Bastidores do curta “Rua das Árvores”. Foto: Flávia Correia.
Texto: Nilton Resende
Nivaldo Vasconcelos é uma força selvagem e permite-se correr riscos. Esses aspectos estão bastante presentes em sua produção e são possivelmente o que mais me chama atenção no que produz. A cada novo filme, há a busca de não repetir um modo anterior, mas tentar uma trilha que não se tem certeza aonde vai dar. Os passos são precisos, mas o destino deles não o é – ou não me parecem ser.
Criatura, Mwany, Ela, A gente não combina com essa sala, Noturna, Texto ex-machina… Assistir a esses filmes dá-nos a certeza de que Nivaldo arrisca; a certeza de que ele não cede à busca do acerto.
O acerto, para ele, está em fazer. E ele faz.
Por conta disso, de seu destemor, de sua coragem, de estar tão pronto a assumir as paixões, sem que a razão castre os impulsos criativos, mas dancem juntos razão e paixão, é que o entrevisto – porque o admiro e quero aprender com ele.
NILTON RESENDE – Com relação à criação cinematográfica, que medo lhe paralisa e que medo lhe faz criar? E sobre esses mesmos medos, saberia medi-los como algo prejudicial e/ou salutar?
NIVALDO VASCONCELOS – Meu maior terror está ligado à paralisia, não poder fazer, ou pior, não realizar o que penso livremente. Então sinto que cada passo que vou dando é uma resposta para esse medo, uma luta para não deixar morrer a vontade de criar. Passei muito tempo nutrindo o medo, sem saber como começar a me expressar artisticamente. Isso geralmente se fantasiava de uma autocrítica mortal, mas chegou um momento, ao fazer 29 anos, em que encarei este “bicho” e disse para mim mesmo: “Faça! A vida tá correndo, meu amigo”. Desde então venho fazendo, buscando entender a minha forma e cada vez mais me libertando das autossabotagens que nascem desses medos entranhados. Acho também que perder o medo de “Não estar certo” me ajudou muito, não quero estar certo, não preciso estar certo, sigo mais destemido!
Agora ando tendo medo de ficar louco, morrer, essas coisas “modernas”. Vamos ver no que isso me levará.
Não sei dizer a até que ponto esses medos me prejudicam… talvez nos campos mais pessoais da minha vida… mas também sei que se não estivessem ali, mordendo meu calcanhar, eu não estaria equilibrado. Existe uma certa desumanidade na ausência de medo…
“Entendo meus filmes (todos) como fluxos muito simples que eu permito que fluam. Entendo que essa escolha pode deixar que essa experiência não seja de todo apoteótica, afinal, não foi urdida para ser uma ópera, e tocar o atonal pode ferir ouvidos.”
NR – Sinto em seus trabalhos uma tendência à incompletude, ao inacabado, o que me leva, no mais das vezes, a admirá-los por aspectos deles, mais do que por eles em completo. Admiro mais o “você estar fazendo” e “trechos de cada trabalho” do que eles por inteiro. E creio que isso se deva em muito a essa presumida incompletude. Esse aspecto, caso exista para você, deve-se à tal fome de que a criação não pare, de que não se dê cabo do trabalho? Parece-me que Dionísio mantém Apolo sob rédeas fortes no que você cria. Diga-me: você sente essa tendência à incompletude em cada trabalho? E, se sim ou não, por quê?
NV – Não chamo esse aspecto dos meus trabalhos como incompletude de fato, mas trata-se disso também. A cada dia algo se completa quando se trata. Procuro construir paisagens com os corpos que eu mostro, me interesso sobretudo pelos hiatos, calculo com cuidado meus planos, minha montagem, mergulho na ideia de quebrar os gêneros narrativos que permeiam minha educação cinematográfica, chego à exaustão no que diz respeito a uma leitura do meu trabalho e processo, o que, acredito eu, invalida a possibilidade de eles estarem inacabados.
São caminhos encontrados de maneira muito coerente com a minha experiência, intuição e crença no que é fazer cinema para mim. Para alguns pode parecer simples, artesanal, amador. Isso talvez reflita suas próprias expectativas sobre o que é o cinema e como devem ser as sensação após um filme. Me alegra que tem cinema para todos os gostos por aqui.
Tampouco acho que essa “urgência” em produzir me faça cegar para o que eu acredito ser uma maneira muito honesta de contar o que quero contar e, principalmente, contar da forma como eu acredito que deva ser contada. Nessa hora, cada vez mais entendo que não devem haver concessões, tem que ir fundo nas escolhas. Há muitas coisas nos filmes que faço, mas ali não há espaço para desleixo.
Entendo meus filmes (todos) como fluxos muito simples que eu permito que fluam. Entendo que essa escolha pode deixar que essa experiência não seja de todo apoteótica, afinal, não foi urdida para ser uma ópera, e tocar o atonal pode ferir ouvidos. Cada vez mais entendo que não se trata de impor ritmos indutivos, mas respeitar os ritmos que o material acaba te dando, e o filme, depois de pronto, vai tocar alguém. Um dia você vai abrir o e-mail e ler uma mensagem linda de alguém que se emocionou muito ao ter ficado parado por minutos vendo apenas uma foto se mexer com lentidão até revelar uma mulher, uma mãe, ou se emocionar com uns meninos de um terreiro de candomblé contando uma de suas lendas (falo aqui de ELA e a Lenda de Oxum e a seca na terra; os filmes mais “artesanais” que eu tenho, e que inclusive não são considerados como filmes para alguns).
Sobre Apolo e Dionísio, em mim cabem muitos Deuses.
“Nossa produção precisa de olhares mais atentos, e me espanta também a necessidade de enquadrar tudo: ‘Meu cinema parece mais com o cinema americano’, o de fulano ‘é mais nouvelle Vague’ – como se isso fosse verdade. Não sei que cinema americano é esse que estão falando que suas produções se assemelham, muito menos vejo diálogos diretos com a Nouvelle Vague. Nosso cinema é muito mais careta.”
NR – Verdade. Eu parto de minha visão. E escolhi você como meu entrevistado porque sou fascinado pelos seus modos, mesmo que termine havendo essa sensação, em mim, de incompleto. Quis entrevistar você pelo contraste, pela sua coragem, pelo “desmedo”. Mas acho que fui rápido e não pensei direito: sinto a tal incompletude em Noturna e A Gente Não Combina com Essa Sala. Mas não sinto em Ela e em Criatura. “Ela” me emocionou bastante.
Não citei Dionísio como sinônimo de “desleixado”, mas como tendo a paixão como motor. E não julgo como artesanal, no sentido de não ter alguma “teorização” por trás. Mas, o perguntado é você, e não eu, então: para onde você vê fluírem seus filmes? E onde esse fluir toca o restante da produção feita em Alagoas? Essas águas se comunicam? Como?
Complemento: digo Dionísio como Risco, e Apolo como Segurança. Acho você possivelmente o nosso cineasta que mais arrisca. Não foi Razão/Apolo como Cosmo, mas como Segurança.
NV – Esse rio corre para o afetivo. Estes fluxos que eu presencio, capto e organizo precisam ser percebidos pela minha emoção. A partir disso, vou construindo, entendendo a linha narrativa, pesquisando, principalmente questões de linguagem.
Outra coisa que me interessa muito é a etnoficção, o “Hibridismo” e o cinema de fluxo. Noturna talvez seja o filme em que mais me aproximo desta busca de perceber a personagem no seu mais ordinário, mais comum, sem perder características minhas de linguagem. E o filme todo é um fluxo, começa onde termina, termina onde começa, e isso pode ter um fim na cabeça de quem assiste, ou recomeça, como uma metáfora para esse aprisionamento social que uma travesti vive na realidade, mas que não dialoga apenas com o universo LGBT, mas humano. Nossa existência tem um pouco desse marasmo, um pouco dessa sensação do trágico que se esgueira, desses sonhos de pertencer a um lugar. É um filme onde tentei experimentar mais o silêncio, e a narrativa está nos planos, tem um quê de errático na montagem, mas são incompetências que tenho que administrar nos próximos trabalhos!
Já o A Gente Não Combina é um corpo estranho, é o filme mais frio que já fiz, tudo muito calculado, extramarcado. Exigi muita precisão e impassividade dos atores, é um filme com um discurso firme sobre linguagem, sobre o nascimento de um cinema; se falava muito na época sobre a retomada do cinema alagoano. Existe sim uma lacuna naquele filme, as paredes da sala se quebrariam a partir dali, para revelar o mundo, a Maceió da janela, e estamos livres para criar sem a mãe repressora, e também para eu brincar com conceitos que acho detestáveis quando levados ao extremo, verossimilhança e “physique du rôle”. Assim busquei algo mais marginal, com atores inexperientes, sem o tipo físico de alguém que apareceria nu em um filme, uma firme direção que quebrasse qualquer realismo, meio Bressane, e construímos esse filme. Analisando bem friamente, compreendo totalmente a sensação quase anticlimática que aquele controle todo possa causar.
Mas quero experimentar mais, quero fazer filme de gênero, talvez um terror. Tô fazendo um filme sobre uma santa, fotografando, fazendo websérie.
Cada vez mais acho que a diversidade nas produções de Alagoas é uma riqueza. Me incomoda muito quando jogam tudo no mesmo saco e generalizam. Nossa produção precisa de olhares mais atentos, e me espanta também a necessidade de enquadrar tudo: “Meu cinema parece mais com o cinema americano”, o de fulano “é mais nouvelle Vague” – como se isso fosse verdade. Não sei que cinema americano é esse que estão falando que suas produções se assemelham, muito menos vejo diálogos diretos com a Nouvelle Vague. Nosso cinema é muito mais careta – nessas questões meu trabalho não quer tocar, mas na vontade hercúlea, soluções criativas, vontade honesta de contar; nisso estamos todos no mesmo barco. Todos aprendendo, encontrando suas formas, desenvolvendo o que acreditamos, aprendendo o ofício, e acho que é só o começo. Tem muita gente realizando, e que venham mais!
Não sinto que meu trabalho é único, ou que se destaque de qualquer outra produção feita aqui; é apenas uma outra forma, e talvez haja mais semelhanças que diferenças entre nossos trabalhos, além de estarmos absorvendo muitos temas em comum, além de basicamente trabalharmos com os mesmos impedimentos, principalmente os políticos e econômicos.
NR – Ah, A Gente Não Combina Com Essa Sala… na verdade, acho muito bonito. E meu incômodo, eu já comentei com você, é em relação à escolha do tipo de interpretação. No entanto, cabe. Tá justificado. É questão mesmo de empatia. Os quadros são lindos, a cena da janela é foda, e ver a Ismélia naquele silêncio poderoso foi muito bom. Me deu vontade de vê-la como atriz em outros filmes. Por falar em “me deu vontade”, pergunto: poderia me dizer uma lista de 05 filmes que lhe dão a imensa vontade de tê-los feito? Tô curioso.
NV – Também adoro a presença da Ismélia! Doido para colocar ela para atuar novamente.
Adoro uma lista, e essa foi massa!
Com certeza, gostaria de ter feito Narciso Negro, do Michael Powell e Emeric Pressburger; O Pagador de Promessas, do Anselmo Duarte; No Quarto de Vanda, de Pedro Costa; Madre Joana dos Anjos, do Jerzy Kawalerowicz; A Última Tentação de Cristo, do Scorsese, A Marca da Pantera, do Schrader, que eu assistia no Supercine; Indiana Jones (qualquer um da trilogia original); A Princesa Mononoke, do Hayao Miyazaki; e por aí vai.
“Verdade, o sagrado, ou a ideia do sagrado, me fascina. Até agora não trabalhei a questão da espiritualidade de maneira aprofundada nos meus trabalhos. Mas todos eles fazem menção a algo espiritual, seja uma imagem, um lampejo, uma referência ou mesmo uma atmosfera. Algumas vezes não havia a intenção clara de inserir essa camada. Isso só prova o quanto meu inconsciente está ligado às questões do espírito. Sempre fui um estudioso do tarô, mitologia.”
NR – Que massa! Narciso Negro me lembrou O Estranho que Nós Amamos, com Clint Eastwood – tensão sexual e tanto!!! Confissão: nunca tive coragem de ver Teorema, por puro medo da presença do Terence Stamp jovem.
Madre Joana dos Anjos você me apresentou, e eu amo. E A Última Tentação de Cristo é pra mim, também, o melhor filme sobre Jesus. Belo, belo. A referência a aspectos religiosos ou divinos apareceu bastante na sua lista. De que modo isso está presente ou ausente no que você produz? Por que seu fascínio por isso?
NV – E eu pensei em Teorema, sério, fiquei pensando um tempão se colocaria ele na lista. Tem uma coisa sagrada e profana lá, assista. E sim, é de ter medo o Terence Stamp jovem, seduzindo todo mundo. Clint Eastwood é sempre lindo, e acho o filme muito bom, aquelas mulheres siderando ao redor dele.
Verdade, o sagrado, ou a ideia do sagrado, me fascina. Até agora não trabalhei a questão da espiritualidade de maneira aprofundada nos meus trabalhos. Mas todos eles fazem menção a algo espiritual, seja uma imagem, um lampejo, uma referência ou mesmo uma atmosfera. Algumas vezes não havia a intenção clara de inserir essa camada. Isso só prova o quanto meu inconsciente está ligado às questões do espírito. Sempre fui um estudioso do tarô, mitologia. Venho de família de religiões diversas. Fui batizado na igreja católica. Quando criança, queria ser padre, achava bonito, adorava as histórias dos Santos, os martírios, ficava intrigado com a face de calma dos Santos enquanto sofriam as mais cruéis imolações; isso me parecia ser de uma força de caráter invejável. Depois fui batizado Mórmon. Já frequentei a Igreja Batista, Testemunha de Jeová; estudei um pouco de Budismo, espiritismo Kardecista; e hoje faço um trabalho junto ao Candomblé, uma religião que cada vez mais ganha meu respeito e fascínio.
Mas ao contrário deste magnetismo todo para assuntos religiosos, não tenho vocação para seguir qualquer dogma. Não entendo minha ligação com a transcendência vindo através de um método apenas, ou de uma só linha de pensamento. Quando falei que em mim cabiam vários deuses não estava brincando, não completamente. Acho que minha religiosidade é uma colagem muito particular de experiências.
Ultimamente venho mais conscientemente trabalhando esses temas, e investigando mais como posso utilizar esses questionamentos cinematograficamente. Estou trabalhando junto com Pam Guimarães numa biografia experimental sobre Teresa de Ávila, inspirada em sua vida e obra. Obra por sinal sublime e extremamente poética ao falar sobre a experiência mística. Tenho vontade de fazer uma versão de Joana D’Arc; já ensaiei alguns esboços, até. E em Março deste ano [2015], acompanhei uma feitura de Santo (um ritual de iniciação do Candomblé) que gerou uma série; na verdade, é um fotodocumentário que intitulei de Aledá (que de maneira simplificada significa cabeça em yorubá). Pretendo fazer uma publicação e exposição com o material.
Toda experiência mística me interessa, e acho que o cinema tem muito disso. Algumas experiências podem ser até sagradas. Alguns escritores até fazem uma analogia da sala do cinema com uma igreja ou templo. Por vezes, é tão alienante quanto.
“É engraçado como ainda é polêmico quanto foi em 1930, e a galera ainda vem falar de caretice. Muito cômodo alegar caretice para justificar uma recepção negativa ao próprio filme e dizer que premiar alguém que ‘se interpreta’ não contribui para o cenário local. Mas será que não contribui com a linguagem? Ou devemos agora distribuir prêmios para acalentar egos e fortificar classes artísticas? Não acredito que precisemos disso. Isso se faz com trabalho e resistência.”
AUDIOVISUAL ALAGOAS – A gente Não Combina com Essa Sala tem um discurso político forte. O filme é uma espécie de manifesto. A escolha da linguagem é uma escolha política, traz um debate interessante para a produção local. É uma provocação pertinente num cena que, apesar de tantas limitações, muitas vezes ainda insiste em perseguir padrões de produção quase hollywoodianos. A linguagem do filme faz uma operação que quebra paradigmas. “Desobriga” os realizadores a perseguirem tais padrões. Apesar da força desse discurso, a provocação acabou sendo pouco debatida, na verdade.
NV – A gente não combina nasceu como um manifesto cinematográfico, queria falar sobre um cinema alagoano que nascia e, ao invés de se inventar, experimentar, parecia cristalizado no que “parecia ser cinema”. Tudo muito preocupado em agradar, fazer bonito. E ainda me incomodava a questão da falta de políticas públicas e a ineficiência nas poucas que “funcionavam”.
“Não temos nada!”, era essa minha sensação no momento; não temos dinheiro, não temos uma linguagem ou característica formadas, estávamos tateando um início no escuro, ou melhor, numa sala em branco.
E assim surgiu o filme, cheio de restrições; não poderia haver cenário e tudo deveria ser feito com o menor gasto possível. Queria provocar não só o que era “fazer cinema” naqueles dias, mas também provocar o público e os realizadores. O que nos prende? O que nos faz temer? Por que achamos que nada funciona? Por que se culpar tanto em relação ao que se cria? Vamos sacudir e abrir os olhos? São muitas perguntas.
O filme foi todo feito de forma colaborativa, todos ajudaram com sangue, suor e trabalho; sou grato a essa experiência, tive o prazer de trabalhar com pessoas muito incríveis e que tiveram muita fé no processo, Albert, Nuno, Marianna, os corajosos atores, Lis, que montou lindamente o filme, e todos que ajudaram.
Pouco se falou dos aspectos políticos do filme. Na verdade, pouco se falou do filme, ele foi meio que ignorado, talvez por ter sido pouco visto, talvez por não ter agradado. Para alguns, soa pretensioso e cheio de referências; para mim, ele é o meu verdadeiro início, é onde eu deixei para trás um monte de bobagens e receios e resolvi fazer do meu jeito, junto e para quem quiser ver.
NR – Em que parte do “idioma cinema” você ainda sente tropeçar? Há algum ponto específico dessa linguagem que atrapalhe sua fluência?
NV – Todo esse idioma é ardiloso, tem muito de furta-cor, mesmerismo. Constantemente me vejo caindo em armadilhas, principalmente no que diz respeito à ação. A gente está acostumado a narrativas onde a ação impulsiona o próximo passo; há muito disso em todo o cinema, literatura, teatro, e tento constantemente encontrar outras percepções para essas ações. Nem tudo está no movimento ou na reação após o deflagrar da ação. Conjugar esses verbos é intrincado. Tropeço sempre no exagero. Como é um idioma de sutilezas, eu sempre tenho que cuidar do peso que imponho. Outra coisa que não domino bem é a camada sonora do filme, tão importante para a construção da obra. Falo de desenho de som mesmo, a criação atmosférica da cena, do filme. Os formatos e gêneros também massacram; você ter que se enquadrar em algo preestabelecido agonia bastante, e isso é uma discussão velha que renasce constantemente como o fundamental “ovo e galinha”, ou pior: a questão da “realidade” no cinema.
O gênero como forma, gabarito, me incomoda muito. Desde o nascimento do cinema essas questões se desgastam, os paradigmas parecem apenas se emaranharem mais e vejo sempre os mesmos filmes, as mesmas formas, e isso é muito sintomático. O cinema parece viver de sua morte, e quando falo do cinema falo dos realizadores, porque filmes não se fazem sozinhos. É claro que reproduções irão ocorrer, mas é fundamental discutir essa linguagem. Incorporar subversões aqui e ali nunca fizeram mal. Sou adepto desta forma, de transitar entre gêneros e experimentar trocá-los no decorrer do próprio filme. Gosto dessas possibilidades. Quero fazer isso com mais fluidez. Mwany tem muito disso, foi minha primeira investida nesse “hibridismo” que não é nada novo, já está lá no nascimento do cinema, principalmente no nascimento do documentário, mas que, me parece, encontrou uma possibilidade hoje de se experimentar mais em cima deste conceito.
É engraçado como ainda é polêmico quanto foi em 1930, e a galera ainda vem falar de caretice. Muito cômodo alegar caretice para justificar uma recepção negativa ao próprio filme e dizer que premiar alguém que “se interpreta” não contribui para o cenário local. Mas será que não contribui com a linguagem? Ou devemos agora distribuir prêmios para acalentar egos e fortificar classes artísticas? Não acredito que precisemos disso.
Isso se faz com trabalho e resistência.
NR – Ao dirigir um ator ou uma atriz, o que você espera dele/dela? Como você escolhe seus atores, suas atrizes?
NV – Amo atuadores, atores, gente! Trabalhar com eles é a alma do negócio para mim, é encantador demais ver o seu desenho se formando no corpo do outro. Permitir ser essa tela é o que mais procuro. Gosto dos atores que se deixam dirigir, que ousam experimentar. Gosto de “estranhezas”, sejam físicas ou psicológicas, e muito bom humor. Gosto dos dispostos e dos que não estão tão certos sobre o que é ou como deve ser a atuação, mas ser um veículo intuitivo e talentoso para o que se quer comunicar. É muito necessário que o ator queira o mesmo filme que você. Difícil trabalhar com alguém que se projeta de tal forma ou quer se ver de maneira xis; mas isso é remediável, só é mais difícil. Escolho com a intuição, cisma, curiosidade; não há um perfil ou método. Tem gente que tenho uma vontade imensa de trabalhar junto, e outras que surgem e se tornam grandes parceiros. E tenho uma predileção pelos “não atores” que são atores! Sabe? Aquela pessoa que exala significado, expressiva, firme, amo esses atores involuntários. Mas adoro os atores mais técnicos também, muito interessante trabalhar com alguém que tem um repertório, que acessa a emoção de uma maneira mais “organizada”. Tenho dificuldade de trabalhar com gente desatenta, ou muito frágil.
NR – Qual a sua grande fragilidade e qual a sua grande força? Consegue localizá-las e dizê-las?
NV – Sou criativo, dinâmico; acho que essas são forças minhas. Minhas fragilidades são muitas, mas geralmente não me impedem de viver; mas diria que impaciência e ansiedade.
N.R. Pra finalizar, deixe duas frases (conselhos, advertências, sei lá o quê), uma para os que já fazem cinema em Alagoas e outra para os que pretendem fazer.
NV –Deixo uma provocação do Joaquim Pedro de Andrade:
“Por que você faz cinema?
Para chatear os imbecis / Para não ser aplaudido depois de sequências dó-de-peito / Para viver à beira do abismo / Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público / Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / Para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / Porque, de outro jeito, a vida não vale a pena / Para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito / Porque vi Simão no Deserto / Para insultar os arrogantes e poderosos, quando ficam como cachorros dentro d’água no escuro do cinema / Para ser lesado em meus direitos autorais”.
(Publicado em Pourquoi filmez-vous? / Libération / Paris / maio de 1987).
E a aula do Jodorowsky (clique aqui para acessar).
FILMOGRAFIA (DIREÇÃO) – NIVALDO VASCONCELOS
“Criatura” (2013) | “Zoé” (2013) | “Mwany” (2013) | “Ela” (2014) | “A gente não combina com essa sala” (2014) | “Noturna” (2014) | “Texto Ex Machina” (2015) | “A lenda de Oxum e a seca na terra” (2015) | “Teresa” (sem data de lançamento).
Editor da série Cine Ping Pong: Rafhael Barbosa.
Leave a Reply