Cine Fialho: Ainda Estou Aqui (dir. Walter Salles)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.

Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como algo simbólico e mais do que falar de uma época, talvez sua força advenha de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva.

Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um voo rasante e ameaçador pela praia. Essa é uma imagem síntese que em um primeiro momento pode parecer tola, mas que vai ser reafirmada durante toda a projeção de Ainda Estou Aqui. É nesse instante que somos informados que estamos no Rio de Janeiro no ano de 1970. Algumas cenas depois, a filha de Eunice é parada numa blitz em um túnel da Zona Sul e a revista dos policiais não é nada amistosa. Assim, aos poucos, o terror vai adentrando nessa família, até atingir um nível ameaçador. A direção de Walter Salles arquiteta habilmente todos esses elementos que aos poucos vão abalando a vida da família Paiva.

O que mais me encantou, do ponto de vista cinematográfico, foi constatar que Walter Salles construiu Ainda Estou Aqui como um thriller de suspense, um filme de terror político cujo teor psicológico atinge um grau insuportável. Se pensarmos estruturalmente, a abordagem da direção almeja ir do paraíso ao inferno em pouquíssimo tempo. A opção de iniciar a narrativa em um Leblon resplandecente, solar, é fundamental para o que veremos depois. Essa atmosfera lúdica, onde a praia era praticamente o quintal dos Paiva, que possuíam uma casa aberta, onde a luz e a felicidade de uma família beirava a perfeição e que representava o sonho de um país recém-saído do sucesso da Bossa Nova, mas que estava sob o domínio de um governo tomado pelos militares.

O mais incrível é que Walter Salles faz da casa dos Paiva um microcosmo da política brasileira do período e isso vai se evidenciando cena a cena de maneira perturbadora. A experiência dos Paiva com a política autoritária do país torna-se a única referência e ela é o bastante para descortinar os absurdos que serão praticados em nome de um combate hipócrita a uma tal entidade fantasmagórica que os conservadores costumam chamar de comunismo.

No decorrer da minha fruição, fiquei a lembrar dos filmes de terror, onde jovens vão para um acampamento maravilhoso, cercados pela natureza e de repente mortes começam a acontecer e instalar o clima de terror. Walter Salles, se guardando as devidas proporções, realiza exatamente o mesmo, quando homens a paisano chegam na casa dos Paiva para levar Rubens, o ex-deputado do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), para lhe tomar um depoimento. O sinistro se instala de imediato, com homens que passam a habitar a casa dos Paiva.

A fotografia de Adrian Teijido se torna um elemento crucial para que Walter Salles edifique suas pretensões narrativas e de mise-en-scène. Se antes a luz do sol era o que vigorava, agora as janelas se fecham e a escuridão toma conta de tudo. Essa parte do filme pode ser vista como uma metáfora do obscurantismo do Brasil sob a égide da ditadura, pois imageticamente o que temos é a ausência da luz e o predomínio da escuridão.

No terreno ainda da fotografia temos as texturas deliciosas do super-8 e aqueles enquadramentos livres tão comuns a esse registro imagético, que também simbolizam a mobilidade e o espírito de liberdade artística de um tipo de filme que precedeu o celular em seu uso caseiro. E como é apaixonante as cenas em que a família lê as cartas da filha mais velha, que residia com os amigos exilados em Londres, mas que mandava junto um filme de super-8 que ela fazia. Cartas essas, todas bem escritas e envolventes. Essas são as cenas mais incríveis e banhadas na mais pura poesia de todo o filme. A sensibilidade de Walter Salles ao incluir essas imagens na narrativa foi genial e tocante, impossível não encher os olhos d’água no transcurso dessas cenas.

Contudo, Ainda Estou Aqui não pode ser compreendido sem outras texturas que incorpora, como as músicas do início dos anos 1970, e posteriormente nos anos 1990, que expressivamente dialogam com o desenvolvimento da trama. Erasmo Carlos (É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo), Roberto Carlos (Como Dois e Dois), Tom Zé (Jimmy, Renda-se), Gilberto Gil (Pipoca Moderna), um surpreendente Juca Chaves (Take Me Back To Piauí), Os Mutantes (Baby), a música sensual de Serge Gainsbourg e Jane Birkin (Je T’Aime Moi Non Plus), Caetano Veloso (Fora da Ordem e Um Índio) funcionam como uma maneira do público adentrar à época e às diversas situações vividas pelos personagens.

Estou aqui a dissertar sobre Ainda Estou Aqui e ainda não mencionei nada sobre o seu elenco portentoso e perfeito. O que dizer sobre o trabalho de Fernanda Torres como Eunice, uma protagonista que vai conquistando o público a cada aparição, com seu zelo com os filhos, com sua maneira de resistir ao absurdo que lhe é imposto por um violento e assassino regime de exceção. E Walter Salles, junto com Fernanda Torres realizam uma aula de beleza ao alicerçar essa mulher como não só uma lutadora, mas também uma criadora de um método de resistência pelo sorriso. Quanto mais o sistema lhe impôs a tristeza e a violência, mais ela retribuía com sorrisos, outra metáfora da família possível que teve o seu membro mais importante arrancado e assassinado por algozes covardes e canalhas. Fernanda Torres abraça essa mulher com uma graça e com uma coragem compatíveis com a personagem. Ela traz nos olhos a ambiguidade da fratura e da determinação de continuar sempre. É inacreditável o equilíbrio entre humanidade e heroísmo que Fernanda Torres traça na sua construção de Eunice. Esse é um ponto decisivo para o sucesso de Ainda Estou Aqui, pois qualquer desequilíbrio nessa sustentação da personagem todo o resto poderia desandar e desmoronar.

Cabe a Selton Mello o lado solar de todo o processo, pois o seu personagem é retirado de cena e vira apenas um símbolo da luz que foi retirada daquela família. Não vemos a sua luz se apagar e esse fato é político por parte de Walter Salles. Mais do que uma luz, Rubens Paiva foi sempre o farol, até depois que desapareceu. 

Selton o representa como o retrato daquela família no seu momento mais sublime e ele sempre está flutuando, inclusive no dia que o levam de casa. E Selton brilha com uma leveza fantástica, saindo de cena sem deixar rastro de escuridão, apenas a luz de seu tranquilo ser. Ele é o ausente mais presente na história, ele sempre está ali, como uma presença simbólica de um país possível e de bem com a vida.

O filme Ainda Estou Aqui abraça o livro e faz de Eunice uma heroína de seu tempo, uma mulher que lutou contra os militares, estudou direito para defender o direito dos indígenas às suas terras, contra os grileiros que ambicionam roubar as madeiras e implantar garimpos para retirar as riquezas minerais do solo amazônico. Eunice se torna uma ativista legal pela preservação do meio ambiente e consegue do Estado brasileiro o atestado de óbito de Rubens Paiva. Walter Salles sabe assentar sua narrativa se baseando nela como fio condutor ao sublinhar cada momento de sua vida com uma positividade possível, sem desestruturar a educação dos 5 filhos que teve com Rubens Paiva. Salles insiste sempre nas fotos e vídeos, como fundamento da memória, como evocação de algo são que merece sobreviver.

Walter Salles guarda para o fim a presença de Fernanda Montenegro representando o final da vida de Eunice, agora numa cadeira de rodas, em um silêncio imposto pelo Mal de Alzheimer. Sim, logo ela, uma fomentadora da memória, que brigou tanto pela preservação da família, tem o silêncio como último ato, embora Eunice em sua trajetória de vida tenha construído tanto a memória da família quanto da própria sociedade com sua luta. Mas voltemos à Fernandona. É de abismar o quanto é fantástico ver que Fernandona não precisa de muito para mostrar o seu talento, pois cada expressão mínima dela fala mais do que mil palavras. E quando ela assiste na televisão uma reportagem sobre a ditadura e seus crimes, ela vê a imagem do marido e somente essa cena já valeria por todo o resto, em um cruzamento inapelável entre individualidade e história.

Por isso, não podemos deixar morrer os crimes desse período, não só por Rubens Paiva, mas por todos os desaparecidos que sofreram torturas cruéis e ainda tiveram seus corpos sumidos pelos seus algozes. Não é revanchismo, mas sim uma questão de justiça. 

Ainda Estou Aqui é um grito contra esses atos autoritários e genocidas que imperaram especialmente no Brasil no final dos anos 1960 e em toda a década de 1970. Quando hoje pedimos para não se dar anistia aos golpistas do 08/01/2022, pensamos no regime que essas pessoas queriam implantar novamente no país, o de um governo acima das instituições e dos três poderes. Ainda Estou Aqui é sobre um país que não pode mais conviver com o regime de exceção, que em nome de falsos inimigos persegue e mata opositores.

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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