Texto: Matheus Costa. Revisão: Larissa Lisboa.
Gostaria de pedir-te que mentalize uma família. Quem faz parte? Quais são os elementos que estão nela? Qual é a cor dela? Quais são os corpos que estão nela? Peço-lhe licença, para deduzir que foi pensando em uma família conhecida como nuclear, ou seja, mãe, pai e filhos. Acertei? Gostaria de apresentar um arranjo familiar mais parecido com a realidade brasileira, a saber, matrifocal. Nesse modelo familiar a centralização é da mulher, independente do motivo, podendo ou não ter a presença do pai.
No curta-metragem Mãe Solo podemos observar o desdobramento desse arranjo familiar juntamente com outro fenômeno tipicamente brasileiro, a saber, a solidão da mulher negra. Este segundo fenômeno consiste em um certo preterimento das escolhas afetivas-sexuais sobre as mulheres negras, fruto dos mecânicos do racismo moderno.
Em Pele negras, máscaras brancas Frantz Fanon alerta sobre como o racismo visa não apenas desumanizar os corpos ditos como não brancos, bem como fixá-los em determinadas figuras no processo de racialização. Essas figuras são como, Grada Kilomba diz, criações fantasmagóricas de um contradição que visa culpabilizar os outros pelos os nossos próprios “demônios”. Em consonância com Lélia Gonzalez, as figuras que as mulheres negras desempenham dentro da sociedade brasileira são: mulher negra, naturalmente, cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta.
Todo esse processo podemos ver sintetizado na palavra “raça”. Nas palavras de Mbembe, raça é também o nome que se deve dar ao ressentimento amargo, ao irrepreensível desejo de vingança, isto é, a raiva daqueles que, condenados a sujeição veem-se com frequência obrigados a sofrer uma infinidade de injúrias, todos os tipos de estupros e humilhações, e incontáveis feridas. Não pense que raça é um dado natural, pois conforme Hall, no livro A identidade cultural na pós-modernidade, raça é uma categoria discursiva. Por isso, Mbembe vai decidir-se a trazer à luz a construção desse dispositivo na modernidade no seu livro intitulado de Crítica da razão negra.
Mas voltamos para essa junção de matrifocal e solidão da mulher negra. Um estudo realizado pelo IBGE em 2010 acerca da nupcialidade da população brasileira, concluiu que as mulheres negras são as que menos se casam, e que têm o maior índice na categoria “celibato definitivo” entre mulheres acima de 50 anos.
Podemos afirmar nas palavras de Souza (no artigo, Apontamentos sobre as representações das mulheres negras: Luta e resistência), “as representações sociais negativas sobre as mulheres negras permanecem na sociedade atual, nos escritos, na academia, no senso comum, criando o imaginário da mulher negra mulata, amante, empregada doméstica e tantas outras derivações impostas e determinantes da dimensão sexista e racista na sociedade capitalista…”. Além disso, conforme Ribeiro no livro Pequeno manual antirracista, no imaginário coletivo brasileiro, propaga-se a imagem de que são [mulheres negras] “lascivas”, “fáceis” e “naturalmente sensuais”.
Faço essa breve contextualização visando afastar qualquer alegação que esse problema não existe ou que isso consiste em vitimização por partes das mulheres negras. Isso é um problema que afeta várias mulheres no seu dia a dia, bem como, no seu processo de subjetivação.
Por isso que o curta-metragem Mãe Solo incide de forma tão importante ao trazê-las para narrar as suas dificuldades e complicações fruto dessa estrutura racista e sexista. Na fala da primeira mãe solo podemos ouvir “minha vida daria um livro” em certo sentido dá, como o livro escrito pela Ana Cláudia Lemos Pacheco denominado de Mulher negra: afetividade e solidão feito a partir da sua tese de doutorado, no mesmo estado que foi filmado o curta-metragem.
É evidente nas falas das duas mães solos as dificuldades que em primeiro momento é resultado da não participação do genitor, como também da falta de políticas públicas que possam amenizar tal problema. No primeiro momento há uma sobrecarga dessas mulheres em ter que dar conta sozinhas da criação das suas proles, como educar, dar carinho e amor, e sustentá-las. No segundo, como a falta de políticas públicas acaba por ser um fator de agravamento desse problema.
Há uma intersecção entre esses dois momentos na vida dessas mulheres e das suas proles. Além disso, esses processos vão se materializar na sua subjetividade, exemplo disso, está na fala de uma mãe, “já tive que deixá-lo só”, “Deus me abençoou com um filho de natureza muito tranquilo”, podemos ver que nessas falas existe dor, pois foram feitas como a única possibilidade de sustentá-lo.
Isso me faz pensar em Mbembe ao citar Foucault, para o autor, “na formulação de Foucault, o biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer”. A falta de política pública voltada para essas mulheres é uma das estratégias do biopoder na realização da sua função.
“Meu filho para mim é tudo”, “o fato de ser mãe é uma coisa maravilhosa”. Falar sobre racismo é doloroso, mas isso não significa que não há espaço para dizeres acerca do amor. Aliás, longe de buscar romantizar essa realidade, podemos ver que o afeto que mais prevalece nas suas falas foram e é amor. Amor por seus filhos que apesar dessa realidade crucial, nunca há de falta esse sentimento tão fortalecedor que foi e continua sendo um motor para elas enfrentarem essa dura situação.
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