Cine Fialho: Motel Destino (dir. Karim Aïnouz)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.
Motel Destino pode ser lido como um estudo de caso sobre as relações abusivas que ocorrem cotidianamente no Brasil. Heraldo (Iago Xavier), é o personagem que permitirá ao público mergulhar em um universo de um brasileiro talhado ao esquecimento. Ele é um jovem simples da periferia do Ceará, órfão de pai e mãe, destinado a ser um joguete na mão tanto de bandidos quanto de um empresário medíocre, tal como é Elias (Fábio Assunção), dono de um pequeno motel numa zona litorânea cearense.
Para fugir de uma vingança, Heraldo se refugia justamente no Motel Destino onde ele estabelece uma relação de trabalho ditada pela pessoalidade. O motel é, por natureza, um lugar do fugidio, onde se buscam prazeres imediatos e irrefreáveis. O artificialismo do sexo invade Motel Destino como um pano de fundo permanente, os sons das tevês com os filmes pornográficos e clientes ávidos por prazer. Aqui, o sexo emoldura uma narrativa de personagens conflituados, densos, vivendo a vida que o destino lhes reservou. Elias, um dono de motel; Dayana (Nataly Rocha), sua jovem e ambiciosa esposa; e Heraldo, um bandidinho qualquer, em fuga, que sonha emigrar do Ceará. Cada um vive com contradições e precisa lidar com as suas inseguranças.
Karim Aïnouz apresenta sem pressa cada personagem em sua trip alucinada, mas não esquece de mostrar o motel tal como ele é, com a devida artificialidade feérica de suas luzes neon e sua afrodisíaca barra de pole dance. Esse é o território preciso de Motel Destino, um tipo de espaço-prisão onde cada personagem tateia a vida como pode. Heraldo, é o famoso “faz-tudo”, com toda a permissividade que essa alcunha lhe permite, desde dar conta do ar-condicionado parado há anos até manter em dia o prazer de Dayana e quem sabe o de Elias. A maleabilidade é própria desse ambiente fluido e Karim retira muito caldo desse contexto. O mundo acontece no Motel Destino, praticamente não há outras paisagens (apenas cenas pontuais dos horizontes infinitos da estrada e do mar, que deixa mais aguda ainda a sensação de aprisionamento dos personagens), o motel é onde tudo acontece, o microcosmo capaz de transbordar as contradições do mundo.
Visualmente, Motel Destino carrega as cores vívidas do vermelho, do azul, do laranja, do verde, mérito da fotografia inebriante e fantástica de Hélène Louvart. Pela fotografia, também somos informados sobre a artificialidade das relações e do mundo, sendo que ali, o mundo natural para os homens não existe mais e o motel é a própria evidência disso, por ser um lugar que as pessoas pagam para exercitar anonimamente a parte mais selvagem de sua natureza. A sensação que temos é que as cores neon do motel veem de um outro mundo, desse onde tudo pode acontecer, onde as misérias são vividas ao seu máximo. Quando Dayana e Heraldo transam na rede da varanda do casebre em que ele mora improvisadamente no fundo do terreno, o vermelho torna a cena acentuadamente algo de outro mundo, como se o universo fantástico pudesse conferir uma nova vida aos personagens. A vertigem das imagens é complementada por flashes de sonhos e de visões acometidas por Heraldo. O motel para ele é um misto de prisão e vertigem, um local do onírico onde cabe os prazeres mais inusitados e urgentes. Urgência é uma das palavras que ajuda a definir os personagens, todos extremamente carentes emocionalmente, vivendo o hoje como se não houvesse amanhã. Talvez seja pelo som, desenhado habilmente por Xavier Waldir, que essa sensação da prisão mais ecoe. São momentos sonoros de um terror calculado, pensados para ampliar as sensações de aprisionamento das almas.
É interessante como Karim Aïnouz trabalha a ideia de animalidade a todo instante em Motel Destino, afinal, o sexo é esse elemento em comum entre a espécie humana e os outros animais. O lado instintivo é inerente a todos os indivíduos, e não casualmente, os bichos surgem constantemente na narrativa, tanto no motel quanto no inconsciente de Heraldo. Cavalo, cobra, burro, galinhas e bode estão entre os bichos que aparecem no filme. Os personagens agem como bichos encurralados, tensos e com histórias muitas vezes animalescas, como a que Heraldo conta sobre a violência doméstica que a mãe, ele e o irmão sofreram de um namorado dela no passado. É deste modo, que o Brasil e suas estruturas patriarcais carcomidas irrompem pelos poros do filme. Cada personagem traz de alguma forma, um pouco desse arcaísmo senhorial, da violência advinda dessa história brasileira acachapante de famílias desestruturadas e desassistidas socialmente.
A mise-en-scène proposta por Karim Aïnouz delineia uma fluidez da câmera que passeia por entre personagens e cenários flagrando os olhares e corpos carentes, desejosos por serem vistos e observados. A câmera de Karim estabelece um jogo voyeurístico, pois assim como os personagens, ela também busca o seu prazer ao passear pelos corpos desejosos. Enquanto o sistema vê esses corpos como desimportantes, desviantes e desprovidos de valor, a câmera de Karim se coloca na antítese do que se instaura tradicionalmente a visão sobre um corpo, já que para a polícia, esses são corpos destinados à morte ou à prisão. O passado os assombra, o futuro aponta à incerteza, enquanto o presente os condena à luta inglória pela sobrevivência não só financeira como de seus corpos. Karim indaga os corpos para além das suas funcionalidades sociais e sexuais. Pensar sobre eles é pô-los em uma nova perspectiva, em uma nova régua valorativa. Os oprimidos desejam alguma forma de emancipação e aí está a potência ontológica de Motel Destino.
De certo, essa é uma opção não só cinematográfica como política de Karim Aïnouz, de narrar a partir dos corpos. Há um visível contraste entre a objetificação do sexo pelas imagens dos filmes pornográficos e das performances inspiradas neles nos motéis e dos corpos que anseiam apressadamente por uma expressão do desejo. Aqui, desejo e liberdade estão postos no mesmo patamar, ambos são necessidade que colocam os corpos em movimento, em especial os de Heraldo e Dayana.
Ao meu ver, não pensar Motel Destino a partir da política dos corpos faz qualquer análise não caminhar para muito longe. O sexo como expressão legítima dos corpos é prisioneiro do mundo do trabalho e da necessidade. Heraldo é um prisioneiro em busca de libertação. Primeiro, ele é escravo de uma quadrilha de bandidos, depois prisioneiro pelo trabalho de “faz tudo” (e todas as suas implicações) no motel comandado por Elias. Dayana é prisioneira na relação pretensamente afetiva com Elias e como trabalhadora a limpar os quartos sujos pelo prazer alheio do Motel Destino, uma falsa dona que acaba sendo mais empregada do que efetivamente uma coproprietária do motel. Elias é escravo de seu dinheiro e do círculo frágil de relações que construiu em torno de sua sobrevivência, mas ao mesmo tempo incorpora a alma predatória do empresário brasileiro. As relações que estabelece são, por isso, selvagens. Tudo com ele é com sangue nos olhos, conquistado com as unhas empreendedoras de quem comanda com as mãos de ferro marcadas pelo autoritarismo. Elias é carnal ao extremo, mesmo que seu personagem não faça sexo com ninguém. Ele é um animal em fúria. E Fábio Assunção sabe inserir essas camadas no corpo de Elias, seu corpo fala, ou melhor, grita. Motel Destino é sobre um Brasil vivo, subterrâneo e fadado socialmente à violência, um paiol de pólvora prestes a explodir, ou de sangue ou desejo.
Motel Destino consegue amarrar uma concepção narrativa fluida com uma marca autoral que já soa em Karim como espontânea. Karim possui uma assinatura hoje incontestável, com personagens à deriva e no limite em busca de uma saída em túneis onde não se vê a luz em seu fim. Essa é a magia de seus filmes como o brilhante O Céu de Suely (2006), um dos maiores filmes brasileiros do século 21. A ambiguidade brasileira, com sua fluidez mundana, de personagens abandonados à própria sorte são marcas indeléveis desse diretor que vem construindo uma carreira ímpar no nosso cinema. No universo cinematográfico brasileiro, Karim é luz, é raio, estrela e luar por abraçar, ao invés da tola esperança, a vida com todos os seus contratempos. Poucos por aqui alcançaram isso. Karim é um deles.
Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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