Texto: Tatiana Magalhães. Fonte: Oficina de Crítica Cinematográfica
Porque (ainda) precisamos falar sobre violência contra a mulher
No fim do último dia da Mostra Competitiva da 7ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano fui surpreendida, no banheiro feminino do Cine Arte Pajuçara, por uma conversa sintomática. Uma senhora comentava com uma jovem suas impressões sobre o que acabara de ver nas tela do cinema. Ela, a senhora, lamentava o fato de uma moça “de família” ter se envolvido com um “mau elemento”. Dizia algo como “não entendo como alguém que tem tudo pode se envolver com gente assim”. Ela se referia a uma das duas mulheres que concordaram em se fazer parte do curta-metragem Sangue-Mulher, dirigido por Janderson Felipe, Minni Santos e Mik Moreira, estudantes de jornalismo. Com uma coragem libertadora e angustiante, aquelas mulheres aceitaram se expor às câmeras, em ter seus sentimentos mostrados, suas vidas e corpos escaneados e sua interioridade desnudada, compartilhando traumas e consequências de violações ocorridas em diferentes momentos de suas existências.
De forma natural e educada, retocando sua maquiagem, a garota do banheiro respondeu àquela senhora. Disse que, havia pouco, tinha conversado sobre o fato de ainda nos culparmos e culparmos as outras pela violência sofrida, infelizmente. A senhora, não sei se se reconhecendo na fala da sua interlocutora, falou “é”, e saiu da cena. A garota estava ciente de que esse pensamento pertencia a uma geração anterior (apenas?) e não a culpava por tê-lo. Pensei e verbalizei o quanto era bom ver que hoje temos essa noção de que precisamos uma das outras para nos sentir mais fortes, e que o conflito dessas visões de mundo ainda está presente, e sempre vai estar, porque a realidade é contraditória. O fato é que o comentário nesse banheiro mostrou a mim, ainda impactada pelo que acabara de ver na tela, que o olhar sobre esse tipo de violência, por mais que seja explorado de diversas formas na atualidade, parece cada vez mais necessário.
Cabe aqui colocar que, após compartilhar sua história no filme, a personagem citada na conversa, e que por anos sofreu violência e ameaças do pai de sua filha, foi taxativa ao ponderar que se foi difícil para ela, branca, loira, de classe média, que dirá para uma mulher negra, da periferia. Ela pôde fugir enquanto a família buscava na justiça as medidas protetivas, mas antes de tomar essa atitude se via presa àquela relação, pois achava que era seu destino vivenciar aquilo. A quantas é vetada a possibilidade de fugir, de recomeçar?
Assim, a fala da senhora no banheiro revela mais do que ela quis dizer, pois mostra que a questão central da violência contra a mulher continua sendo escamoteada. Afinal, o que gera essa violência? Por que ainda incomoda mais às pessoas que alguém com mais opções de escolha sofra violência do que a violência em si? Isso, desconsiderando que as escolhas não determinam o resultado, e que ao nos envolvermos emocionalmente, não só não agimos de forma inteiramente racional (a culpa pela “escolha” representa internamente a necessidade de aceitar as consequências), como também não conhecemos por inteiro os sujeitos com quem nos envolvemos.
Da mesma forma, ao trazer à tona apenas esse aspecto – que é uma identificação do sujeito (algo como: poderia ter sido com a minha filha, mas não é, ela tem juízo) – além de tangenciar a questão mais ampla, silenciam-se outras mulheres com opções de escolha restritas. Mulheres a quem o poder público dá as costas, com quem as determinações sociais agem com mais força, impelindo-as a ficar num mesmo lugar. No entanto, essa possibilidade de entendimento é também resultado da escolha narrativa de Sangue-Mulher, que prefere não explorar a faceta social de como se constitui a misoginia, mas em mostrar o quão devastadoras são as suas consequências na vida de quem sofre com suas ações mais diretas. O que toca profundamente uns, pode causar estranhamento a outros.
Ao abordar o mesmo tema sob duas perspectivas – o depoimento das garotas e uma performance artística intimista, em que uma dançarina movimenta o corpo sobre o qual se projetam manchetes de jornais abordando a violência contra a mulher – o filme contrapõe o social e o individual, ou, melhor dizendo, como os fatos retratados na parede (a objetividade) passam, antes, pelo corpo feminino. É nesse sentido que, nos depoimentos, a opção pela câmera fragmentada, que nunca mostra as vítimas por inteiro, mas o suficiente para saber suas identidades, penetra em suas subjetividades e nos traz identificação com as suas histórias.
E nessa opção, que pode parecer em alguns momentos invasiva, passamos a sentir como elas, sofrer seus traumas, rememorar suas tragédias. O depoimento/confissão expurga (?) as culpas, coloca-as na parede – e nos põe como julgadores, apontando sobre elas nosso olhar. Em alguns momentos, o foco passa sobre os corpos como um scanner: trata-se de uma cópia, uma reprodução de tantas outras histórias, de tantas outras violências. Ao conhecer as consequências de um estupro de uma garota de seis anos (ainda que não tenha tido a penetração, é estupro) e o quanto o fato continua como fantasma na sua mente adulta, constatamos que, diferentemente do que muita gente acredita, a violência física não precisa se “consumar” para afetar nossa psiquê. Bocas e mãos trêmulas, o corpo que fala através de gestos espontâneos, mostram, até mais que o discurso verbal e suas falhas, pausas e silenciamentos, que as maiores marcas ficam por dentro.
Apesar da visível qualidade de nos transpor esses dramas, Sangue-Mulher apresenta um problema em relação à conexão entre as duas perspectivas, que muitas vezes parecem dois momentos distintos. A mensagem da dança, embora remeta a essa relação imaginária de leveza da feminilidade (mesmo que perpassada pelas projeções), não é perceptível, parecendo às vezes desconectar-se dos depoimentos. Ele ganha sentido e força apenas na última parte, na montagem final. Outra escolha dos diretores pode render críticas, mas também bons debates. Trata-se da própria forma de exposição das personagens. Da forma como a câmera as apresenta e as faz reviver esses dramas. A maneira como elas nos são apresentadas é também uma violação de suas intimidades? Ou a exposição consciente de suas dores, se expressas de forma espontânea as transforma em sujeitos ativos de uma coletividade?
Por essa contribuição ao debate sobre cinema e sobre o tema da violência contra a mulher, o filme levou o prêmio “Olhar Crítico” da 7ª Mostra Sururu. A premiação vai permitir com que o filme circule, facilitando sua exibição em outros espaços. Espero que possibilite bons debates. Porque, felizmente, ainda podemos falar de cinema e, infelizmente, ainda precisamos falar sobre misoginia.
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