Distopia e sonho convivem na penúltima noite do Festival de Brasília

Em "Era uma Vez Brasília", viajante de outro planeta é enviado à Terra com uma missão política (Crédito: Joana Pimenta)
Texto: Rafhael Barbosa*. Revisão: Aline Silva.
 Imagens: Cobertura da 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

*O repórter viajou a convite do festival

 

Não foi fácil garantir um lugar para assistir aos filmes no sétimo dia de competição do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Cada metro quadrado foi disputado pela plateia, atraída por duas produções representantes do Distrito Federal. Sendo uma delas a aguardadíssima estreia de “Era Uma Vez Brasília”, novo longa-metragem de Adirley Queirós, faz todo sentido que a expectativa fosse das mais altas. E não apenas do público local. Jornalistas e realizadores presentes aguardavam com máxima curiosidade o mais recente trabalho do cineasta que injetou originalidade no cinema brasileiro com seus “A Cidade é Uma Só” e “Branco Sai, Preto Fica” – esse último vencedor do Candango de melhor filme aqui em Brasília em 2014.  

Morador da Ceilândia, periferia do DF, Adirley criou um corajoso cinema de invenção, pautado por uma contundente crítica ao apartheid contemporâneo e à opressão sofrida pelos moradores das chamadas cidades satélites, para onde foram varridas as famílias que ajudaram a construir o projeto da utópica capital brasileira.

Lançado em 2011, “A Cidade é Uma Só” conta a história do surgimento da Ceilândia na década de 1970, quando a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) expulsou cerca de 80 mil famílias do Plano Piloto para uma região a 30 quilômetros de distância. Adirley apresenta o período histórico com um humor peculiar, cruzando ficção e documentário numa narrativa inteligente, provocadora e divertida.

“Branco Sai, Preto Fica” conquistou de vez a crítica. Novamente o cineasta traz o seu “quintal” como cenário. Mas dessa vez dá um passo em termos de linguagem, criando um rico universo próprio onde a ficção científica se mistura com o documentário para potencializar uma visão crítica.  Um filme de alta voltagem criativa, com uma linguagem ousada e ao mesmo tempo popular como poucos no cinema nacional contemporâneo.

A existência de “Chico”, curta-metragem carioca assinado pelos irmãos Carvalho que abriu a sétima noite de competição do festival, é mais um atestado da consagração do cinema de Adirley. O filme se apropria dos pressupostos do cineasta brasiliense quase como se transferisse seu universo da Ceilândia para o Morro do Salgueiro, no Rio de Janeiro. Como apresentado pela própria sinopse, a história de passa no ano de 2029, 13 anos após um golpe de estado no Brasil. Um cenário em que crianças negras e pobres são marcadas com uma tornozeleira eletrônica. O pequeno Chico, protagonista do curta, é uma delas.

O curta carioca “Chico”, uma ficção científica ambientada no Morro do Salgueiro (Crédito: Nascu na Rua Filmes)

No dia do seu aniversário é aprovada uma lei como a vista no filme “Minority Report”, que autoriza a prisão desses jovens pressupondo infrações futuras. “Chico” se concentra nas tensões da mãe e da avó diante da iminência da separação. A premissa pode remeter imediatamente à obra de Steven Spielberg ou a episódios da série “Black Mirror”, no entanto, o tempero do curta está no modo como ele inventa uma favela distópica com elementos de direção de arte precários, porém perfeitamente adequados à diegese do filme.  As referências à “Branco Sai, Preto Fica” vão da música à pulsação narrativa.

Melodramático, tenso e surpreendente, o curta arrebatou a imensa plateia presente no Cine Brasília. Como os diretores disseram no palco, “Chico” é um filme favelado, assim como seus realizadores  o são.  Domo mesmo modo que “Branco Sai, Preto Fica”, é um exemplar do cinema brasileiro periférico cujo “lugar de fala” (tema mais debatido nesta edição do festival) pertence a quem vivencia na pele a realidade retratada.   

A competição de curtas exibiu também o documentário brasiliense “Carneiro de Ouro”, de Dácia Ibiapina, professora de audiovisual da UnB. A produção retrata o cineasta piauiense Dedé Rodrigues, diretor de uma franquia de filmes amadores rodada no sertão do Piauí e batizada de “Cangaceiros fora do Tempo”.  Assim como tantos outros cineastas populares pelo Brasil, Dedé realiza seus trabalhos de modo completamente independente, contando com a ajuda da comunidade seja no elenco ou na equipe de produção. As histórias são repletas dos arquétipos culturais brasileiros – do cangaço aos indígenas.  O documentário de Dácia Ibiapina mostra como o sonho de fazer cinema é poder transformar a vida das pessoas.

Paisagem urbana de Brasília é muito explorada no novo longa de Adirley Queirós (Crédito: Joana Pimenta)

ERA UMA VEZ BRASÍLIA

Se em “Branco Sai, Preto Fica” Adirley Queirós utiliza a ficção científica como ruído dentro de um contexto híbrido em que o documental está no primeiro plano, em seu novo longa-metragem o diretor mergulha de cabeça no futuro distópico. Na trama, um morador do planeta “Sol Nascente” (referência explícita à maior favela do DF) é preso e enviado para uma missão no planeta Terra: em troca da segurança de sua família, ele deve realizar a viagem interplanetária e matar o presidente Juscelino Kubitschek. Sua nave se perde no tempo e ele cai no Brasil atual, em meio a rebeliões contra o recente processo de impeachment.

O país de “Era uma Vez Brasília” é construído com tintas fortemente fantásticas. O contexto político nos remete a 2016, mas o cenário é um mundo pós-apocalíptico em que um grupo de guerrilheiros se prepara para uma batalha contra o Estado. O viajante intergalático logo se une aos “terráqueos”  da Ceilândia, que compartilham dos mesmos problemas enfrentados em seu planeta: exclusão social e uma violenta repressão policial. A narrativa segue os planos do grupo e a preparação para o ataque contra o novo “sistema” que se instala.

“Era um Vez Brasília” soa como um filme de transição na obra de Adirley. A pulsação que emanava dos personagens reais de “Branco Sai, Preto Fica” dá lugar a uma pesquisa de linguagem mais densa, preenchida por experimentações sensoriais e estilísticas.  

Há muito pouco de narrativo no longa. Os personagens são captados em ações que quase não repercutem no andamento da história. Vemos longas sequências atmosféricas em que eles se relacionam com a paisagem urbana, sempre à espreita de algo, numa observação passiva na maior parte do tempo. As interações entre eles são pouco expressivas e costuradas de um modo frágil. O plano sonoro, intenso e rico em detalhes,  ganha um papel fundamental para construir o clima de tensão e apresentar as informações necessárias para situar o contexto político. São utilizadas diversas falas de deputados, da ex-presidenta Dilma Rousseff e do presidente Michel Temer.

Inventiva e muito bem elaborada, a direção de arte de Denise Vieira também é um ponto alto do longa, surgindo desde já como favorita na categoria ao troféu Candango. O visual como um todo é primoroso. Algumas sequências mais estilizadas produzem grande impacto estético.   

No entanto, se as qualidades técnicas da produção saltam aos olhos, falta a “Era uma Vez Brasília” algumas das características mais marcantes de “Branco Sai, Preto Fica”, como o humor ácido, a imersão humana no drama dos personagens, e consequentemente o potencial catártico que fez dele uma experiência deliciosa.

Fica a dúvida se o diretor sucumbiu à  urgência de discutir o momento histórico sem a devida atenção à carpintaria dramática,  ou se talvez esteja buscando se relacionar com o público pela via da subjetividade. Como muitos dos longas apresentados no festival, é preciso algum tempo para depurar as impressões do que foi visto.

Para quem escreve é uma tarefa complicada reagir imediatamente as propostas artísticas que, por serem tão ousadas, merecem a devida reflexão antes de julgamentos precipitados. Bagunçar as certezas do espectador é também umas das missões do cinema de invenção.          

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*