Crítica: A Barca (dir. Nilton Resende)

Texto: Luiz Henrique de Carvalho. Revisão: Tatiana Magalhães

O Caronte da Manguaba

Caronte, na mitologia grega, era o barqueiro responsável por carregar as almas dos recém-mortos no rio localizado entre as fronteiras com o mundo dos vivos. É esse mito que inspira o conto Natal na Barca, de Lygia Fagundes Telles, brilhantemente traduzido com toda a devida alagoanidade para o curta-metragem de Nilton Resende, A Barca.

Assim como no conto, uma moça embarca para uma viagem cujo destino é desconhecido, acompanhada de uma mãe com um bebê nos braços e um bêbado adormecido. No curta de Nilton, as personagens têm um gostoso sotaque alagoano e a barca navega sobre as águas da lagoa Manguaba, numa Massagueira entregue às sombras da noite.

No andar das cenas, a barca destaca-se na fotografia escura e fria como uma figura dicotômica, pois impõe tanto terror, como aconchego. É tão macabra quanto acolhedora. Talvez também seja assim a morte, personagem que assombra o enredo. Vagando moribunda nas águas, a barca tem uma iluminação quente, completada com luzes coloridas, além de ser protegida por uma carranca imponente na proa. A lua cheia, presente nos planos mais abertos, agrega mais misticismo para essa composição. Diante da escuridão da noite, o espectador é sugado para dentro dessa barca e, assim como no conto, constrói diversos questionamentos sobre aquelas personagens. Para onde estariam indo? Estariam vivas, mortas, ou em algum lugar entre esses dois extremos? Estariam no inferno? Seguimos navegando.

O ritmo do filme é lento, tal qual a deriva das almas na barca dos mortos, mas em nada isso prejudica a experiência do espectador. Pelo contrário, transforma-se em agente potencializador, na medida em que, por exemplo, o silêncio é usado como um recurso dramático para aprofundar as subjetividades das personagens. As pausas nos diálogos entre a protagonista e a mãe sugerem diversos aspectos psicológicos das duas,e contribuem para acentuar o tom melancólico da narrativa.

O curta dá cor e tom ao brilhante conto de Lygia Fagundes Telles, através do qual o espectador é provocado a refletir: quem seria eu na barca? O bêbado, desfalecido, alheio à realidade ao seu redor? A mãe, resiliente apesar de todas as decepções que havia vivido? Ou a protagonista, indiferente e desgostosa a qualquer tipo de contato e afeto? Ou traria algo de novo para a barca? Onde a barca me deixaria?

As respostas para essas perguntas são ambíguas, assim como no original de Lygia. Isso demonstra a competência do trabalho da adaptação feita por Nilton Resende, que é admirador declarado da autora e já teve a oportunidade de conhecê-la pessoalmente. Enquanto alagoano, Nilton não se ausentou de fazer intervenções para trazer traços de alagoanidade para a obra. A Barca é uma bela produção audiovisual que respeita a importância da literatura brasileira contemporânea e contribui para a consolidação do cinema alagoano enquanto expressão legítima de arte.

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*