Texto: Tatiana Magalhães. Revisão: Larissa Lisboa.
Amar e reinventar as coisas me interessa mais
Títulos de obras são portas de entrada e convites a um universo construído pelos autores. Não são chaves, porque como dizia Lêdo Ivo, “a palavra-chave sempre se esconde atrás da porta”. Mas partir desse abrigo, dessa proteção que remete à guerra, me permite dimensionar o filme de Paulo Silver para além de uma fantasia infantojuvenil. Trincheira é uma metáfora da necessidade de viver, de criar, de projetar em nossas mentes um universo que se expande para além das nossas fronteiras, dos muros que nos separam, dos tratores que desconstroem os universos criados como esconderijo. É uma ode ao sonho, à resistência e à possibilidade de fuga, mesmo que para muitos possa parecer ingênua.
Ver Trincheira na Mostra Sururu e pouco saber sobre o curta, além de comentários aleatórios de amigos, me permitiu me deixar levar por ele. A curiosidade foi aguçada pela interrogação causada pelo título intrigante: afinal, qual é a batalha a ser travada e como podemos nos proteger enquanto criamos estratégias para avançar?
Eu, que vi dois filmes de Paulo em mostras anteriores (Tipoia e Eu me preocupo, dos quais gosto muito e que se colocam dentro do universo da autoficção), estava aguardando que ele novamente se colocasse dentro da obra como elemento de auto-observação, constituído muito mais por silêncios reflexivos que por verborragia explicativa, elemento comum a essas narrativas. Me parece que Paulo se compõe nesse próprio filmar. Os roteiros não nos trazem suas conclusões, mas seus processos.
Foi nesse sentido que minha expectativa foi quebrada logo de início (embora depois, revendo o filme para escrever esse texto, até chegue a pensar como essa quebra não é tão abrupta, mas apenas um deslocamento necessário). E como é bom termos as expectativas quebradas, porque somos levados a outros lugares, se nos permitimos a isso. Assim, o roteiro, assinado por Paulo em coautoria com Rafhael Barbosa, me pega.
O menino, o pequeno ator Gabriel Nunes Xavier, nos é apresentado como desbravador de um espaço abandonado, mas arborizado, ao lado de um condomínio de luxo. As moradias são separadas do terreno baldio por muros e cercas. Ele chega ao lugar vestindo uma mochila feita com uma caixa de descarga e, aparentemente, um binóculo. Vemos um perfurador de solo trabalhando, um indicativo de que o lugar está em processo de mudança. O garoto sobe nos restos de construção. No ponto elevado, observa o inimigo: a casa, a cerca, o muro. Em seguida, já de capacete e munido de facão, abre os caminhos, atinge a tela. A tela não é o inimigo, é a trilha que lhe permite chegar até nós.
Nada sabemos sobre o menino: como foi parar ali, o seu nome, o que aconteceu com ele, se tem família (embora as roupas, o tênis e o aspecto de limpeza nos digam que sim, o que pode ser ruim para a construção imagética dessa “segunda história”). Ele está ali porque está. Porque precisa estar. Sua vida então é para nós todo aquele universo de coisas ressignificadas, e cujas simbologias vão se instituindo como um paralelo do mundo “real”: o cachorro de pelúcia enorme largado ao chão dos abandonos, o carrinho de supermercado que se preenche de (in?)utilidades, o cartão de crédito, a máquina de débito, as compras, os manequins estáticos, sem braços, de pernas pro ar. Nós também o assistimos do ponto de vista das coisas reinventadas. Somos a tela de TV em um jogo de videogame.
Eu parto do pressuposto que nós, a humanidade, criamos nossa existência. A história não é estática, nem determinista. E se assim o é, porque somos capazes de teleologia – imaginar, criar na mente antes de agir na concretude do real. E é isso que nos diferencia dos demais seres vivos, temos na construção imagética a mola propulsora da mudança. O menino me aparece como simbologia desse processo, além de remeter à própria arte como possibilidade de transcender o real para transformá-lo. A questão estética me parece primordial para atravessar esse limbo da superficialidade pragmática da sociedade das coisas.
Na primeira vez que vi o filme, eu apenas viajei com o menino e construí com ele, sofri com ele. Senti, como ele, a necessidade de construir uma trincheira. Acho que em todos os dias da minha vida sinto isso, a necessidade de me proteger do mundo. Precisamos desse lugar de refúgio para travar nossas batalhas, repensar estratégias. E acredito que a imaginação (no sentido mais fantasioso do termo), essa que a gente vai perdendo pouco a pouco, é o que dá força e beleza à existência. É porque temos a capacidade de sonhar, de nos projetar para além da realidade objetiva, que podemos nos colocar no mundo, ressignificar nossos lugares e sair deles. Sem a possibilidade de construção imagética estaríamos fadados à obviedade, a tristeza, ao cansaço, à resignação que paralisa.
São em poucas falas da criança em um carro destruído que se projeta o desejo: “Eles são muitos, mais de cinco bilhões, mais de cinco bilhões; estou saindo do planeta, estou procurando outro”. Na realidade, todos nós estamos (de maneiras distintas, desordenadas). Pena que para tantos, imaginar é fugir. Há no mundo atual, cerca de 7,5 bilhões de pessoas, cinco bilhões são adultos/idosos (gosto de pensar que o número não é coincidência). E se as mais de duas bilhões de crianças usassem o imaginário de outra forma?
Revendo Trincheira me lembrei de duas obras bem distintas: um ensaio que li há algum tempo, sobre produção imaginária, chamado A produção imaginária e a formação do sentido estético. Reflexões úteis para uma educação humana, de Angel Pino; e o filme alemão A Cabana (Die Summe meiner einzelnen Teile), de Hans Weingartner. No ensaio, o autor parte do entendimento de que o processo imaginativo é parte do fazer humano. A produção imaginária é, portanto, necessária para qualquer ação do homem, seja ela material ou simbólica. No entanto, a produção criadora é o que nos permite, ao transformar o real, transformarmos a nós mesmos. E é aí que podemos usar essa função criadora, que deve se estender não apenas à arte, mas a todas as esferas das relações humanas e sociais. É daí que vem a importância de compreender sua força como mecanismo educador.
Em A Cabana, um matemático renomado recém-saído de uma clínica psiquiátrica encontra na amizade de uma criança abandonada seu abrigo. Juntos, constroem uma cabana na floresta como um espaço para além da dureza do mundo e de sua realidade. Aqui, o espaço da criação de um universo paralelo é a salvação para quem se sente incapaz de enfrentar essa realidade. A mente é nosso refúgio, ainda que possa também ser nossa fuga, nos sentidos positivo e negativo. Embora a temática do filme de Weingartner seja bem distinta e traga outros níveis de complexidade que remetem à incapacidade social de lidar com a loucura, a recordação foi inevitável por mostrar esse outro aspecto da construção imaginária: a perda de conexão com o real e a dificuldade de lidar com essa aparente desconexão.
A arte vive da imaginação, o cinema vive da imaginação. Alimentar esse olhar é ser também um pouco criança, se permitir ser outras personagens, viver outras vidas em outras realidades projetadas. É muito significativo que a trincheira simbólica seja construída por uma criança, pois é na infância que a imaginação flui, mas que também vamos nos constituindo como sujeitos no mundo. E por isso penso no menino também como qualquer pessoa que ousa imaginar e criar outros mundos na guerra em que a arte é arma, e por isso ele, o menino, é também Paulo, e por isso é, em certa medida, continuidade e quebra de seu universo ficcional, de sua projeção no mundo, num tempo-espaço que lhe permite fugir de si mesmo para se encontrar. Se isso é viagem minha, pouco importa, porque esse texto também é uma criação.
O menino cria seu mundo e é partindo desse universo individual e subjetivo que ele nos traz a universalidade das relações opressivas de uma sociedade brutal. É bonito e triste ver que a fantasia é um refúgio, mas é gratificante vê-la também como uma trincheira.
[* O plugin Shield marcou este comentário como “Trash”. Motivo: Teste Bot Falhado (expirado) *]
Belíssimo texto. Grato pela viagem proporcionada.
Belíssimo texto. Grato pela viagem proporcionada.
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Demais! <3