Cine Fialho: Grande Sertão (dir. Guel Arraes)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.

Eu sempre defendo que a primeira regra de qualquer transposição de um texto literário para o universo cinematográfico precisa ser a da coragem à infidelidade. Grande Sertão, novo filme de Guel Arraes abusa nesse sentido ao conferir ao texto original de Guimarães Rosa uma atualização que de tão extremada chega a ser questionável. O que resta saber é para onde este ato desafiador de Guel Arraes encaminhou uma das obras máximas da literatura brasileira, quais veredas cinematográficas Guel escolheu trilhar e onde derrapou feio.

Por mais que Grande Sertão subverta e muito Guimarães, em especial a sua poética, Guel mantém Riobaldo (Caio Blat) como um narrador onipresente da obra. Mas a maior surpresa que o filme me causou foi a introdução do viés catártico na esfera da representação da história, uma leitura ousada do livro, que não se caracteriza por uma diegese em que os conflitos estejam explícitos a todo instante, há uma predominância do sussurro e da fala mansa. Há, no filme, uma atmosfera que prima pela distopia, já que Guel transpõe a obra do ambiente rural para uma favela urbana, onde o cinza predomina no aspecto geral.

O que mais chama a atenção em Grande Sertão é como a obra de Guimarães Rosa encontra-se por demais diluída ali, tanto pela paisagem em si quanto pelo aspecto linguístico. Em verdade, a transposição linguística é substituída por uma teatralização dos corpos e do texto. Durante quase todo o tempo, o texto é dito em ênfase pelos intérpretes, inclusive a narração central de Riobaldo é realizada numa quebra da quarta parede, sendo direcionada diretamente ao público, em mais uma estratégia teatral de Guel para criar uma relação com quem assiste ao filme. Nesse aspecto, a dramaturgia está sempre over, assim como a câmera, as atuações, a cenografia e a direção de arte.

Pode-se dizer que o excesso dá o tom em Grande Sertão. O próprio local, o tal Sertão, se transforma no nome da favela. Há um explícito expressionismo performático nessa adaptação e a intensidade de tudo chega a agredir o espectador, já que praticamente todas as cenas são gritadas. Normalmente, o que funciona no teatro tende a não funcionar no cinema. Se o teatro aceita o exagero narrativo, no cinema menos é mais e essa regra básica raramente falha. A proeminência do texto também torna-se outro elemento que cansa durante as quase duas horas de filme e ele não vem com alternâncias de tons ou com milagrosos silêncios. Não, aqui tudo é muito mesmo e essa monotonia rítmica do excesso exaure até o mais paciente dos espectadores.

Se a obra de Guimarães Rosa possui uma poética em cada palavra escrita, por mais desconcertante que ela seja em vários níveis de leitura, em Grande Sertão o quesito espetáculo fala mais alto, se impõe e de certa maneira massacra a escrita rítmica e sonora de Guimarães. Algo que me incomodou profundamente foi o excesso de ação acelerada do filme, e o que deriva desse fato são personagens ocos, em que os aspectos exteriorizados sufocam as suas subjetividades, o que dificulta uma relação produtiva nossa com o filme. O que me parece é que Grande Sertão toma emprestado apenas um esqueleto básico da história para fazer um filme de ação, que embora seja bem acabado, se revela sem substância. É como uma fruta que não gera suco, em que vemos a fruta em seu aspecto exterior e dela não se extrai suco.

O que quero deixar claro nessa minha análise é que a minha crítica a Grande Sertão não se configura pelo fato do filme trair por completo a obra de Guimarães Rosa. A minha relutância em apreciá-lo se resume pelo total esvaziamento da obra original, sem propor nenhum diálogo qualitativo com a mesma e por aproveitar apenas o casco de uma obra que é uma das mais inventivas e atemporais já realizadas no país. Vale salientar, que Grande Sertão Veredas quando lida, ainda hoje, guarda frescor, originalidade e beleza. Reconheço o esforço de Guel em realizar uma obra visualmente impactante, embora esse impacto nem seja tanto assim, em especial se observarmos que ele está embasado em reconstruções imagéticas e cinematográficas bastante identificáveis, já filmadas, sem esquecer ainda do artificialismo no qual o filme se edifica. O resultado é simples: não há em Grande Sertão nenhuma grande surpresa artística, nenhum indício que seja uma obra-prima, como podemos identificar claramente no genial romance de Guimarães Rosa.

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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