergulhamos nas imagens-lembranças de uma mãe a partir de imagens em VHS do aniversário de seu filho. A dor traumática da perda do filho acompanha Margarida, no entanto, a dor é precedida e incidida no projetar da memória de uma cena de aniversário da criança, única imagem dele que vemos e que fica, apesar da morte. Em Chico (Rj, 2017), curta-metragem dos Irmãos Carvalho, adianta-se o aniversário da criança sob pena de faltar o aniversariante a sua festa, e o presente dado pela mãe é o que o liberta da morte. Certamente, para muitas famílias, o aniversário era o momento de se produzir uma imagem, seja pela mesa farta, lembremos do filme de Yasmin Thayná, o Fartura (Rj, 2018), pela alegria dos corpos reunidos que inscrevia na imagem um legado e fazia do rememorar um presentificar. O aniversário parecia ser o momento por excelência em que aquelas vidas importavam. Rito de passagem é o aniversário e, na passagem para as imagens, parece ritual em que prevalece a vida frente os fantasmas reais da morte injusta que rondam os corpos negros cotidianamente; as imagens do aniversário transfiguram-se como documento material que “temos uma vida”.  Ain’t Got No / I Got Life, como canta Nina Simone.

Breve introdução para pensar a fagulha que persiste entre o curta (2014) e o longa (2020), dirigido por Viviane Ferreira: é ainda aniversário da D. Jerusa Anunciação, ela comemora 77 anos ao tempo que rememora eras e mais eras. Menos sozinha do que antes, Jerusa agora está acompanhada de um acervo diverso e enorme de imagens. Mais misteriosa do que nunca, ela reúne em si a sabedoria de uma anciã, a postura de uma yayá e uma voz que aprimora o desmanche. Fora e dentro de casa, Jerusa é a senhora dos lugares e ambientes da memória, pertence e soma-se nos contornos de personagens da rua que são insinuados como Entidades – é o caso da participação de Antônio Pitanga ou do Majó Sesan, que interpreta uma transmutação do Bispo do Rosário capaz de antever o filme ao proclamar seu poema na encruzilhada. Com um rio, Jerusa percorre, banhas as margens, avança, molha e aflui; como uma mãe, ela gesta um futuro.

Se a D. Jerusa é o rio, a jovem Sílvia é o pássaro Saracura: personagem do corre da sobrevivência que quer mudar de vida, sonha voos e encontra em Jerusa um outro corre: o correr dos tempos e o diligente reorientar dos caminhos – sabedoria de quem trança e traça rotas de fuga. 

A proposição da preposição

Quantos anos se passa em um dia? Além de imagens por dentro de imagens, décadas se passam nos minutos do filme: voz que remete em seu diligente contar a tantos tempos, lugares, pessoas… O aconchego da casa permite o alentar na viagem. Conjunção de fatores que potencializa o aconchego: do caloroso preparativos da festa à singeleza da senhora interpretada por Léa Garcia, dos detalhes que impregnam cada canto do cenário a uma interação entre luz quente e fria. Planos próximos da cena concedem o direito à distância a Jerusa para que ela dê suas voltas no narrar das histórias. Tudo que demora no filme é, enfim, parte do acelerar do tempo na vida de Silvia. 

Diferente da questão central do curta, agora importa menos o aniversário e a solidão dessa mulher negra. Arrisco dizer que não importaria tanto mais o encontro – embora este seja decisivo e ponto de partida para a jornada. Poderíamos pensar isso a partir da preposição que muda entre os dois filmes: “de” para “com Jerusa”. Digo, no entanto, que a matéria vertente aqui, no longa, parece ser a iniciação: profícua articulação entre o cinema e o sagrado. Uma iniciação muito singular, deve-se notar, que não reside na representação. Por vezes, o filme parece ele mesmo a personagem-senhora que o protagoniza, confunde-se, abrindo mão da correria que marca o início (ritmo frenético correlato ao modo de vida de Silvia), uma curva se impõe e torna-se necessário velejar pelo rio Saracura, encarnado na voz daquela que de trabalhar nele, fez-se parte e partícipe do curso e memória das águas. “Iremos sem pressa”, diz a legenda de uma das fotos. A curva impõe ao visível o invisível que incide no presente.

O filme instaura mais do que uma disputa narrativa por representação e representatividade, mas por aquilo que é próprio à imagem que é sua vocação de encruzilhada dos caminhos. A imagem aqui, em Um dia com Jerusa, é, pois, força ancestral de movimento. Água mãe é Jerusa e, nós, morrendo de nós, somos convidados a mergulhar: “ir sem pressa”, embora por vezes a vontade seja de acelerar o tempo ou encurtar o caminho; guia-se uma viagem interna nas memórias externalizadas por essa senhora.

Insistindo na desaproximação entre o curta e longa-metragem, o tempo que se expande no segundo é uma temporalidade que se amadurece e uma intimidade que se fortalece entre as personagens, mas também entre nós espectadores e o filme. O encontro não se dá num lugar, embora a casa seja o ponto de partida, mas num outro tempo que desagua, ao final do filme, no agora. Rito de passagem que presentifica a vida, deslocando o presente e o aniversário. Trança-se mulheres de outrora e agora, histórias, o dentro e fora… O ponto de encontro é, no entanto, a própria imagem – imagem que liga os olhares, permite encontros, abre um caminho. Para chegar a casa de Jerusa, Silvia pega a rua Abolição, no cruzamento com a São Domingos. Quando sai da casa, segue contrariamente o mesmo caminho daqueles que vão em direção à nebulosa intensiva que refaz a extensão espacial – via de mão-dupla. Se a preocupação do curta era a vida, agora se investiga o elo com a morte.

Frame de “Um dia com Jerusa”.

O artigo indefinido

Há que se notar que, diferente do curta, o parabéns baiano cantado pela jovem Silvia, desloca-se do momento celebrativo: não se parte o bolo e nem sopra-se as velas; ao contrário, o parabéns é agora uma canção de ninar, onde a memória da mais nova acalenta, enfim, a mais velha. Troca ancestral que não é, em absoluto, linear. Não à toa, trata-se aqui de um filme marcado por retornos; e o que, ao falarmos iniciação, famos re-tornar.

Acompanhando Silvia em sua jornada de trabalho encontramos Jerusa. Acompanhando Jerusa, Silvia é forjada a ferro e fogo. De certo, ferro e fogo diferente daquele que marca o braço da primeira: o filme reelabora a dor traumática para, com o ferreiro Ogum, incidir na epiderme da realidade e na pele da imagem – sarando feridas e curando dores. 

Vemos nitidamente o rosto de Jerusa, seus contornos, as marcas do tempo, seu olhar. Conhecemos os cantos de sua casa, do banheiro ao sótão. Sua história nos é apresentada em cada ponto do enorme bordado que ela costura… Mesmo com tudo isso que nos é dado a conhecer, gotas de mistério habitam ela e o filme; seu olho d’água é semente. Um insuspeitável lugar (aquela casa por acaso) se faz terreiro da memória e do sagrado, como insuspeitável é o filme de Viviane: um rio que passa em nós. 

É quando Silvia se perde de Jerusa que algo se mostra aos seus olhos: um pequeno museu de si cultivado pela senhora. As entrelinhas e subtextos do que é dito por Jerusa, preenche-se e vigora-se pelo mostrado naquele acervo construído pelas mãos das mulheres negras: a preocupação com a imagem mostra-se como um legado ancestral. “Nós não vivíamos da fotografia, é a fotografia que sobrevive de todas nós” diz Jerusa. “Foto-vida” é como chama a improvável venda de esquina na rua: crível banca de imagens porque a rua já é pro filme um lugar de encantados. Estranhamente familiar é a rua, a imagem não é só viva, como guarda vidas.  

A referência e inferência dos atores reside também no seu repertório imagético, como no caso de Leá Garcia que faz um arco entre o filme de 1959, Orfeu Negro (citado no porta-retrato na sala da personagem) ao agora (onde sonhos e desejos da própria atriz se realizam e atualizam neste filme, narrativa e politicamente). Como se não pode deixar de notar, o próprio Alma no Olho é revisto aqui na nítida referência da frontalidade do olhar, mas também no desdobrar daquilo que anima o curta de 1974, a força contra-corrente. Ora, as sucessivas miradas da personagem Sílvia para a câmera e para o espectador, é em resumo uma sucessiva mirada também na imagem. Legado de uma ancestralidade imagética que conecta imagens que nos conformam, mas que aponta no transe para imagens que virão. Nos conecta, mas conecta intimamente as mulheres do filme (em especial, as duas personagens, as mulheres que elas foram, são…). Quando Silvia olha a imagem, ela se junta a uma tradição feminina e negra que o filme instaura. Quando Silvia olha a imagem, a um só tempo ela nos olha também em seu transe, nos carregando em seu lento desmanche e em seu sagrado re-nascer para a vida. De certo, podemos não acompanhá-la, mas o convite está feito a nós. Jerusa não é um acaso.

Luta ancestral é a imagem – olho que segue olhando e nos olhando, troca de olhares ainda possível de ser estabelecida, mesmo com a morte do corpo. Talvez seja por isso que o tempo (do filme) é “nunca se avexar”. “Eis-me aqui”: o presente é estar presente – habitamos enquanto espectadores um lugar entre Jerusa e Silvia e nos é demandando uma presença como presente. “Je sui isi”, como canta Luedji Luna. 

A cidade de São Paulo percute na voz e na memória de Jerusa; cidade recontada por aquela que lavou com fotografias e registrou com suas mãos, com suas digitais, nos tecidos dos poderosos da cidade. Agora, é ela mesma quem tece. Mãos dessa senhora que a um só tempo nos orienta no passado e emite uma força para o futuro. No poço guardado por Jerusa em seu subsolo, onde a água translúcida nos faz ver os peixes que ainda habitam, também a vividez do rio Saracura resiste ao tempo e ao progresso – semente de rio que o filme, ao abrir com essa imagem, insinua como promessa de rio submerso que nos lembra e é lembrado e, por isso, ainda corre e vibra. Semente de rio é o poço, como semente de vida é a imagem; como também são sementes as gotas de mistério do/no filme: gotas que nos olham e nos molham. 

Frame de “O dia de Jerusa”
Frame de “Um dia com Jerusa”
* O título desse texto é uma citação a uma legenda escrita por Paulo Leminski para um desenho de Bashô.

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*