Crítica: O Bestiário de José Paulo (dir. Celso Brandão)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa

A temática das tradições da cultura popular brasileira sempre foi cara a Brandão. Desde a sua contribuição ao superoitismo alagoano, a partir dos anos 1970, até o presente curta, ele tem procurado fotografar e registrar os artistas que encarnam o “gênio criativo”, as obras de tais artistas e as manifestações da cultura material de um determinado povo; e sempre com um olhar “catalogante”, articuladamente fotogênico. Essa busca por uma documentação não poderia ser ocasional: há o paradigma de identificação evidente na sua pesquisa (um gosto pessoal). Dado que não é preciso tanto esforço para se saber da existência – da riqueza numérica, da diversidade qualitativa – dos artistas populares (das artes plásticas, do artesanato, da música e do teatro) que permeiam a nossa região. Não apenas aqui, é que vemos Celso Brandão propor um cinema de identificação formal e material, com seu caráter genuinamente etnográfico, e em prol de um papel divulgador.

Em seu trabalho de campo, o diretor se volta aos ateliês dos escultores populares, ao encontro dos mestres do folclore, às perspectivas dos trabalhadores anônimos, ou aos palcos de danças e folguedos. Identifica artistas populares ainda vivos aos quais possui uma afinidade, o interesse de lhes dar testemunho. Rose Monteiro é quem toma e argumenta, na sua dissertação de mestrado, os filmes iniciais de Celso como os que se adéquam a mesma abordagem de Housing Problems (1935), por serem obras que buscam por uma realidade material através de planos fixos, que usam de depoimentos da classe trabalhadora, onde os entrevistados são os próprios protagonistas; bem como expõem certos saberes e fazeres populares. Todavia, em Reflexos (1975), seu primeiro filme, quando registrou à luz da aurora a paisagem espelhada da Lagoa Mundaú, ele lançou mão de uma abordagem poético-realista, num trabalho de quem é capaz de identificar na beleza material da natureza a sua “dimensão metafísica”. Já em Papa Sururu (1989), cuja sensibilidade é a que busca identificar a realidade crua dos ribeirinhos à Lagoa, a sua decupagem livre e contemplativa recorre à neorrealista e moderna de Gente Del Po (1947) – embora, para nós, Gente Del Po esteja mais próximo do esteticismo cinemanovista de Aruanda (1959). Quer identifiquemos ou não suas primeiras referências, vale é que esse olhar humanizante e direto de Brandão é o que jamais se “distancia” do artista ao expô-lo; contrariamente a isso: é um que brota em plano aberto adentro do espetáculo da atividade criativa cotidiana. 

Daí é que se fundamenta o seu papel de “cineasta divulgador”. Tal como Janete, em Janete Costa, a busca do objeto (2008), na disposição por divulgar a arte popular brasileira, talvez o que mova Brandão num primeiro momento seja o seu gosto pela coleção das “peças”, pela descoberta dos artistas e das obras, frente a iminente possibilidade de se descobrir uma “joia rara”. Alegoricamente, Janete seria seu “filme síntese”. E o gosto seria aquele que se manifesta especialmente por artistas capazes de identificar na matéria com a qual trabalham (detritos ou não) formas criativamente imagéticas, tais quais figuras animalescas, em Desvirando Bicho (2005); máscaras e rostos, em Bobos de Tatuamunha (2012), O Ouro d’Irineia (2015); ou meras figuras bestiais, em Petrônio O Primeiro Abraço (2014), Eraldo Tudo no mundo eu faço (2015), O Bestiário de José Paulo (2016). 

José Paulo dos Santos é um marceneiro de profissão (personagem de O Bestiário); mas sobretudo um artista popular, um escultor alagoano. Ele olha para o lixo e a sucata (materiais já passíveis de serem ressignificados), e consegue identificar nesses detritos uma forma distinta, algum contorno figurativo. Dessa formulação teórica, parte para o trabalho de recriação concreto, aos seus próprios cuidados artesanais; ou seja, pega pneus, ossos, garrafas, madeiras, itens de carros ou de motos e os corporifica, enfeitando-os e lhes estabelecendo uma nova estrutura. Quando terminado, eis que batiza, dentro da sua convenção, essa estrutura como sendo a própria obra, na maior parte dos casos atípica. Totalmente despida de sua anterior utilidade, ela agora é uma peça artístico-decorativa. Daí a incumbência do autor como um recriador, um “reinventor” da obra artística. 

À abertura, a câmera cobre em curto tempo os espaços que contorna a Marcenaria São Paulo, construindo composições que, de certa forma, “identificam” os elementos em cena. Localiza-se ao evidenciar a Lagoa, o movimento periférico das ruas, as pichações dos muros, além do próprio estabelecimento em que o seu personagem trabalha. Em seguida o labor; a atividade propriamente artística. Quando enquadra José Paulo, ela recorta dele o que há de mais direto e objetivo; mas também se atém às aparentes confissões de seu “eu sorrateiro” – o que se acha detrás da persona que ele possa carregar, e com o qual mais nos parece verossímil. Na maturidade do olhar, a montagem é a que identifica com sutileza os descuidos e as “frestas” dessa persona. “Frestas” que talvez se revelem com o inusitado de uma ação espontânea, aos intervalos de possíveis falas ensaiadas, ou ao esgotamento de uma gesticulação excessiva, perante um depoimento legitimamente improvisado. Daí que presenciamos a escolha deliberada pela inserção do “Vou ver se pego ao menos mil reais desse véio”, em O Carpinteiro de Jesus (2017). Um desígnio de montagem que hilaria e redefine durante a exibição a experiência com o próprio filme.

Enquanto José Paulo relata ser alguém que identifica rotineiramente no detrito a imagem disformemente ideal e singular para cada escultura a ser criada, Celso com a sua câmera, em contraponto, propõe essa abordagem formalista e direta (limpa e econômica), onde simula uma parte da narração e intercala planos detalhes de algumas das esculturas, feito um ensaio em fotografia still, ou uma reprodução em slide. Identifica aos cortes concisos a harmonia das formas das figuras – tal como se o dispositivo do filme fosse pretexto para se fazer fotografias do que não é capaz: “fotografar” a continuidade do espaço (a cobertura), o movimento pontual da composição (o sacudir dos rabos e das cabeças das esculturas) e o som (o timbre da voz e do ambiente) –, fazendo de cada escultura (atípica e estranha) o garbo mais vistoso da sua composição. 

Apesar desse formalismo do olhar, o diferencial do artifício da recriação: o design de som se aproveita do elemento sonoro de um timbre metálico da cena (certo foley de serração e soldagem) e, acompanhado por uma percussão, o faz de trilha sonora. Com a graduação dos níveis de intensidade dos sons, tal timbre é responsável pela dinâmica do filme, já que estimula a percepção, substanciando a esfera sensorial. Essa recriação, tal como uma ideia de reestruturação, melhor se evidencia em O Lambe Sola (2007), quando, por meio de um corte, há um salto no tempo da filmagem, acompanhado por uma ruptura estética, e a câmera vai buscando retomar as “rimas” da sua narrativa. No primeiro registro, o diretor assume a liberdade da decupagem e, num realismo cru, faz planos cheios de expressividade. O olhar é um que se deslumbra sobre o trabalhador que, inspirado pelas musas, se incorpora ao declamar os seus versos de caráter popular. No segundo registro, sob certo formalismo e uma fotografia de luz fria, vemos o poeta em estado de pós-AVC. Ele já não mais se performa ao declamar; porém ainda parece em contato com o “delírio divino”, ainda é o construtor do imaginário popular. 

Do conteúdo temático, no atento por se compreender o cotidiano de um artista e o seu processo criativo, é que Brandão se incumbe da sua tradição realista. Da forma, salvo algumas exceções, ele vai rejeitar o “realismo da câmera tremida”. Tal como Petrônio O Primeiro Abraço, e Eraldo Tudo no mundo eu faço – obras que conservam uma mesma abordagem –, temos aqui um plano aberto, com o personagem ao centro, e contornado por esculturas que exemplificam a sua obra. Planos quase sempre fixos, planos de cantos e espaços de “natureza morta”, a enquadrarem as peças esculturais sob um ângulo frontal totalizante. Adepto de uma escola que cultiva a objetividade temática, à la Coutinho; mas também formal – de quem mete a mão e põe forma à obra, de quem “esculpe” as imagens com uma câmera – e certamente influenciado pelo próprio ofício de fotógrafo na direção, é que se dá esse realismo econômico da sua mise-en-scène

O modo com o qual o diretor se utiliza dos elementos da linguagem (arquitetando certo formalismo “fotogênico”, acrescido de um excesso de realismo improvisado, e por isso econômico) vai responder à uma única ideia cinematográfica: a identificação formal e material conciliada à uma reinvenção conceito-artificial. Para além de suas escolhas temáticas (de seu engaje sociocultural), de seu trabalho “etnográfico”; ante também tal abordagem formalista e um olhar preenchido de objetividade; perante a aparente inexistência de um “eu” envolvido em todo esse processo, decerto percebemos que nenhum de seus planos são inocentes. Identificar as tradições da cultura popular brasileira, registrá-las na linguagem dos filmes, é estabelecer dignamente a própria identidade e universalizá-la à leitura do mundo. Celso não adere apenas a um papel de “cineasta divulgador”, ele é o “escultor” da imagem e do som do artista popular alagoano recente.

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