Crítica: Ser feliz no vão (dir. Lucas H. Rossi dos Santos)

Texto: Tatiana Magalhães. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: Divulgação.

É no vão que se constrói a passagem

“Ser feliz no vão, no triste, é força que me embala
O meu país
É meu lugar de fala”

(Douglas Germano)

 

Em 2018, às vésperas das eleições no Brasil, minha professora de inglês, branca e moradora da parte baixa de Maceió, me contou, indignada, sobre uma conversa com uma amiga que praticava corrida com ela na orla maceioense. A amiga declarava o voto ao atual presidente do País, usando o seguinte argumento: “ele vai acabar com essa bagunça”. A bagunça, no caso, era a “mistura” de pessoas de classes distintas na área nobre da cidade. A tal pessoa falou com todas as letras que ali não era o espaço das pessoas pobres e negras, porque isso incomodava, afastava os turistas.

Quando assisti o curta metragem Ser feliz no vão, de Lucas H. Rossi dos Santos, selecionado para a II Mostra Quilombo de Cinema Negro do Mirante Cineclube, lembrei imediatamente dessa história. Em uma das cenas recortadas de uma reportagem dos anos 1990, veiculada na extinta TV Manchete, jovens falam sobre a população carioca que se desloca pela cidade em busca de diversão. “Eu venho para a praia para estar junto dos meus”, indigna-se um jovem, reclamando da falta de educação das pessoas que não pertencem àquele lugar, a praia do Pepê. “Tem que cobrar entrada”, reclama outra. “Nós vamos invadir sua praia”, cantam jovens periféricos no coletivo a caminho do mar.

Na verdade, são diálogos que acontecem todos os dias, nas crônicas não escritas sobre fatos e falas cotidianas que atravessam os moradores das cidades, do País. Esse atravessamento, que muitas vezes choca quando escancarado – e há cada vez menos vergonha de fazê-lo -, no entanto, é como um trem de velocidades controladas, caminhando em círculos: a partida, de onde? Em que lugar é a chegada?

O filme, porém, é muito mais que a colagem de registros em forma de denúncia. Em 12 minutos ele é o trem, o ônibus, o carro que leva Tim Maia, o coletivo que carrega quem atravessa a cidade, enquanto as paisagens atravessam os sujeitos, também cenários de cidades despedaçadas pelas desigualdades e guerras que os atravessam em níveis diversos. É no transitar dessas relações das pessoas com e nos espaços que percebemos o que se cala nos sons desconexos e o que se fala quando se entende o som da voz. Há lugares e há não lugares. Há o vão, essa ausência em que se movem os corpos que cantam.

Ser feliz no vão é um ensaio cinematográfico que se vale de um amálgama de cenas de arquivo para nos falar sobre reconhecimento e pertencimento. E quando falo de reconhecimento e pertencimento, falo de movimento. É no mover-se que Rossi nos permite pensar em deslocamentos e lugares não apenas no sentido de espaço, mas de tempo. O tempo e o espaço que constituem os sujeitos e que nos constituem como sujeitos. Como se movem e em que lugares cabem os corpos negros? Quantas cidades cabem nas cidades? Quantos lugares cabem numa imagem? Quantas imagens são apagadas dos cenários? Quando a imagem é em movimento, qual o movimento que se capta para entender os lugares, os sujeitos, as cidades, as passagens?

Pensar esse movimento humano é, antes, pensar o individual no coletivo. É pensar, como Tim Maia, que o Atlântico que nos separa da África é o mesmo que une, e que África e América já foram o mesmo lugar. Essa afirmação/questionamento está presente no filme desde sua abertura, com o poema de Victoria Santa Cruz nos levando para longe e para dentro: entender quem se é, é o que dá forças para que se caminhe. O movimento, portanto, se dá de duas formas: o interno, autorreconhecimento. O externo, estar no mundo, se fazer presente, em trânsito. Esse deslocamento é tão mais duro quanto o lugar reservado no registro estático do olhar socialmente constituído por quem enxerga, delimitado.

É o arquivo pessoal, enquanto registro simbólico e mental de atos, descrições e narrativas sociais, que direciona o nosso olhar para o mundo e as interpretações decorrentes dele. É o arquivo social, como registro dessas passagens individuais e como parte indissociável de uma construção coletiva, que constrói as narrativas sobre a nossa história, e por isso mesmo, é capaz de reconstruir. E ao lançar o olhar sobre esse corpo que canta junto e exige passagem, que Ser feliz no vão chama o povo preto e periférico ao reconhecimento: enquanto indivíduos, estamos de passagem. Enquanto povo, é preciso exigir esse lugar de chegada, não deixar que cobrem entrada.

Esse recorte de arquivos é uma narrativa certeira porque nos desloca desse vão que é definido pelo dicionário como não-lugar, a ausência, espaço vazio, vácuo, mas também como o que não tem valor real, contrário à realidade. Ser feliz no vão contraria o “ser feliz em vão”, porque é a busca por existir nesse espaço que (ainda) não existe, porque é preciso transitar. “Vão” é também a conjugação do verbo ir, no presente do indicativo. Ser feliz no vão é reconhecer a presença preta no tempo, no espaço, na cidade, e clamar por essa movência, que precisa se dar no plural, sempre.

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