Texto: Tatiana Magalhães. Revisão: Larissa Lisboa.
Tudo o que é silêncio também fala
Pode parecer estranho que, para começar a falar sobre um filme, eu remeta a algo fora dele, mas é justamente porque esse “fora” também integra a programação proposta pelo Mirante Cineclube para a II Mostra Quilombo de Cinema Negro, e porque essa programação possibilita que façamos essas intersecções a partir da expansão do olhar dialógico.
Cabe, antes, lembrar que uma obra cinematográfica nunca é apenas fruto das ideias de seu realizador ou realizadora, mas de um tempo (não estático), de construções sociais e simbólicas que se cruzam. Quando tomadas pelo sujeito aberto, disposto e com competência para fazer progredir o debate, certas obras são capazes de subverter o olhar sobre o já visto, o já falado, o já dito, dando-lhes novos contornos.
Foi o que senti quando assisti ao filme convidado da sessão Rastros, Tudo que é apertado rasga, do baiano Fábio Rodrigues Filho. Tive a felicidade de assisti-lo após ter acompanhado duas lives: uma mesa sobre a participação negra no cinema alagoano, com Ulysses Arthur, Ticiane Simões e Wanderlândia Melo; e o bate-papo sobre como a montagem de um filme pode (re)criar, (re) construir e (re)escrever a memória, com a sergipana Lu Silva.
Na primeira delas, dentre as inúmeras questões postas, destaco a fala articulada de Ticiane, que, do seu lugar de atriz – que é, por si só, um lugar de resistência –, pôde discutir sobre os papéis e a perpetuação dos lugares para a mulher negra nas narrativas cinematográficas, bem como das próprias temáticas expostas nessas narrativas. Ainda que, como ela mesma expôs, esse quadro venha mudando aos poucos (e isso é resultado de questionamentos e luta, não de reflexão espontânea), ele ainda persiste. Assim, Ticiane nos coloca um dos recortes possíveis no debate sobre o papel do negro no cinema brasileiro. O que esses estereótipos revelam de nós, como sociedade e do cinema, como arte que atravessa os olhares e possibilita a construção de outros caminhos? E de que forma compreender isso nos leva à ação, a mudanças?
É justamente esse o “mote” trazido por Tudo que é apertado rasga, cujo (belo e forte) título me soa como um grito. Um grito que canta – um canto rasgado – as possibilidades de entender e recontar a história, ainda que seja pela repetição, pela insistência. A reiteração pode incomodar, porque precisa incomodar, e nunca é por acaso. Seja nas falas de Zezé Mota, nas quais ecoam as de Lélia Gonzaléz, Ruth de Souza e as de Ticiane, seja nos versos, nos textos, nos discursos, nas imagens, o movimento é o mesmo mas já é outro, é ressignificado, amplificado.
Assim, não estamos diante de uma escolha entre liberdade e resignação, porque até mesmo quando essa última nos aparece como suposta atitude, ela é desconstruída. “O patrão morreu” é a fala-glória de Grande Otelo como Sancho Pança. Mas é mais: é o sonho como fuga a enfrentar os moinhos de vento, é a liberdade que abre as asas porque o amor lhe abraça com um sorriso quase inteiro. O ator nos guia pelo filme quando gira na cadeira do programa Roda Viva, o sorriso que nem sempre é de felicidade, mas de necessidade de. Sem ser óbvio nem cair no didatismo, Fábio Rodrigues Filho nos apresenta vários caminhos que atores e atrizes negras e negros que alçaram lugar de destaque na arte nacional seguiram, e o faz não para trazê-los como exemplo ou exceção, mas para questionar e recontar esse trânsito, esse percurso.
O recorte de arquivos de entrevistas e filmes é muito rico, expressivo e revelador de inúmeros aspectos. Em certa fala comovente, Zezé Mota desabafa sobre a morte de (Antônio) Pompeo e sentencia que foi tristeza, depressão. O ator e artista plástico aparece ali como menção a um silêncio repleto de sentido: Pompeo faleceu em 2016, havia sido diretor de Promoção, Estudos, Pesquisas e Divulgação da Cultura Afro-Brasileira da Fundação Palmares. O coração bate e sente o mundo. Pompeo era um ator e ativista negro, reconhecido nacionalmente, e estava sem trabalho. Morreu de um ataque do coração. A dor de ser esquecido em vida.
Do abismo do esquecimento, sopra a tempestade, como lemos na citação de Walter Benjamim logo na abertura do filme. Contra ela, “o estudo é uma corrida a galope”. E aqui, retorno ao início do texto: no bate-papo promovido pelo Mirante Cineclube (disponível no canal do grupo no Youtube), a montadora Lu Silva se propôs a falar sobre como o papel da montagem. Trata-se de uma tarefa muito maior do que supostamente se pensa: ela dita a narrativa, seu ritmo, seu tom. Não é, nem deve ser, passiva. Por isso mesmo, como ela defende, é preciso que mais mulheres e mais pessoas negras ocupem esse espaço e se reconheçam como parte dessa história.
E ao se reconhecer na história e com a história, Fábio Rodrigues Filho nos lembra que a vida é roda viva, e gira, e ainda que voltemos ao mesmo ponto, ele não é o da chegada – se é que há chegada. Essa busca não se dá em linha reta, vai serpenteando e retorna a si. E trago aqui a figura simbólica do Sankofa nos diz bastante sobre esse processo: o símbolo africano do pássaro que volta ao passado para adquirir a sabedoria necessária para seguir: vá, e pegue. É isso que Tudo que é apertado rasga faz: como o pássaro, finca os pés no chão, vira a cabeça, pega esse arquivo e reconstrói a memória.
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