Direção de arte, uma entrevista com Nina Magalhães e Weber Salles Bagetti

Perguntas: Larissa Lisboa e Leonardo Amaral. Respostas: Nina Magalhães e Weber Salles Bagetti. Ilustrações: Weber Salles Bagetti. Revisão: Larissa Lisboa.

Nina Magalhães e Weber Salles Bagetti trabalharam em vários filmes, em comum em suas filmografias apresentam O que Lembro, Tenho (dir. Rafhael Barbosa, 2012) e o ainda inédito Cavalo (dir. Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti), entre as aréas em que atuam em seus trabalhos no cinema ambos são diretores de arte e foi por esse motivo que propusemos essa entrevista em conjunto para eles. Somado ao desejo de dar continuidade ao diálogo sobre as vivências dos trabalhadores do audiovisual alagoano que temos realizado através das transmissões (Live|Ao vivo) on-line em nosso perfil no Instagram (@alagoar), agora também compartilhamos por escrito a partir desta entrevista.

Larissa Lisboa: Como teve início a sua relação com a realização artística?

Nina Magalhães: Acho que de alguma forma ainda criança. Desde muito pequena tanto eu como meus irmãos fomos estimulados pelos nossos pais quanto a fruição artística. Discos, instrumentos, livros e filmes sempre estiveram à total disposição em nossa casa. Meu pai tem mais discos do que qualquer outro item, logo a imagem de uma grande estante de livros e discos compete em igual tamanho na minha memória com a vida de brincadeiras na rua que uma criança criada solta em rua de barro numa cidade de interior tem. Outro fator que muito possivelmente teve forte influência foi uma predileção por trabalhos manuais que tanto experimentei ao conviver com meu avô paterno que nos intervalos dos serviços da terra gostava de fabricar peças de madeira em sua oficina, como minha avó materna que pintava delicados arranjos de flores em tecidos e panos de prato e principalmente pela influência de minha mãe que desde que me entendo por gente fazia e me ensinava diversos trabalhos manuais como a confecção de bijuterias, de confeitaria, de bordados, secagem de plantas e sementes. Assim foi natural que quando eu cheguei ao final do ensino médio me enquietei com a busca por uma faculdade que “tivesse a ver com arte”. Assim, um pouco a contragosto escolhi a Arquitetura. Mas ao chegar em Maceió para estudar no curso mesmo gostando muito da maior parte das matérias, em especial História da Arte, História da Arquitetura, Urbanismo e Estudo da Forma, me pareceu muito mais apetitosa a possibilidade de formar um Coletivo Cultural e através dele produzir ações como Festivais, Mostras, Shows, Debates e até mesmo ter uma banda. Assim o Coletivo Popfuzz foi passando de hobby a vida, de vida a trabalho (e vice-versa) e como costumávamos dizer dentro do Fora do Eixo “Viver de Cultura” tornou-se o nosso ideal.

Weber Salles: Até onde minha memória alcança gosto do assunto. Desde pequeno desenhava nos cadernos, nas mesas da escola. Mais tarde, comecei a levar a sério. Estudei, fiz cursos, me aprofundei, até conseguir trabalhar efetivamente no ramo.

LL: Como teve início o seu diálogo com a direção de arte? Como foi a primeira vez que trabalhou na direção de arte de um filme?

NM: A relação direta com a direção de arte iniciou-se na faculdade, mas apenas no campo de um desejo distante. Logo na primeira semana de aula do primeiro ano do curso quando o professor fazendo aquelas dinâmicas de primeiro dia de aula perguntou: “Porque vocês escolheram fazer arquitetura? Eu que já me via como um peixe fora d’água na turma respondi quase como um deboche “ Eu gostaria de fazer direção de arte em filmes, mas na falta de uma faculdade de cinema, resolvi fazer arquitetura.” Não levei a sério a brincadeira, nem nunca contei a ninguém. No entanto, esse desejo existia e voltou à tona em 2013, quando Rafhael Barbosa, amigo de longa data e de sessões de cinema em casa e em cineclubes nos convida para fazer a produção do seu filme O que Lembro, tenho (como Coletivo Popfuzz). Mesmo sem nenhuma experiência em cinema ele nos convenceu quando sugeriu que aplicássemos na produção do filme a mesma metodologia que aplicávamos na produção de um festival. Como o nosso trabalho de produção era um tanto empírico e muito coletivo, topamos. E deu certo! Foi a minha primeira experiência em um set, foi transformador e foi lá que vi pela primeira vez o trabalho lindo de Weber Salles e Nataska Conrado na direção de arte e me lembrei automaticamente daquele primeiro dia de aula na faculdade de arquitetura. Ainda pareceu bem distante, no entanto, no mesmo ano surgiu o convite de Leandro Alves, também amigo de sessões de cinema em casa e de cineclube, para fazer além da produção a arte de Flamor. Um filme sensorial e que pra mim também trouxe um mundo de sensações. Não deu muito tempo de refletir se deveria seguir, logo depois surge o convite de Wladymir Lima para também fazer a arte e produção de O Vulto. A partir daí já não tinha mais volta.

WS: Vaguei muitos anos por agências de publicidade fazendo comerciais, depois fui focando em trabalhos autorais no audiovisual. Minhas primeiras experiências mais profissionais se deram com o surgimento do DOC TV, um edital que apareceu em 2003 e tivemos a felicidade de ganhar com os projetos: Imagem Peninsular de Lêdo Ivo e em 2005 com História Brasileira da Infâmia. Foram dois trabalhos que exigiram um grau de profissionalismo que eu ainda não tinha, mas que encarei assim mesmo, fazendo e aprendendo, claro, com o apoio de toda uma equipe.

Leonardo Amaral: Weber, você trabalhou na direção de arte para animação e live actions, como muda a abordagem, especialmente inicial, do seu trabalho com direção de arte para cada situação?

WS: Desde os tempos da publicidade eu tinha uma queda pela animação, colocar os desenhos em movimento sempre foi fascinante pra mim. Olhando retrospectivamente os trabalhos, sempre tentei colocar uma pitada de animação nos projetos. Às vezes conseguia. Depois emplacamos um primeiro curta totalmente em desenho animado, foi uma experiência boa pra conhecer melhor os processos de organização e planejamento.

LA: Weber, há mais de 5 anos O Que Lembro, Tenho (dir. Rafhael Barbosa) foi lançado, como você vê o trabalho de direção de arte do cinema alagoano da época e de hoje?

WS: Nesse filme experimentamos um modelo mais colaborativo, com direção de arte compartilhada, funcionou super bem, foi uma honra trabalhar com Nataska, foi enriquecedor e prazeroso. Acredito que a cada ano e a cada trabalho conseguimos aperfeiçoar métodos e processos. Hoje em Alagoas temos um time bem mais preparado. Hoje vemos os filmes mais recentes muito mais apurados tecnicamente.

Cena do filme A Barca (dir. Nilton Resende) ilustrada por Weber Salles Bagetti.

LA: Nina, você trabalhou recentemente em A Barca (dir. Nilton Resende) e Trincheira (dir. Paulo Silver), dois filmes que adotam uma uma postura sobre a fábula e a imaginação de forma bem direta, como você encarou isso? A proximidade entre esses trabalhos trouxe algum fruto no processo criativo?

NM: Medo e desejo. Os dois grandes e crescentes. Essa foi a sensação que tive ao ler os dois roteiros. Ficou muito claro pra mim que eles tinham um potencial enorme, como filme e também para direção de arte. Pensei diversas vezes em declinar o convite por não achar que a minha experiência estava a altura dos projetos, mas por outro lado pensei que eram grandes oportunidades que não deveria deixar passar. E justamente por eles trabalharem tanto a fábula e a imaginação, algo que fez parte de minha formação desde criança que pensei “vamos lá!”. Costumo pensar a imaginação como algo extremamente importante para a formação de uma pessoa, tanto culturalmente, como socialmente. Precisamos ser capazes de imaginar que um novo e melhor mundo é possível para poder sobrevivermos a ele e também para poder contribuir de alguma forma para isso. Essa é uma das funções da arte e do cinema. Mesmo que os dois filmes se passem em universos aparentemente muito diferentes, o fato de terem sido filmados no mesmo período,e de terem esses elos que os unem, com certeza trouxe bons frutos para os processos dos dois.

 

LA: Nina, como você pensou a criação das imagens dos símbolos do conto de Lygia em A Barca?

NM: O fato de não ter uma formação técnica na área de cinema, ao mesmo tempo que pode atrapalhar também traz algumas vantagens. A primeira delas é nos deixar completamente livre e abertos para a definição de uma metodologia de criação e produção. Tenho um método de trabalho muito empírico e paralelo a isso uma boa capacidade de concentração, logo quando inicio a pré produção de um trabalho mergulho no universo dela de maneira a transformar todas as ações do meu dia a dia durante fase de pesquisa do projeto. Me mantendo sempre muito aberta a lugares de pesquisa que não são costumeiramente considerados pesquisa, como por exemplo, caminhar pelo bairro, ir ao centro da cidade, andar de ônibus, lavar prato, cortar verduras e principalmente observar as pessoas, sobretudo as desconhecidas. As imagens que surgem, anoto, muito pouco realmente se aproveita, mas sempre se aproveita algo. Para A Barca tive uma dificuldade que foi não conhecer a fundo a obra de Lygia, mas como tinha ao meu lado Nilton, que sabe praticamente tudo que se pode saber sobre a obra dela, as conversas que tivemos durante esse processo foram sempre muito proveitosas. Ele trazia muitas ideias que eu ouvia atentamente e internalizava, eu também trazia outras que aparentemente não faziam muito sentido, mas que Nilton acolhia muito generosamente talvez por saber que vinham de reflexões que nasciam do mundo externo à obra, a partir dela e não diretamente dela. Talvez esse equilíbrio tenha sido proveitoso pro filme.

A obra de Lygia também ajuda muito pois é sobretudo universal, traz sentimentos que são inerentes à raça, classe e crença, ao mesmo tempo, em especial no tratamento que Nilton deu ao conto Natal na Barca, muito mágico. Quando estes dois elementos se juntam ganhamos uma infinidade de possibilidades de simbologias, e se tornam um prato cheio para a direção de arte. Assim surgem as imagens da carranca de madeira no barco que protegem contra os espíritos do mal no percurso, do pássaro preto preso na gaiola que mesmo na madrugada escura permanece de olhos abertos, da moeda dourada e da simbologia de Caronte para a nossa barqueira. Até mesmo os pequenos detalhes que só existem no extra campo, como guia para a construção deste espaço, como por exemplo o anel de ramo de oliva no dedo da personagem Marina, sugerindo, dentro da Mitologia Grega de Caronte, que ela por portar este símbolo estaria protegida para atravessar o submundo dos mortos. Esses elementos nos ajudaram a compor de maneira muito livre este universo e os personagens do filme.

Cena do filme Trincheira (dir. Paulo Silver) ilustrada por Weber Salles Bagetti.

LA: Nina, Trincheira apresenta uma enorme quantidade de objetos de cena já que o protagonista cata lixo para ativar sua imaginação, como foi a seleção desse material e como buscou o tornar dispensável?

A pré-produção de Trincheira foi uma grande aventura, quase tão grande quanto a que Gabriel experimenta no filme. Para a seleção desses objetos, além de usar a mesma metodologia que citei para A Barca, adicionamos outro exercício constante que foi o “pensar como criança”. Pensar como criança o tempo inteiro e exercitar isso de maneira quase alucinada todas as vezes que eu e Lucas Cardoso saímos em deriva pela cidade. O carro de Lucas de repente se transformou em um carro de lixo e minha casa em um enorme depósito de materiais. A ponto de na semana anterior as filmagens quase não ter chão livre para andar em meu apartamento que não tivesse peças plásticas, peças metálicas, pedaços de qualquer coisa, parafuso, placas de vídeo, placas de som, botões e lixo, muito lixo. Tínhamos a nossa lista de decupagem de arte e objetos, mas dessa vez tínhamos que pensar de forma completamente diferente. Por exemplo, a lista pedia uma espada e uma mochila. Poderíamos achar várias espadas de brinquedo no lixo e também várias mochilas velhas, e de fato encontramos, mas só marcamos como encontrado para a espada quando batemos o olho no triângulo de sinalização quebrado e associamos a um sabre de luz e quando fui comprar algo pra minha casa no depósito de construção e vi a caixa de descarga, era a mochila que procurávamos. Lucas desgastou, sujou, colocou alça e pronto, tínhamos uma mochila! Assim foi com todos os itens.

Foi muito engraçado e ao mesmo tempo libertador. Conhecemos muitas associações de reciclagem e seu trabalho minucioso de separar o lixo que nós não separamos e principalmente passamos a ver a cidade com outros olhos. Sou urbanista por formação, então sempre tive uma atenção especial para o uso que fazemos da nossa cidade. De como é injusta a divisão da terra, dos espaços habitáveis, dos espaços de lazer e até mesmo da própria rua. Trincheira foi e continua sendo uma oportunidade lúdica para exercitar este olhar e refletirmos para onde estamos indo.

LA: O cinema no Brasil é precário em qualquer contexto, mas na realidade alagoana isso se intensifica. Como vocês encaram o trabalho da direção de arte com isso em mente?

NM: Encaro como um processo. Quando nos primeiros filmes que acumulei a função de diretora de produção, produtora executiva e diretora de arte, entendi na prática que executar vários processos torna um ou todos os resultados mais precários do que se fossem executados por várias pessoas. Naquele contexto foi necessário, mas individualmente e coletivamente manteve-se em mente quais as condições que gostaríamos de alcançar como um próximo passo. E assim, graças tanto a luta da classe para a melhoria dos editais quanto para existência dos mesmos, aliada a postura da maioria dos profissionais que buscam sempre a melhor distribuição possível dos recursos e do trabalho estas relações vêm melhorando. Mais especificamente sobre a Direção de Arte o cenário ainda precisa melhorar bastante, precisamos ter mais recursos para que se possa pagar por equipes maiores de arte, com seus assistentes, produtores, maquiadores e cabeleireiros necessários para um bom resultado. Sabemos que não é saudável depenar as casas de nossos parentes e amigos atrás de objetos e móveis para composição de cenários, ou até mesmo transformar nossas casas em depósitos de lixo e objeto. A profissionalização do setor é gradual, necessária e não pode parar! Acredito que a tendência é que sempre melhore, mesmo em momentos de aparente inércia ou de falta de esperança. Parafraseado Nilton e Sebastião da Gama “Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Haja ou não haja frutos, pelo sonho é que vamos. Basta a fé no que temos. Basta a esperança naquilo que talvez não teremos. Basta que a alma demos, com a mesma alegria, ao que desconhecemos e ao que é do dia a dia. Chegamos? Não chegamos?– Partimos. Vamos. Somos.”

 

WS: Eu encaro os trabalhos pelo panorama da realização. Fazer o melhor com o que se tem, usar a criatividade para vencer as limitações. Claro que paralelamente batalhar pela melhoria dos editais, que sejam mais frequentes e com valores mais justos, sonho que devemos sempre buscar.

 

Ilustração de Weber Salles Bagetti.

 

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Nina Magalhães

Natural de Arapiraca, possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. É Diretora Presidente na Associação Cultural Popfuzz atuando no setor de Sustentabilidade e captação de recursos. Atuante no cenário cultural alagoano desde 2006 quando participou da idealização e produção do Festival de música e cultura independente Festival Maionese, onde realiza desde então a Produção executiva. Ministrou os cursos em Produção Para Audiovisual (Doc Lab – SESC, 2016) e Produção para Audiovisual (Ateliê Sesc de Cinema – 2017, 2018 e 2019). Tem como a experiência em cinema a realização dos seguintes curtas-metragens: O que Lembro, Tenho (2012) – Dir. de Rafhael Barbosa [Dir. de Produção], O Vulto (2013) – Dir. de Wladymir Lima [ Dir. de Arte e Produção], Flamor (2013) – Dir. de Leandro Alves [Dir de Arte e Prod.], A Gente Não Combina com essa Sala (2013) – Dir. de Nivaldo Vasconcelos [Produção], Avalanche (2016) – Dir. Leandro Alves [Dir. de Arte], Imaginários Urbanos (2017) – Dir. de Glauber Xavier [Prod Executiva], Nas Quebradas do Boi (2018) – Dir. de Igor Machado, O Cortejo (2018) – Dir. de Marianna Bernardes e Rafhael Barbosa [Dir de Arte e Prod.], Alano (2018) – Direção de Silvio Leal, Trincheira (2018) – Dir de Paulo Silver [Dir de Arte]; Cavalo (2018) – Longa metragem – Dir de Rafhael Barbosa e Werner Salles [ Dir de Arte]; A Barca (2019) – Direção de Nilton Resende [ Dir de Arte e Prod Executiva], Ainda Te Amo Demais (2019) – Direção de Flávia Correia [ Dir. de Arte, Prod] .

Weber Salles Bagetti
Comecei atuando na direção de arte dos documentários Imagem Peninsular de Lêdo Ivo (sobre o poeta e romancista alagoano) e sobre os índios Caetés, História Brasileira da Infâmia (que discorre sobre o controverso episódio da morte do primeiro bispo do Brasil). Daí naveguei sobre o universo Alagoano com outros docs, Penedo, festa bom Jesus dos Navegantes, sertão alagoano, candomblés, terreiros, cordel, alguns desses filmes desempenhando além de direção de arte, outras funções como pesquisa, som e trilha. Alguns trabalhos em ficção: O que lembro, tenho (curta metragem 15 min.) e Cavalo (longa-metragem). Na animação, O Matuto Zé Cará curta metragem com o cordel de Jorge Calheiros, um desenho animado dá vida ao personagem do imaginário do autor. Em 2014 um primeiro curta totalmente em animação, Dialetos (15 min.) trouxe uma verdadeira noção dos processos e métodos necessários para um trabalho todo feito em desenho animado.

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