Texto: Maestro Ricardo Prado e Assessoria Arte Pajuçara. Imagens: Divulgação.
A corcunda quase desapareceu nas produções atuais, mas as contradições extremas, dilacerantes do bobo da corte, ainda fazem de Rigoletto uma das dez óperas mais apresentadas em todos os palcos do mundo. Verdi é o mais popular compositor do gênero, e sua ópera, La Traviata disputa, ano após ano, com Carmen, de Bizet, o título de preferida do público. Os temas de suas árias mais conhecidas são usados tanto pela publicidade como pelo cinema, e também, em desenhos animados, na televisão. Essa popularidade não foi conquistada pela trivialidade ou simplicidade da obra, muito menos, pelo desrespeito ao público.
Rigoletto foi composta por encomenda do teatro La Fenice, em Veneza, e, quando estreia em 1851, é a obra de um Verdi já famoso aos 38 anos, com uma agenda de viagens que não lhe dá descanso, cheio de encomendas de novos títulos e remontagens, que o levaria ao triunfo. Rigoletto é o título que abre a grande trilogia do sucesso verdiano, logo seguido, em 1853, por Il Trovatore e La Traviata. Seu libretista, Francesco Maria Piave, é um parceiro de confiança tanto pelas qualidades poéticas e técnica apurada, pela capacidade de atender às exigências estruturais do compositor, pela coragem de enfrentar os censores como pela dedicação à amizade que sempre os uniu.
A ópera foi baseada na peça de Victor Hugo, Le Roi S’Amuse, censurada após a primeira récita. Duas características animaram Verdi e Piave e, mesmo depois de modificada por eles, garantem a extrema modernidade da obra e seu duradoura interesse pelas plateias. Proibida na França, ameaçada de censura pelos austríacos que, na época, controlavam os teatros do norte da Itália, a ópera retrata um duque, não mais um rei, e sua corte. Todos são devassos e covardes em dois sentidos; na humilhação e no uso dos mais humildes e na subserviência aos mais poderosos. Os homens comuns que, como Rigoletto, pensam que por estarem próximos da nobreza, lhes é permitido algum tipo de intimidade, são destruídos. Esta é a primeira marca: Verdi não é um republicano a caçoar da nobreza, mas um artista a expor, sem candura ou remissão, que o exercício do poder arrisca sempre resultar em soberba e arrogância, em vício e crime. Por isso, precisa das artes a fustigá-lo e a mostrar o ridículo dos poderosos, ao contrário das qualidades vendidas pela política. O que pode ser mais moderno?
A segunda, pode ser notada, que na ópera de Verdi – e não raro no cinema e na tevê até hoje -, o vilão é repulsivo assim como o herói é atraente; um é perverso e o outro é piedoso. Mas em Rigoletto, os personagens não são apenas bons ou maus, mas moralmente ambíguos, modernamente complexos. Perfeita e duradouramente atuais.
O convívio com os poderosos, com seu escárnio e desprezo pelo outro, seu ofício de agradar, de transformar em riso todo erro, todo medo, toda humanidade, não é conciliável com uma vida de amor à filha Gilda, mantida pura e distante. Um mundo invadirá o outro e toda a proteção se transformará em ameaça, toda a felicidade em tragédia – e não será, como ele acredita, por meio de uma maldição. Ele será vítima, mas também artífice.
Mas toda essa riqueza teatral não nos apresentaria uma grande ópera sem a beleza da música do autor. Verdi revoluciona a música ao derrubar as barreiras entre a melodia e os recitativos e sem finales. A abertura já nos previne que este é um mundo estranho, e que nele, de dentro da tristeza e do medo, Rigoletto terá que arrancar humor para divertir os cortesãos em suas festas. A ópera está repleta de melodias que conquistariam as plateias – como Questo o quella, Pari siamo, Caro nome, entre várias outras No Ato III, Bella figlia dell’amore tece um intrincado e cristalino quarteto vocal onde se sobrepõe quatro situações absolutamente díspares entre os personagens. O modelo de Verdi é o mesmo de Mozart. Mas nenhuma melodia supera o sucesso imediato de La donna è mobile. Verdi, consciente do clamor da ária, proibiu o tenor de cantar o tema durante os ensaios para que músicos do coro e orquestra não antecipassem, ao público, a melodia inesquecível. No dia seguinte à estreia, toda a cidade cantava e assoviava a melodia. Prepare-se, leitor, o mesmo acontecerá a você amanhã!
O Festival d’Aix en Provence conquistou, ao longo de seus quase 50 anos, um prestígio merecido tanto pelos méritos educacionais e elencos reunidos, como pelo rigor que ampara a ousadia das óperas. Este Rigoletto de Verdi é um espetacular exemplo. A direção do maestro Gianandrea Noseda é impecável, razão de seu merecido “Musical America Award” como “Conductor of the Year”. A ópera Rigoletto, em 2009, no Metropolitan, lançou o barítono George Gagnidze para o estrelato internacional e, aqui, o artista se apresenta ainda mais confiante para os desafios do papel. A soprano Irina Lungu, que já conquistou os maiores palcos do mundo, reúne e equilibra em sua Gilda, – este o maior desafio – toda a delicada fragilidade e a força apaixonada de sua personagem. Para completar o elenco principal, o tenor Arturo Chacón-Cruz, voz e talento incentivados por Plácido Domingo, mostra clareza de voz, técnica consistente e bom desempenho cênico. A ousadia da montagem não é gratuita: graça e absurdo da realidade encenada em um ambiente circense, ameaça enredada ao desejo, mulheres tratadas como animais domados. Tudo realça a misoginia, o mundo fechado, abusivo e corrupto da corte.
Quando Verdi nasceu, em 1813, Beethoven estreou sua Sétima Sinfonia. Em 1901, ano da sua morte, Mahler estreava sua Quarta Sinfonia e eram inauguradas as primeiras grandes gravadoras – a RCA e a Victor. Essa longevidade fez de Verdi um homem de vários mundos, em permanente transformação. Agora, quando tudo é fugaz, ele permanece atual, a nos inquietar sobre quem somos, a nos incitar ao desafio das ambiguidades que não nos protegerão.
Veja o trailer:
SERVIÇO
O quê: Festival Ópera na Tela – Rigoletto
Onde e quando: No Centro Cultural Arte Pajuçara, quinta-feira, 14, às 19h30, e sábado, 16, às 14h30
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)
Mais informações: 3316-6000
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