Crítica: Negrum3 (Diego Paulino)

Texto: Wibsson Ribeiro

Pista de dança como utopia ou olhar para o futuro de onde tudo começou

Na abertura de Negrum3 uma voz metálica apresenta de forma irônica um aviso de gatilho que, dentre outras coisas, alerta para o discurso acadêmico barato que o filme carrega. Aproveito então essa deixa pra descarregar um pouquinho de academicismo xarope nas linhas a seguir.
Ainda no meio dos anos 1980, quando a derrota das vanguardas artísticas e políticas estava consumada e o pós-modernismo começava a ser compreendido, o crítico estadunidense Fredric Jameson apresentou a tese de que vivíamos uma época em que se sentia o futuro como algo bloqueado, a própria noção de temporalidade parecia ter chegado ao fim. No lugar do tempo como grande categoria para pensar as obras de arte, emergia o espaço, muito mais condinzente com uma época que percebia como grande sintoma de sua época uma simultaneidade de tempos históricos. Mas se só há o presente, temos um problema, ou um espaço último, o corpo. Jameson, carregado no ceticismo honesto de quem vinha de uma tradição marxista, chamava de “redução ao corpo” esse fenômeno no qual apenas o corpo poderia ser verdadeiro, sentido, vivido.
Avançamos para o século XXI. Judith Butler, outra teórica norte-americana, essa mais ligada ao queer e ao feminismo, fala em “corpos em aliança”. Como se estivesse respondendo à clássica pergunta “o que pode um corpo?”, tão repetida por deleuzianos (pois é, só autores brancos até aqui, foi mal), alertasse para o fato de que sozinho um corpo pode muito pouco, mas construindo assembleias populares nas ruas, ocupando as praças, marchando unidos, esses corpos podem sacudir sistemas políticos. Talvez o pessimismo de Jameson possa ser reconciliado aí, ou as teorias que celebravam o corpo desde os anos 1970 passaram a perceber os limites de suas elaborações e retornaram a questões de organização e agência que pareciam abandonadas.
Voltemos ao filme, que é o que interessa. Negrum3 parece justamente percorrer esse trajeto. O filme começa com um corpo negro sozinho, em meio à cabides de roupas. Esse corpo começa a se comunicar com outros corpos negros no carnaval, em festas, em pistas de dança. A palavra espaço aparece na tela: é de luta por espaços que se trata. A utopia nasce da dança, do espírito comunitário que se cria na pista, em meio às luzes e ao tom futurista.
Tudo muito bonito, mas aí começam as contradições. A pergunta política que poderia ser feita é: até onde irá essa luta por espaço? E como essa luta se dá no cinema? Negrum3 jorra potência política e seu final é comovente e alegre, lutador e festivo, mas é também em vários momentos perigosamente publicitário, fulgurante como uma mercadoria.
A luta e a implementação das cotas no Brasil abriu uma fissura muito importante que parece expressa nesse belo filme: corpos negros reivindicando o que é seu, lutando por mais espaço, acessando bens e posições que eram destinados unicamente à classe média branca. Tudo muito justo, mas fica a pergunta política. Até onde irá a luta por espaços? Será suficiente a ocupação de postos de chefia (necessária, em um país no qual para cada chefe negro há sete brancos…)? Será suficiente a disputa por postos de poder?
O filme brinca na introdução irônica que exibe “falsos empoderamentos”. Os seus realizadores conhecem muito bem a ladainha que se segue a exibição dessas conquistas recentes da população negra no Brasil, ladainha que eu reproduzo aqui não com certa vergonha na cara. Mas penso que é a contradição mais evidente de Negrum3 o que ele tem de mais instigante: esse brilho que é tanto utopia como mercadoria, tanto a reivindicação de uma ancestralidade e de um futuro que estão imbricados, de uma origem que não para de se anunciar, quanto de um tino comercial que parece muito confortável dentro do espetáculo das imagens capitalistas.

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