Texto: Flaminhia Silva. Revisão: Larissa Lisboa.
“A Liberdade é Azul” em Mulher Pandêmica
As relações interpessoais e intersubjetivas foram profundamente transfiguradas nesta pandemia, isso já é sabido. Quando falamos da relação com o próprio corpo, é mais comum vermos discussões sobre a prática de exercícios físicos, dores, sedentarismo… Perspectivas meramente objetivas.
Diferentemente do homem cis, a relação da mulher cis com o próprio corpo é algo que ultrapassa a fronteira da objetividade. Nossa trajetória de perseguição pelos direitos mais elementares também perpassa pela autocompreensão, autopercepção e apropriação do próprio corpo, já que historicamente e sociologicamente, além do nosso intelecto, tivemos nossos corpos subjugados, demonizados e coisificados, destinados a servir ao prazer masculino. Como a subjetividade também é resultado da dinâmica entre indivíduo e influências socioculturais, absorvemos que nosso corpo não possuía alma, nem autoconsciência, nem sensibilidade, nem vontades. Nossos corpos não nos pertenciam e não éramos sujeitas do próprio desejo.
A história deixa marcas indeléveis para nos lembrar de que o que temos hoje, temos hoje. Não existe desde sempre, nem nos foi dado, mas conquistado a duras penas. É por isso que celebramos o sagrado e o profano dos nossos poros. O sagrado e o profano femininos.
A pandemia também nos fez refletir sobre essa relação, sobre nossos hábitos, nossos toques, indiferenças, amor e repulsa. É essa reflexão que Mulher Pandêmica nos traz. As protagonistas investigam seus próprios corpos, tentam entender o que sentem em relação a ele – essa incógnita pode ser perfeitamente representada pela caixa misteriosa que chega à porta. Na quarentena encaramos mais espelhos, internos e externos, e os dois ao mesmo tempo. Tendo que encarar esse corpo exausto e impotente – parafraseando a fala da própria narradora -, mas que também se mostra uma morada aconchegante.
As personagens são várias em uma e uma em várias e é exatamente isso que somos. Quando colocam objetos próprios do uso feminino no liquidificador, reflete a ressignificação desses utensílios em nossas vidas e como tudo se condensa e se transforma em liberdade. Por exemplo, não é libertador dispensar a necessidade de se depilar e provavelmente estender isso para além do período de clausura? Não é libertador dispensar o uso da calcinha na maior parte do tempo? No filme Mulher Pandêmica, a(s) mulher(es) pandêmica(s) flerta(m) com sua própria emancipação, seja através de uma fita cassete por onde ela engole e sente a ausência de som ao redor, seja através de um banho de assento – prática antiga de cuidados ginecológicos difundido entre gerações.
É por isso também que Mulher Pandêmica muitas vezes não despertará as mesmas impressões em homens cis e em algumas mulheres ainda não familiarizadas com debates contemporâneos. Considero uma das belezas do filme: feito por mulheres e para mulheres. O filme nos traz uma reflexão absolutamente pertinente e não poderia escolher cor melhor que a azul para simbolizar essas ressignificações.
Quando pensamos na cor azul no audiovisual é comum lembrarmos do filme francês Azul é a cor mais quente (2013). Particularmente, o filme que me veio à mente e que entendo dialogar muitíssimo bem com Mulher Pandêmica é A Liberdade é Azul (1994), da trilogia das cores do diretor polonês Krzysztof Kie?lowski. A personagem do filme, vivida por Juliette Binoche, também passa por um período de afastamento social, mas em razão da morte do marido e da filha. Além da liberdade, o azul também pode simbolizar um estado de melancolia, que é exatamente o estado da personagem após a morte das pessoas amadas, mas que também se liberta do luto ao longo do filme.
Paralelamente, diria que Mulher Pandêmica também pode ser visto como essa travessia da melancolia do afastamento social – corroborada pela trilha sonora – até a liberdade de estar bem dentro do próprio corpo. Mulher Pandêmica é a imagem tatuada num corpo com memórias e um corpo com memórias retratado no audiovisual.
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