“Essa história de filmes polêmicos tem a ver com a grande caretice que é Alagoas e consequentemente com a grande caretice que é o cinema alagoano”

Foto: Renata Baracho.

Texto: Emmanuel Miranda

Conhecido pelo detalhismo “doentio” que lhe rendeu até o carinhoso apelido de “dodói”, o jovem cineasta Henrique Oliveira vem atuando com bastante força no mercado do audiovisual alagoano. Apesar de já ter desempenhado diversas funções, como tem acontecido com quase todos na nossa cena audiovisual, ele procura assinar seus trabalhos como diretor de fotografia. A produtora criada por ele, Panan Filmes, já tem em seu “reel” um número considerável de filmes, videoclipes e trabalhos publicitários, sempre seguindo o padrão de qualidade.

Mesmo com apenas 25 anos, o realizador pode ser considerado um dos mais experientes na atual fase do cinema alagoano. Isso pela entrada precoce no ramo. “Comecei a me interessar pelo audiovisual desde muito pequeno, cresci em meio a ilhas, sets, equipamentos e correrias, meu pai era dono de uma produtora, o que não significa que obtive facilidades ou ‘empurrõezinhos’ com isso, muito pelo contrário. Apesar de ser do ramo, não me recordo em nenhum momento do meu pai ter parado para me ensinar nada, mas lembro claramente da proibição de tocar nos equipamentos, à época caríssimos, e da disciplina ferrenha do silêncio, eu não poderia falar em nenhum momento”, recorda ele, que começou a produzir aos 13 anos de idade e desde então não parou.

A iniciação no cinema veio com o documentário Cenas de uma Tragédia Anunciada (2007). O trabalho seguinte foi a ficção 19:45h – Horário de Brasília (2009). Porém, o primeiro lançamento de destaque do diretor foi o filme Farpa (2012), curta-metragem inspirado na obra da escritora alagoana Arriete Vilela. Contemplado no Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas, edital do governo do estado, o projeto, que narra “a história de uma geração de mulheres que geram filhas mortas, seja por castração sexual, psicológica ou econômica”, apresenta algumas das características mais fortes de Henrique: temas contundentes, produção em grande escala (mais de 50 pessoas, no caso de Farpa) e uma atenção especial para a fotografia e o aparato técnico.

Com duas cenas de estupro, o curta causou certo desconforto ao ser exibido na Mostra Sururu daquele ano. Venceu nas categorias ator (Julien Costa) e direção de arte (Gabriela Miranda).

Ontem à Noite (2013), contemplado no primeiro Prêmio Guilherme Rogato, da prefeitura de Maceió, é um argumento original desenvolvido em parceria com o ator Sílvio Leal Sarmento sobre uma secreta e trágica relação entre um homem casado e um travesti (interpretado pelo próprio Silvio). Demarcando um estilo, Henrique volta a explorar sequências fortes, mostrando sexo oral e uma cena de masturbação explítica. Entre outros festivais, o filme concorreu na Mostra do Filme Livre ((RJ/SP/DF), Curta Brasília, Mix Brasil (SP) e Curta o Gênero (CE). Recebeu menção honrosa na IV Mostra Sururu.

Além dos trabalhos como diretor, o realizador assinou a direção de fotografia de diversas outras produções alagoanas (veja sua filmografia no final da entrevista), e, entre um e outro trabalho de cinema, também se dedicadou à direção de videoclipes de artistas alagoanos, como Felipe De Vas e Fernanda Guimarães. Seu último lançamento foi o clipe Raízes do Axé, do Afoxé Povo De Exu. Neste terceiro episódio da série Cine Ping Pong, eu, Emmanuel Miranda, entrevisto Henrique Oliveira. O editor do Cine, Rafhael Barbosa, colaborou com algumas perguntas da entrevista. Leia a seguir.

EMMANUEL MIRANDA – Por que dodói?
HENRIQUE OLIVEIRA – Meio escroto explicar isso, mas vamos lá. Quem colocou esse apelido e fez questão de o propagar foi uma espécie animal rara chamada Sapulha (Emmanuel Miranda), um dos meus grandes parceiros nesse “estranho mundo dos seres audiovisuais” e o responsável pelo som direto e pós-produção de som de 80% de todos os trabalhos que a Panan realizou até hoje. Esse apelido acho que surgiu por ele acreditar que sou um pouco obsessivo, chato e até meio cavalo batizado, mas obviamente não sou obrigado a depor contra mim e declaro publicamente que isso tudo é lenda (risos).

“Esse lance de ter que compreender de tudo um pouco vem muito dessa concepção do diretor como um maestro, que não necessariamente precisa saber tocar todos os instrumentos da orquestra mas tem que compreender a sonoridade e a particularidade de cada um deles para tirar o melhor resultado possível da soma de todas as partes”.

EM – Diretor, diretor de fotografia, câmera… Afinal, qual sua principal função no audiovisual?
HO – Apesar de toda minha base de estudos formais vir do curso de Licenciatura em Teatro pela UFAL, o que me ajudou muito, por exemplo, no compreender o trato com o ator e com os processos de preparação de elenco, prefiro parafrasear meu grande mestre e Deus do panteão cinematográfico, Walter Carvalho, e me definir como “um fotógrafo que dirige”. Acho que sou bem isso; antes de tudo me considero um criador de imagens através da luz e só lá em segundo plano, em um nível bem mais abaixo, vem minha capacidade de criar universos, ações e reações, dramaturgias e etc… Mas esse lance de ter que compreender de tudo um pouco vem muito dessa concepção do diretor como um maestro, que não necessariamente precisa saber tocar todos os instrumentos da orquestra mas tem que compreender a sonoridade e a particularidade de cada um deles para tirar o melhor resultado possível da soma de todas as partes.

Henrique Oliveira _ Farpa _ Por Renata Baracho (2)
Bastidores do filme “Farpa”. Foto: Renata Baracho.

EM – Alguns de seus filmes geraram um pouco de polêmica. Você acha que foi realmente polêmico? Como você lida com isso?
HO – Na verdade toda essa coisa de “filmes polêmicos” tem tudo a ver com a grande caretice que é Alagoas e consequentemente com a grande caretice que é o “cinema alagoano”. Pra mim é algo muito simples, direto e de verdade, não tem nada a ver com polêmica ou choque: todo mundo já transou, quer ou vai transar e todo mundo também já se masturbou, quer ou vai se masturbar. Além disso, há um enorme número de pessoas que compartilham conteúdo sexual por Whatsapp, Facebook, Snapchat e que acessam sites com conteúdo pornográfico, e que fora isso ainda são induzidas pelo forte apelo sexual atrelado à publicidade e aos meios de comunicação. Então por que todo esse alarde? Por que não posso colocar nada de cunho sexual nos meus filmes? Por que essas mesmas pessoas que fazem diariamente tudo isso que apontei anteriormente são as primeiras a me criticarem? Os outros realizadores podem colocar um número infinito de assassinatos e/ou cenas de violência física, e a fórmula pra plateia rir está posta. Por que todo esse moralismo e pudor em relação ao conteúdo sexual, se hoje, mais do que nunca, o sexo está presente na vida das mais diversas faixas etárias através dos mais diversos meios? E o pior, por que realizadores como Cláudio Assis e Hilton Lacerda, que têm um conteúdo sexual muito mais explícito, são geniais para os que me criticam e me censuram tanto pelo conteúdo dos meus filmes? Tenho algumas respostas: 1) mesmo no meio cultural, Alagoas ainda permanece com a síndrome do colonizado, onde tudo que vem de fora será sempre melhor do que o que produzimos; 2) nos meus filmes, o conteúdo sexual presente é completamente adverso às convenções associadas aos prazeres machistas estabelecidos. As cenas de masturbação e sexo oral presentes no Ontem à Noite, por exemplo, são realizadas por homens, não vemos seios, bundas, vaginas ou prazer feminino. O problema então reside no curta, por incluir essas cenas, ou nas pessoas que se incomodam e se aterrorizam tanto ao ver um homem se masturbar ou ter relações homoafetivas e ser feliz com isso? No Farpa, as cenas de sexo ou são estupros ou sexo pago. Lembro que só na pré-produção do filme soubemos através dos jornais de pelo menos 5 casos extremamente semelhantes ao de Eudócia. Então o que deveria incomodar mais as pessoas, as cenas estarem no filme ou as situações ainda permanecerem tão vivas na realidade? O meu cinema sempre procurou ser um reflexo das contradições presentes na realidade, mas a cegueira e a caretice das pessoas só permitiu que elas enxergassem as cenas pelo véu do moralismo, dotando-as com um bom grau de astigmatismo perante a realidade dos fatos que se debatem bem a sua frente. Eu nunca objetivei dar um final feliz ao espectador para que ele saia da projeção se sentindo bem, eu quero sufocá-lo, quero incomodá-lo até o limite para que ele se sinta como o oprimido e perceba que a única saída possível é a conscientização e a mudança. Não estou aqui para vender pipoca e refrigerante ou para medir o “sucesso” do meu filme com um “risômetro”. Isso 80% dos filmes produzidos hoje em dia já fazem.

EM – Você é uma das pessoas que, em seus trabalhos, paga os valores mais justos. Por que você acha que isso não acontece com todos os produtores? Você acredita que as produtoras podem falir se pagarem o justo? De quem você acha que é a culpa, do profissional que não se valoriza ou das produtoras que não valorizam os profissionais?
HO – Cara, nem acho que eu pago os valores justos aos profissionais, pois muitas vezes não fechamos trabalhos com orçamentos satisfatórios. A grande diferença da Panan até hoje reside no fato de ao sermos selecionados em um edital ou fecharmos um contrato de um clipe, por exemplo, sempre priorizarmos o resultado final da obra, pois internamente estabelecemos um padrão mínimo de qualidade. A partir daí tentamos então pagar um valor mínimo que consideramos justo dentro das condições financeiras vigentes no trabalho, o que deixa, principalmente nos editais, a palavra lucro de fora. Eu, por exemplo, dos dois filmes que produzi via edital, nunca me paguei; pelo contrário, herdo muito mais dívidas para a produtora (risos). Agora a grande questão é que em boa parte dos casos essa lógica é invertida, e o lucro do proponente é priorizado em detrimento das condições de trabalho da equipe e das próprias condições de realização do filme. Infelizmente, a lógica do improviso eterno do cinema alagoano é o que não nos permitirá nunca chegarmos à profissionalização de fato. Agora quando falamos de projetos privados entra um outro fator aí, que é o cliente; esse, na grande maioria das vezes, é o fator complicador das situações, porém não podemos esquecer nunca que ele é apenas um dos três lados e que sozinho ele não determina nada.

EM Como você vê o audiovisual hoje em Alagoas? Os nossos ‘profissionais’ são realmente profissionais? E em relação aos nossos editais está bom ou está bom de melhorar?
HO – Alagoas hoje vive um ciclo vicioso que se resume mais ou menos assim: hoje ao comprar uma câmera e assistir a alguns tutoriais no youtube ou fazer algum curso, o boyzinho acha que já deve abrir uma produtora, afinal pra que trabalhar para os outros se ele pode ganhar dinheiro por ele mesmo sem depender de ninguém?! Então ele dá um nome aleatório para sua “produtora”, geralmente em inglês por que eles são “filmmakers” e não diretores, fotógrafos, realizadores audiovisuais ou qualquer coisa que o valha. Daí aberta a “produtora” ele precisa entrar no mercado e começa a cobrar preços baixíssimos ou fazer trabalhos gratuitos. O cliente, que de besta não tem nada, saca esse movimento e começa a jogar essa situação para as “produtoras profissionais”, argumentando que um primo, um “brother”, um conhecido ou um irmão faz aquele mesmo trabalho por um valor 10 vezes abaixo do que a produtora está cobrando dele e que esse “conhecido” possuí os mesmo equipamentos que esta “produtora profissional”, e que portanto ele apresentaria o mesmo resultado final, entregando na metade do tempo. Doce ilusão; mal sabe o cliente, ou sabe e finge que não sabe, para tirar vantagem disso, que o que determina o resultado final de um trabalho é o olhar, a linguagem, o conceito, o planejamento, as ideias, a capacidade criativa e a experiência de uma equipe, e que os equipamentos estão lá em quinto plano. Aí começa a doideira: as “produtoras profissionais”, para não perderem dinheiro começam a reduzir os seus valores para não deixar de pegar os trabalhos; os profissionais, por consequência, são obrigados a baixar o seu preço, senão, não conseguiriam mais pegar trabalho. Passado o tempo, as “produtoras dos filmmakers” decidem se “profissionalizar” e começam a querer subir seus valores, aí o que acontece? Agora outras novas produtoras continuam a surgir e os “filmmakers” que agora são “profissionais” são as vítimas do próprio esquema que eles criaram. Alguns até conseguem subir seus valores, é verdade, mas daqui que consigamos chegar aos valores justos da tabela de hoje, 20 anos se passaram e o valor da tabela dobrou. Para concluir a epopéia-trágica, muitos dos “filmmakers” percebem que não vão conseguir sobreviver de audiovisual e decidem mudar de profissão, ou simplesmente descobrem que tudo isso era um hobbie e que chegou a hora dele procurar um “emprego de verdade”. Mas e aí? como ficam os profissionais que querem permanecer no “mercado” e viver de audiovisual? Simplesmente tendem a cada vez mais desaparecerem, pois as contas no fim do mês não deixam de vir e os filhos não deixam de nascer ou crescer. Enquanto isso, os “ex-filmmarkers” acham outro modo de azarar as menininhas no paulista com o portifólio que eles montaram e a nova profissão que agora permite que eles comprem um carro.

EM – Algumas pessoas comentam muito da sua excentricidade ao preparar uma cena, levando horas para afinar uma luz. É doença?
HO – Velho, é foda isso e muito tem a ver com o contexto desta entrevista e com a resposta da pergunta passada. Hoje cada vez menos se olha para o resultado final e cada vez mais se olha para o processo de realização, pois essa síndrome do “pra ontem”, que afeta todas as profissões, transformou especialmente a publicidade e o audiovisual, pois praticamente tudo é pensado sob essas duas vias. Acho engraçado isso, pois soube que Antonio Luiz Mendes, por exemplo, leva uma diária inteira para iluminar um quarto. Alziro Barbosa então são dias montando um pré-light. Mas e o resultado final do trabalho desses artistas? É gritante a diferença entre o resultado final da fotografia dos filmes de fora do estado para os filmes alagoanos. Aí vem o velho argumento: “Ah, mas as produções que eles fotografam são filmes com grandes orçamentos”. Se tem uma coisa que aprendi durante estes 12 anos de produção foi que nem sempre o fator decisivo para o melhor resultado de um produto será o orçamento; lógico que muitas coisas dependem dele, mas na maioria dos casos o tempo é um fator muito mais decisivo.
Aqui os produtores não nos dão nem tempo nem dinheiro pra executarmos o que pensamos, e exigem um resultado fotográfico idêntico às referências apresentadas. Peraí, amigo, se eu não precisasse de nenhum desses dois fatores pra fotografar eu estaria ou no circo como mágico ou estaria ganhando a Palma de Ouro em Cannes no lugar desses grandes fotógrafos. Mais uma vez volto à lógica da prioridade da produção e/ou da direção, que na grande maioria dos casos não privilegia o resultado final do filme. Pra mim, técnica e estética não estão e nunca estarão dissociadas da dramaturgia, afinal, mais uma vez parafraseando Walter Carvalho: “O cinema é uma arte técnica”.

“Não desisti e não desistirei nunca de sair daqui, ainda estou me programando para sair ainda esse ano. Tenho meio que essa obsessão de ir pra Pernambuco, porque lá de fato existe um mercado audiovisual.”

EM – Voce já se programou varias vezes para deixar o estado. Por que ainda está aqui? Quais as novas metas?
HO – Cara, não desisti e não desistirei nunca de sair daqui, ainda estou me programando para sair ainda esse ano. Tenho meio que essa obsessão de ir pra Pernambuco, porque lá de fato existe um mercado audiovisual, hoje o edital do RJ e de SP juntos não chegam aos recursos do edital de PE, por exemplo. E não é mesmo só pelo fator da grana, pois creio que a profissionalização vai muito além disso, dinheiro é uma consequência da profissionalização e não o que a determina. A profissionalização pra mim passa por postura de set, por planejamento, por aprimoramento de técnica e olhar, por ter experiência com equipes, equipamentos e diretores diversos nos mais variados formatos de produção audiovisual e etc… E de fato tenho certeza que ficar em Alagoas não me dará essa maturidade nunca. Mas até lá a Panan estará indo para sua primeira sede física formal. Além disso, continuaremos a desenvolver projetos para o edital das artes e do audiovisual, continuaremos a realizar videoclipes e etc, pois a ideia fundamental é não fecharmos nunca essa ponte entre AL e PE, apenas ampliá-la e não pararmos nunca de produzir, porém tudo passará por uma transformação, a começar pelo replanejamento de toda nossa estrutura administrativa. Nos posicionaremos no mercado de uma outra forma, sem, obviamente, esquecer nunca que somos uma produtora de conteúdo artístico, voltada sobretudo para o audiovisual independente.

“Uma coisa que me incomodava muito, assim como também senti que incomoda a maioria dos adeptos das religiões de matriz africana, é que os conteúdos produzidos sobre esse universo que ganhavam o maior destaque de púbico nunca eram produzidos por filhos da religião”.

RAFHAEL BARBOSA – Recentemente você se iniciou no Candomblé e tem vivido a religião de modo bastante intenso. Inclusive acaba de lançar o clipe Afoxé Povo de Exu – Raízes do Axé. Como é filmar algo que tem valor espiritual para você? Pensa em desenvolver projetos narrativos com a temática?
HO – Uma das grandes transformações pelas quais a minha vida passou nos últimos anos foi minha feitura de santo no Candomblé, e realmente falo isso com muito orgulho e de peito aberto, pois minha religião me deu outros olhos sobre a realidade, apesar do tom “hater” e irônico desta entrevista não deporem a favor disso (risos). Brincadeiras à parte, o Candomblé surge com uma força em minha vida que achava que não iria encontrar em mais nenhum outro lugar além do cinema. Hoje ambos dividem o topo, numa disputa de iguais, do meu amor, do meu tempo e da minha dedicação, e obviamente isso teria que resultar em algo. Uma coisa que me incomodava muito, assim como também senti que incomoda a maioria dos adeptos das religiões de matriz africana, é que os conteúdos produzidos sobre esse universo que ganhavam o maior destaque de púbico nunca eram produzidos por filhos da religião, à exceção de Verger e de alguns outros poucos. O clipe Raízes do Axé, do Afoxé Povo de Exu, surge então desse incômodo, objetivando ser, antes de tudo, uma documentação/visão/representação da nossa religião feita por dentro, pela visão de quem pertence à religião e entende e sente na prática a força dos seus preceitos, fundamentos e simbologias, além de obviamente pretender ser um registro dinâmico da performance do próprio grupo. Acho que no fim das contas terminamos cumprindo muito mais o segundo objetivo do que o primeiro, mas o Raízes do Axé é só a introdução de um projeto muito mais amplo. Outro clipe também foi rodado em um período anterior e que cumpre muito mais o objetivo que destacamos primeiro. É um projeto mais documental e ao mesmo tempo ficcional onde realmente destacaremos os elementos ritualísticos e simbólicos da nossa religião e seu cotidiano, evidenciando a figura e as práticas ligadas a Exu, patrono da nosso Ilê e do nosso afoxé. Além dos clipes estamos também organizando vários outros projetos audiovisuais que estão ligados ao terreiro e tenho planos para produzir um novo documentário sobre o “Quebra”, com uma outra perspectiva, abordagem e olhar sobre o fato.

Henrique Oliveira _ Menina _ Por Itawi Albuquerque
Bastidores do curta “Menina“. Foto: Itawi Albuquerque.

RB – O antropólogo Edson Berreza acredita que a produção artística alagoana deve retratar mais a cultura negra, por ser a base de sua identidade. O que você acha desse pensamento?
HO – Não só a herança africana, como a herança caeté, deixaram profundas contribuições a Alagoas, porém a tendência a negarmos ou não valorizarmos os traços fundadores da nossa cultura é o que está levando as manifestações populares à morte e ao esquecimento. Por ser uma sociedade pautada por valores oligárquicos, que pressupõe a exclusão e negação de toda e qualquer cultura de raíz que não tenha origem branca e/ou europeia, os alagoanos pautaram sua cultura sob o valor parnasiano do “Belo”, onde todo massacre a seu povo e a sua cultura justifica-se como um ato de preservação desse ideal de beleza, que esconde por debaixo dos panos toda violência, crueldade e cultura de posse tão pulsantes no nosso estado. Guiado por esse princípio motor, Alagoas passa então a ser um estado sem memória, onde não apenas os dados e fatos históricos não são preservados e repensados, mas, sem sentir ou ligar para as consequências, fomos aos poucos “perdendo” nossa patente do coco, do maracatu, do frevo, do boi e de tantas outras manifestações populares para estados vizinhos; e tudo que é associado à cultura do mangue, de onde realmente viemos, do negro e do índio, é considerado selvagem e por isso deve ser descartado e ou reprimido. É por isso que creio que realmente o nosso audiovisual deve surgir como uma resposta a tudo isso, deve servir como um instrumento de exposição, análise e crítica da nossa sociedade. Nada contra o cinema experimental ou as ditas temáticas universais, pois acredito que a pluralidade temática e estética é uma das grandes marcas que caracterizam e fortalecem o cinema alagoano. Porém, mesmo correndo o risco de ser redundante e cairmos na mesmice, acho que, antes de nos preocuparmos em propormos ou não uma “nova linguagem”, devemos nos debruçar sobre a nossa história e sobre a nossa sociedade.

“Acho realmente maluca e discordo plenamente da ideia de que devemos premiar como melhor ator/atriz alguém que se auto-interpreta em um filme; isso de fato não contribui em nada para nenhuma cena audiovisual em nenhum âmbito. Creio de verdade que ao premiarmos alguém que se auto-interpreta na categoria de melhor ator/atriz estamos desprestigiando o trabalho de uma classe, o seu processo criativo e desestimulando a busca pelo estudo e pela profissionalização”.

RB – Nas três últimas edições da Sururu o júri escolheu atrizes ou atores não
profissionais para receber o prêmio da categoria. Você já se manifestou contra a prática. Fale sobre isso.
HO – Precisamos deixar antes de tudo algumas coisas claras aqui. Trabalho muito com não-atores ou com atores não-profissionais e gosto muito dos desafios e dos resultados que eles me apresentam; o meu problema jamais será com eles e muito menos com os prêmios que eles recebem ou não. Agora, o que realmente discordo é de premiarmos atores, não-atores ou atores não-profissionais em uma situação fílmica onde eles realmente não estejam criando ou dando vida a um personagem. Acho realmente maluca e discordo plenamente da ideia de que devemos premiar como melhor ator/atriz alguém que se auto-interpreta em um filme; isso de fato não contribui em nada para nenhuma cena audiovisual em nenhum âmbito. Primeiro que ao estarmos realizando um documentário sobre a vida de alguém que contenha inserts ou situações ficcionais, por mais estranhos que esses inserts sejam ao cotidiano dessa pessoa, ela nunca estará criando algo do nada; no máximo, ela estará improvisando com base no que ela já sente, pensa ou faz na vida, ou seja, com base no que ela é. Algo completamente diferente ocorre, por exemplo, quando uma atriz, não-atriz ou atriz não-profissional que não é uma faxineira com obsessões sexuais por bilhetinhos está interpretando uma faxineira com obsessões sexuais por bilhetinhos. Para essa mulher dar vida a essa personagem e torná-la crível ela terá que partir do zero quase absoluto e se dedicar a pesquisar e passar por um longo processo de criação onde ela terá que viver situações e sentir emoções completamente adversas a sua vida cotidiana e fazer tudo isso perante a câmera com uma naturalidade tal que convença ao espectador que ali não é alguém interpretando uma personagem e sim a própria personagem que está tendo seu cotidiano documentado. Creio de verdade que ao premiarmos alguém que se auto-interpreta na categoria de melhor ator/atriz estamos desprestigiando o trabalho de uma classe, o seu processo criativo e desestimulando a busca pelo estudo e pela profissionalização. Mas isso na verdade é um ponto em comum em grande parte das premiações da sururu. Com os argumentos mais aleatórios possíveis premiam-se filmes que os críticos creem ser o modelo ideal de cinema que deve ser realizado em nosso estado. E que fique claro, minha crítica não é ao que os realizadores, técnicos e os atores, não-atores ou atores não-profissionais fazem ou não, pois acho que quanto mais se buscar a pluralidade e a diferença, melhor, mas sim à postura do júri.

 Henrique Oliveira _ Filmografia Diretor _ Ping Pong

Henrique Oliveira _ Filmografia Fotógrafo _ Ping Pong

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