Crítica: A gente acaba aqui (dir. Everlane Moraes)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

A captura do rosto e do olhar, bem como a presença da morte — seja como representação, um acontecimento inserido no cotidiano, uma temática, ou um mero relato do discurso e da memória — são elementos predominantes no cinema de Everlane Moraes. Já testemunhamos, em Caixa d´água: qui-lombo é esse? (Documentário, Brasil, 2013), os olhos, como bolas de vidro, ao rosto de “cicatrizes” ancestrais, de gente afrodescendente. Olhos circunscritos, numa decupagem dinâmica, para projeções de imagens e histórias. Narrativamente, compõe-se depois em animação 2D um cemitério de recém-nascidos. 

Em Conflitos e abismos: a expressão da condição humana (Animação/doc, Brasil, 2014), o olhar do artista Yuri Alves Éverton (em confronto com sua pintura) mira de frente o “olho” da câmera. Captura-se, em contexto, a imagem de um coração de boi, e o pintor diz que os animais matam para sobreviver, enquanto o homem por prazer. Noutro plano, em pintura animada, homens carregam um caixão, representando o “enterro da discriminação racial”, segundo o narrador. Afirma-se, ainda, a morte como uma passagem para outra dimensão, enquanto figuras humanas coloridas rodopiando no ar, em plano contra-zenital. 

Em La Santa Cena (Documentary, Cuba, 2015), fotografa-se a desconfiança no olhar de alerta de um galo (com sua pupila dilatada). Em seguida, um homem faz cafuné às costas penudas do animal, em atmosfera ritualística; segura-o com uma mão, e realiza o abate (cortando o pescoço do galo com uma faca) para ofertá-lo aos orixás. Enquanto isso, em Monga, retrato e café (Doc, EICTV, Cuba, 2017), enquadram-se os olhos de reminiscência de uma mulher, que nos fala de memórias remotas, enquanto revê retratos antigos, velhas fotografias de família. Ao final, relata, com olhos de lamento, a lembrança do assassinato de seu pai (ocorrido antes da revolução cubana), quando ela ainda era criança.

Em Aurora (Documentary, Cuba, 2018), somos suspensos, diante do olhar penetrante e intimista de três mulheres, de idades distintas (que mais parecem mirar um espelho). A decupagem busca o minimalismo, a austeridade e a proximidade — o estar entre a objetiva e o objeto, entre a câmera e o corpo. Enquanto isso, em Pattaki (Documentary, Cuba, 2018), contemplamos os olhos místicos de uma idosa. Olhos arregalados na escuridão cinematográfica, espelhando o luar. Além dos olhos vermelhos de um idoso (que recebe gotas de água na testa, águas de Iemanjá), com seus glóbulos expressivos, embebidos pela noite hipnótica. Não há diálogo; só podemos inferir o que sentem através dos rostos e olhares.

Finalmente, em A gente acaba aqui (Dir. Everlane Moraes, doc. IMS – Instituto Moreira Salles, Brasil, 2021) — fala-se de gente, não de vida; de acabamento, não de morte. Somos escassos, fazemos falta aqui. Não estar aqui, não estar noutro lugar: engavetado (como um arquivo de filme), nada mais terrível e nada mais natural —, a diretora acompanha, com sua câmera (sob uma ótica espontânea e crua), uma cerimônia fúnebre. Não segue uma história, mas uma situação; buscando constatar e documentar o argumento de que o “eu” observador, isto é, a subjetividade individual, decerto se acaba; entretanto, sendo a vida algo maior, é algo que se perpetua. Por isso, não apenas aqui, mas em toda a sua filmografia, Moraes se interessa pelo registro do “observador interno” (na captura do rosto e dos olhos) e da morte (por múltiplas vias).

Durante a pandemia da Covid-19, período marcado por perdas abruptas e rituais de despedida impossibilitados; Everlane Moraes revisitou a filmagem de um funeral e sepultamento, que realizou cerca de 10 anos antes. E, tal como um found footage não assumido, transformou a filmagem neste documentário, que faz pleno uso da liberdade de sua linguagem. Com a câmera na mão, ela vagueia pelo interior de uma casa comum. Já somos inseridos no velório, numa típica cerimônia fúnebre, espaço onde a morte se personifica. No caixão fechado está o finado Wellington, tio da diretora. 

O conteúdo remete a Di-Glauber (Dir. Glauber Rocha, 1977), mas se distancia de sua abordagem polemista e antiética. Aqui, não vemos o rosto de Wellington, mas dos outros; e a decupagem se interessa mais pela representação de aspectos culturais, para reforçar a experiência. Daí, como é comum, há o reencontro de amigos e familiares, num misto de luto e confraternização. Pessoas entram e saem da casa, conversam no corredor, do lado de fora. E a trilha sonora é a captura do vozerio dessa ambiência, mixada de modo, aparentemente, aleatório. Falam sobre o falecido Wellington, seus problemas de saúde, seus mais de 34 anos de consumo de álcool, além de outros assuntos.

Nesse ínterim, Moraes faz planos-detalhe do caixão, dos pés de uma pessoa, de cabos, de um balde, de velas, uma lâmpada, e dos rostos. Everlane registra choros e sorrisos, captura a atmosfera, os olhares pesarosos e brincalhões. Até um bebê, aos braços de uma mulher, chama atenção de sua objetiva. Esses planos encapsulam o olhar humano direto, um olhar que mira a própria câmera (o espectador ou a diretora?). A fotografia em P&B é expressiva e acinzentada, como uma pedra trêmula e lascada. O branco estourado se aproveita e se faz difuso e etéreo, como se as figuras fossem duais: abaixo da luz, corpos humanos repartidos na dimensão da matéria e do sublime, no caminho do além. 

Após os planos-detalhe do caixão, das velas, da imagem do Cristo na cruz e de pessoas presenciando o rosto do falecido mediante um pequeno vidro — olhando como quem teme e pensa: “um dia estarei eu ali” —, segue-se a cerimônia. Todos estão em torno do caixão, em plano plongée aberto; um homem faz um curto depoimento (fala sobre saudade), depois oram e rezam. Em marcha, o caixão é levado até a mala de um automóvel, que o conduz ao cemitério. O motorista mantém seus olhos impregnados no cotidiano. Moraes utiliza sempre a câmera na mão. Colocam o caixão, com Wellington, numa gaveta mortuária, novamente ao som de rezas. Com o martelo, o coveiro apaga, de uma tampa de concreto, o registro de outro indivíduo que já partiu. E, com essa tampa, sela a gaveta mortuária. 

O nome de Wellington, sua data de nascimento e falecimento são registrados sobre uma camada de cimento. Talvez diria aí Pessoa: “Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! […] Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste; mais nada…”. Entretanto, no cemitério vemos outras lápides, com epitáfios, já que Everlane abusa de seus planos-detalhe. Um dos epitáfios diz: “[…] você permanecerá sempre vivo em nossos corações”. A diretora termina dedicando o filme à memória dos que já se foram — afinal, entre os anos da filmagem e do lançamento do documentário, muitos dos que foram registrados também já tinham falecido, incluindo a mãe da diretora. Para mais, A Gente Acaba Aqui adquiriu uma relevância considerável no ano de seu lançamento, contexto da Covid-19, ao ecoar a dor coletiva e a necessidade de preservação da história pessoal e comunitária. 

A sabedoria popular diz que os olhos são a janela da alma, ou do coração (“The eyes, chico. They never lie”); enquanto a ciência sugere que só enxergamos com a mente. As nossas experiências nos marcam por dentro e também por fora. Nossa história está cicatrizada em nossos rostos, em nossos corpos; de modo que, quem se atenta ao rosto consegue enxergar o coração. Por isso, o interesse de Everlane Moraes, em capturar o “observador interno” e a morte — refletida como um acontecimento, uma anestesia da qual ninguém pode voltar, ou um fato do interior do cotidiano —, atravessa A gente acaba aqui e quase todos os seus filmes. Ela objetiva imortalizar o “eu” que se acabará, o intangível e efêmero, o teor da subjetividade; em suma, imortalizar o mortal.

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