Texto: Leonardo A. Amorim. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.
No início de Kevin, a protagonista Joana corta um cacto, e planta os pedaços partidos. Busca uma nova vida a partir do que tinha. Mas logo a vemos desanimada, deitada em seu sofá, aparentemente adoecida. O filme nos apresenta essa personagem enclausurada em um apartamento, em sua dor, vendo o mundo pela janela, até que recebe um áudio de Kevin, uma antiga amiga estrangeira. Esse áudio é feito de voiceover enquanto são exibidas imagens da rua, imagens do movimento das pessoas na cidade. Isso se atrita com a vida do apartamento, e cria uma percepção de que ainda que Joana busque formas de encontrar raízes, o mundo não para, nem ela deveria.
O filme de Joana Oliveira apresenta o reencontro dessas antigas amigas na Uganda, país de origem de Kevin, captando os momentos de afeto e conexão entre elas. Utiliza da relação antiga para garantir uma intimidade que qualquer documentarista estaria interessado em ter com seus personagens, e assim demonstra como o tempo as alterou depois de tantos anos. Para capturar essa conexão, a câmera fica parada, adota uma abordagem observadora, planos longos que permitem a fruição do tempo de convívio. A investigação que surge a partir do interesse de Joana sobre Kevin, na busca de entender as escolhas da sua vida e onde está agora, é também um interesse pela própria vida. É uma forma de se encontrar não em um outro imaginado, mas no atrito com o outro em sua complexidade, sua diferença.
A última década trouxe questionamentos diretos a filmes que apresentam esse tipo de narrativa de viagem para outra cultura, especialmente em países colonizados. Um dos casos nacionais mais famosos e recentes foi Gabriel e a Montanha. É comum haver nessas histórias uma exotização da realidade, uma pureza exacerbada advinda da romantização desse contato. Entretanto, no filme de Joana Oliveira, o foco está na relação das duas personagens, ao invés de ser em um protagonista se descobrindo através das “qualidades exóticas” dessa terra estrangeira.
A maneira com que Joana administra essas questões de poder é se colocando diretamente na narrativa, sendo diretora-atriz, e nos fazendo perceber as duas personagens. Balanceia as partes da relação apresentada para assegurar um contato genuíno, passível de uma vulnerabilidade que se mostra mútua. Não é uma branca interagindo com uma negra, uma brasileira com uma ugandense, são Joana e Kevin, cada uma com sua subjetividade. “É tão mais estável quando fazemos juntas.” E por isso pode surgir o questionamento, se o foco são as duas, por que só uma delas tem o nome no título? Ao fazer isso não é que o filme se torne sobre ela, mas porque se nomeia aquilo que não se é. Ao intitular o filme com Kevin, a diretora assume a perspectiva dessa brasileira branca e se retira de uma posição isenta, apolítica.
O que pôde ser visto na narrativa de Joana é como a culpa individual a paralisou, porém o contato com o mundo pôde gerar algo. E a culpa também é usada em uma das cenas finais, em que a questão racial é abordada diretamente. Em um momento que Joana iria realizar uma atividade turística, descer o “Rio Branco” de caiaque com outros turistas brancos, ela desiste. Fica desconfortável ao ver os negros trabalhando e os brancos de férias. Logo conta isso para Kevin, como se esperasse uma aprovação, a confirmação de que fez algo certo, mas recebe uma longa resposta, e a frase que acho mais interessante é: “Se você focar nisso o tempo todo, você perde a aventura.” Quase como se seguissem os preceitos de uma tradição cristã, é possível ver muitos brancos fazendo de sua “ação política” o martírio. Como se fossem expurgar o racismo do mundo através da admissão dos seus privilégios, mas a culpa não é mobilizadora, ela estagna, ela adoece.
“Eu me escondo dos meus pais e me escondi dos meus filhos, em algum lugar aí no meio, eu consigo ser eu.” A frase de Kevin tem potência porque destaca também como somos mais do que o contato com o outro, que cada indivíduo é mais do que as expectativas que apresentam sobre eles e elas. O momento mais emotivo da obra se dá quando conversam sobre a maneira que a gravidez afetou seus corpos, quando Joana fala do aborto espontâneo nos três meses de sua gravidez. É uma questão traumática que gerou mágoa, culpa, que precisou se atritar com outra percepção de mundo para ressurgir e ser elaborada. “Do que adianta a gente planejar tanto, se no fundo a gente não tem poder de nada?”, questiona Joana, antes de perceber que a vida nos coloca em outros caminhos, que adotamos outras maneiras de lidar com o mundo. Percebe que entre ser mãe e não ser mãe não há um ultimato, uma prisão, mas há em cada situação um ritmo diferente, ainda capaz de se fazer o que deseja, mesmo que não imediatamente.
Acompanhe a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes on-line pelo site.
Leave a Reply